DNA de fósseis encontrados no Brasil, incluindo o povo de Luzia, reescrevem a história da ocupação das Américas
Estudos inéditos analisaram restos mortais de 64 indivíduos, a partir de fósseis de 10 mil anos, e indicam que americanos descendem de uma única migração que atravessou o Estreito de Bering há 20 mil anos.
Há séculos cientistas discutem como as Américas foram povoadas. Diferentes técnicas, desde a datação de carbono ao estudo das medidas de crânios, tentaram desvendar o mistério dos primeiros americanos. Os resultados geraram debates científicos acalorados e trouxeram poucas respostas conclusivas. Agora, novas tecnologias de extração de DNA antigo prometem elucidar algumas das questões que rondam a ocupação do nosso continente.
Dois artigos publicados nesta quinta-feira (8/11) conseguiram, pela primeira vez, extrair DNA de fósseis humanos de mais de 10 mil anos encontrados na América do Sul. Combinadas, as pesquisas analisaram os restos mortais de 64 indivíduos e os resultados revelam que os americanos descendem, em grande parte, de uma única migração que atravessou o estreito de Bering há cerca de 20 mil anos. Essa primeira leva se dividiu em dois grupos há 15,7 mil anos e ocupou, em uma velocidade impensada antes desses estudos, toda a América, desde o norte do continente até as regiões mais extremas da América do Sul.
As pesquisas também trazem informações novas e surpreendentes sobre o povo de Luzia. As análises revelaram que os antigos habitantes da região da Lagoa Santa (MG), onde foi escavado o crânio de Luzia, recentemente encontrado nos escombros do Museu Nacional do Rio de Janeiro, não são de uma população australo-asiática proveniente da Austrália e Melanésia, como sugeria a teoria do professor Walter Neves, baseada no estudo morfológico dos crânios. Um dos estudos, no entanto, encontrou vestígios de até 6% de material genético de povos australo-asiáticos nessa população, deixando em parte sem solução o mistério sobre a presença desses povos da Oceania na América.
O surpreendente elo entre Luzia e Clóvis
Publicado na revista científica Cell, o estudo coordenado pelo professor brasileiro André Strauss é fruto de uma parceria internacional entre pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade de Harvard, nos EUA, e do Instituto Max Planck, na Alemanha.
O artigo de Strauss estudou o DNA de 49 indivíduos de toda a América, incluindo esqueletos escavados recentemente pela sua equipe no sítio arqueológico da Lapa do Santo, em Lagoa Santa (MG). A pesquisa não encontrou nenhum traço genético de populações australo-asiáticas, nem no povo de Luzia nem em nenhuma outra população. Assim, a teoria de que o povoamento da região da Lapa do Santo “se deu por um grupo que chegou à América antes dos descendentes dos ameríndios atuais não se sustenta mais”, diz Strauss.
Para o pesquisador, a tradicional reconstrução facial de Luzia, produzida pelo inglês Richard Naeve em 1999, a partir dos estudos morfológicos do crânio feitos por Walter Neves, "fazia parte de um conceito que entendia o povo de Lagoa Santa [...] como – em uma linguagem simples – não índios, ou seja, não sendo os ancestrais dos atuais nativos americanos. Eles representariam a chegada de uma população anterior e praticamente sem relação com aqueles que a gente conhece hoje como os índios", contou Strauss em entrevista à National Geographic. “Mas agora o DNA mostra que o povo de Lagoa Santa é índio. Portanto, não existe essa conexão direta com a África proposta anteriormente. E não faz sentido a gente acreditar que eles tinham uma fisionomia marcadamente africana, como é retratada na reconstrução do rosto de Luzia”.
A pesquisa também revelou que os antigos habitantes da Lagoa Santa possuem forte conexão com os povos da cultura Clóvis – produtores de pontas de lança feitas em pedra que ocuparam partes expressivas da América do Norte há cerca de 12 mil anos. Já se sabia que o povo de Clóvis tinha se expandido rapidamente pela América do Norte, mas acreditava-se que esse âmbito ficou contido, basicamente, no território onde hoje são os Estados Unidos. “Os dados genéticos mostram, para nossa surpresa, que essa grande expansão da cultura Clóvis reverberou na América Central e na América do Sul”, prossegue Strauss. “Quando esses ancestrais chegaram à América do Sul eles já não eram 100% Clóvis [...], mas, de qualquer forma, tem um sinal claríssimo associando populações de Lagoa Santa ao grupo Clóvis, o que, até então, era algo completamente inimaginável”.
A rápida propagação pelas Américas
O outro estudo arqueogenético publicado hoje foi produzido por pesquisadores do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Museu Nacional/UFRJ), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e liderado pelo dinamarquês Eske Willersev, da Universidade de Copenhagen, na Dinamarca.
