Fóssil de incrível 'monstro do mar' encontrado ainda com pele e gordura
A descoberta confirma que a semelhança entre alguns répteis antigos e os golfinhos não se limita apenas à pele.
Há cerca de 180 milhões de anos, no local onde hoje é a Alemanha, um réptil parecido com um golfinho morreu e foi parar no fundo de um antigo oceano. Inacreditavelmente, ter ficado enterrado no mar ajudou seu corpo a ser preservado com um nível de detalhes impressionante—incluindo os primeiros vestígios químicos que sugerem que esses animais pré-históricos possuíam gordura assim como as baleias.
O fóssil, revelado em 5 de dezembro na revista científica Nature, preserva o corpo de um Stenopterygius, um tipo de réptil marinho denominado ictiossauro, do começo do período Jurássico. A pele do animal ainda possui pregas e ondulações, além de células que contêm parte da pigmentação do animal e traços químicos de gordura. De forma controversa, os pesquisadores também alegam que o material ainda possui vestígios de suas proteínas originais.
"Não só é possível olhar para essas estruturas e identificá-las em nível celular, como também encontrar traços das proteínas originais—essa é a ponta do iceberg para coisas do tipo que vemos em Jurassic Park", diz o coautor do estudo, Benjamin Kear, paleontólogo da Universidade de Uppsala.
A pesquisa marca os recentes esforços dos paleontólogos em obter grandes informações a partir das menores estruturas de um fóssil.
"Esse estudo mergulha de cabeça na preservação desse animal em sua totalidade ... em uma escala que somente se tornou possível nas últimas décadas", escreve Caitlin Colleary por e-mail, paleontóloga da Virginia Tech. "Esse estudo é outro exemplo de como a paleontologia molecular pode nos ajudar a reconstruir a aparência desses animais quando estavam vivos".
Um espaço vazio
Antes mesmo de os dinossauros serem nomeados pelos cientistas, os ictiossauros—literalmente "peixes-lagartos"—faziam parte da imaginação de filósofos naturais do século 19. Com pele coriácea, mandíbulas esguias e corpos desenhados para a velocidade, os répteis eram os golfinhos da era Mesozoica, o período dos dinossauros. Hoje, eles são conhecidos como as criaturas que ditam a moda em termos evolucionários.
"Eles originaram-se de répteis que respiravam pelo pulmão e viviam em terra firme, e rapidamente adquiriram formato de peixe após 30 milhões de anos. Os ictiossauros foram os primeiros; as baleias fizeram isso depois", diz Ryosuke Motani, paleontólogo da Universidade da Califórnia, Davis, que estuda ictiossauros. "Eles [também] possuem os maiores olhos de todos os vertebrados, e algumas espécies sucessoras tinham o maior número de dedos: de nove a dez em uma mão".
Há mais de um século, pesquisadores encontram fósseis de ictiossauros com traços de tecido mole, uma consequência do local onde esses animais ficaram enterrados: no fundo do mar, em sedimentos com pouco oxigênio. O mais conhecido desses fósseis foi retirado de uma pedreira de folhelhos em Holzmaden, Alemanha. Muitos dos ictiossauros da pedreira possuem contornos enegrecidos, que fornecem vestígios da pele e das barbatanas dos animais.
Desde a década de 1930, pesquisadores que estudam esses contornos suspeitam que os ictiossauros possuíam gordura, diz Motani. Nos fósseis de ictiossauros com contornos corporais, há sempre um espaço vazio entre a coluna vertebral e a superfície superior do corpo—o que sugere que a estrutura do animal possuía uma ampla camada de tecido mole.
O desafio foi confirmar a hipótese da gordura com evidências químicas. Como os pesquisadores poderiam ter certeza de que o ictiossauro foi preservado pelos contornos ou foram simplesmente as bactérias que se alimentaram do cadáver? O fóssil preservou os sinais de gordura e proteínas originais do animal? Para responder a essas perguntas, os pesquisadores precisariam estudar a química de um ictiossauro em detalhes. Para preparar os fósseis, os museus normalmente removem a rocha adjacente com muito cuidado ou aplicam um tratamento com compostos estabilizadores, o que pode ser uma fonte de contaminação.