A equipe de Willerslev analisou dados genéticos de 15 indivíduos, dentre eles cinco da região de Lagoa Santa com idades superiores a 10 mil anos. As amostras foram obtidas de esqueletos enviados pelo naturalista dinamarquês Peter Lund – considerado o pai da paleontologia e arqueologia no Brasil – a Copenhagen em meados do século 19.
O estudo revelou que antigos esqueletos encontrados em Nevada e em Montana, nos EUA, e em Lagoa Santa possuem características genéticas muito parecidas, mesmo estando tão distantes uns dos outros. Isso indica que “a propagação desses primeiros humanos pela América aconteceu muito, muito depressa”, disse Willerslev em entrevista coletiva para a imprensa no Rio de Janeiro. “Em poucas centenas de anos eles estavam nos dois lados das Montanhas Rochosas e lá embaixo no Brasil. Assim que eles atravessam o sul dos mantos de gelo [do noroeste americano] acontece algo como uma explosão. Os povos tomam todas os tipos de ambientes – ambientes muitos diferentes, desde planícies, desertos até a região de Lagoa Santa”.
A ideia de que grupos diferentes do norte da Ásia e da Oceania migraram em períodos distintos para a América é antiga, mas ganhou corpo quando o bioantropólogo Walter Neves estudou a morfologia dos crânios de Lagoa Santa, incluindo a própria Luzia, o fóssil mais antigo da América do Sul, na década de 1990.
Depois de medir esses crânios, Walter Neves e sua equipe sugeriram que os primeiros habitantes da América do Sul, refletidos na presença dos restos mortais em Lagoa Santa, vieram em uma migração anterior aos mongoloides asiáticos, grupo do qual os ameríndios modernos descendem.
Para Willerslev, essa associação foi desmontada com os novos estudos. Afinal, mesmo que sua equipe tenha encontrado pequenos traços genéticos de povos australo-asiáticos no povo de Luzia, os mesmos traços não estão presentes em outros esqueletos da América do Norte que possuem as mesmas características cranianas que Luzia. “A teoria de Neves que diz que a morfologia craniana [do povo de Luzia] reflete uma migração anterior [de povos australo-asiáticos] não é suportada por evidências genéticas”, diz Willerslev. “Mas talvez haja alguma verdade na ideia de que houve alguém ali antes”.
Os traços genéticos australo-asiáticos encontrados pela equipe de Willerslev são semelhantes aos mapeados em populações atuais de indígenas brasileiros – suruís, xavantes e karitianas – por pesquisadores que publicaram estudo na revista Nature em 2015.
Willerslev acredita que essas evidências são combustíveis para futuras tentativas de desvendar a misteriosa presença dessas populações “fantasmas”. “O que isso provocou foi colocar o Brasil no mapa como o lugar mais importante atualmente para entender a ocupação das Américas”, disse Willerslev. Para ele, um dos caminhos é extrair DNA de mais fósseis americanos. E Luzia, por ter idade estimada em cerca de mil anos mais velha que os esqueletos de Lagoa Santa estudados hoje, pode ser decisiva para desvendar o mistério. “Se conseguirmos extrair o DNA de Luzia, isso será fundamental”, disse.
Um outro caminho é tentar buscar o que Willerslev chama de “DNA ambiental”, uma técnica que busca vestígios de DNA em lugares onde restos humanos não existem, mas que a presença de humanos antigos é evidente através de cerâmicas ou outras peças manufaturadas. Essa tecnologia poderá ser especialmente útil para desvendar os mistérios da Serra da Capivara, no Piauí, onde uma fogueira supostamente feita por mãos humanas foi datada, com base em análises de carbono-14, em 48 mil anos.
A revolução do DNA na arqueologia
A tecnologia de extração de DNA começou a ser usada há pouco mais de 20 anos e está revolucionando nosso entendimento da história da humanidade. A arqueogenética, como o campo é conhecido hoje, teve sucesso primeiro em desvendar as origens de fósseis melhores preservados em regiões mais frias, como a Sibéria – onde identificou-se o homem denisovano, uma nova espécie de hominídeo, por exemplo. Mas o avanço da técnica de extração de DNA permitiu analisar fósseis descobertos em regiões mais quentes e cujo material genético é menos preservado.
E isso deixa o Brasil no centro dos novos estudos sobre a evolução dos humanos. “O DNA ajudou a desvendar o velho mistério do indo-europeu. Também houveram avanços expressivos para compreender a história populacional supercomplexa da Índia", disse Strauss. “Finalmente, essa técnica recente [...] começa a ser aplicada para a gente compreender melhor como era esse passado profundo da história indígena de longa duração da América do Sul."