Foi a partir daí que Johan Lindgren, paleontólogo da Universidade de Lund, decidiu trabalhar em um ictiossauro não contaminado e realizar o maior número possível de análises químicas. O museu Urweltmuseum Hauff de Holzmaden, que abriga muitos dos fósseis locais, tinha, por acaso, um material de Stenopterygius que preenchia os requisitos. Em pouco tempo, 23 pesquisadores internacionais se juntaram à equipe de Lindgren.
"Foi realmente uma história do tipo Alice no País das Maravilhas", disse Kear. "Entramos na toca do coelho e ela foi ficando cada vez mais funda".
Chegando cada vez mais perto
Primeiramente, a equipe de Lindgren analisou a pele do ictiossauro, que o fóssil preservou com um nível de detalhes impressionante. Os pesquisadores conseguiram identificar as camadas de pele e até mesmo as pregas formadas à medida que o animal se deteriorava.
De forma surpreendente, os pesquisadores encontraram traços de melanóforos, células especializadas que contêm o pigmento melanina. Embora essa descoberta nos ictiossauros seja da década de 1950, a equipe de Lindgren adotou uma abordagem definitivamente do século 21. Utilizando espectroscópios e raios-X de alta resolução, os pesquisadores escanearam o fóssil em busca de melanina e reconstruíram os melanóforos em 3D. A equipe descobriu que, como muitos animais marinhos da atualidade, o dorso dos ictiossauros apresentava coloração mais escura do que sua barriga. Essa forma de coloração, chamada de contra-sombreamento, teria ajudado os animais a se camuflarem na água e regular a temperatura corporal.
Os pesquisadores também detectaram vestígios de gordura dentro da pele preservada. De acordo com testes químicos, a camada não seria um contaminante moderno ou à base de proteínas como as demais camadas de pele. Em vez disso, é uma faixa amarelada de gordura, aproximadamente no mesmo local onde é encontrada gordura nos golfinhos e nas tartarugas-de-couro de hoje.
"Para mim, é bastante convincente", diz a paleontóloga de Yale Jasmina Wiemann, doutoranda e especialista em preservação molecular de fósseis, que não participou do estudo. "Eles empregaram diversos métodos. Tenho que admitir, foi um trabalho bastante aprofundado".
No mínimo, a presença de gordura implica no fato de que os ictiossauros eram capazes de manter a temperatura corporal estável. Embora não apresente evidências conclusivas de sangue quente como nos mamíferos modernos—incluindo baleias e golfinhos—a descoberta corrobora um estudo de 2010 que revelou que a temperatura corporal dos ictiossauros chegava a 35 graus Celsius.
A ligação das proteínas
Talvez a maior e mais controversa alegação do estudo seja que os fósseis de ictiossauro ainda contêm algumas das proteínas originais do animal. Caso isso seja verdade, o ictiossauro teria algumas das biomoléculas mais antigas preservadas, com cerca de 180 milhões de anos de idade.
Mary Schweitzer, paleontóloga da Universidade do Estado da Carolina do Norte e coautora do estudo, ajudou a equipe a encontrar as proteínas do fóssil utilizando anticorpos. Ela utiliza essa técnica há décadas, tendo encontrado evidências de colágeno de dinossauro e outras proteínas em ambientes sob rigorosas condições de limpeza. Nesse caso, Schweitzer e colegas detectaram sinais de hemoglobina no fígado do ictiossauro, bem como vestígios de proteínas estruturais, como colágeno e queratina na pele.
Sua equipe analisou as amostras em um laboratório onde tecidos de animais modernos são proibidos. Para se proteger ainda mais contra falso-positivos, eles também analisaram as amostras com múltiplos anticorpos, incluindo um que seria capaz de destacar bactérias fossilizadas caso estivessem presentes.
"Podemos diferenciar os locais de ligação desses anticorpos, e as ligações não são aleatórias", diz Schweitzer. "Você não vê [anticorpos] de queratina se ligarem a qualquer coisa. Eles apenas se ligam àquilo que interpretamos como pele".
Porém, alguns paleontólogos criticam o método de anticorpos, pois acreditam que ele seja suscetível a exibir proteínas que não estejam realmente presentes. Recentemente, pesquisadores reanalisaram uma das primeiras amostras publicadas de Schweitzer—fibras do fóssil do dinossauro Shuvuuia deserti—empregando diversos métodos. Eles não encontraram evidências de proteínas.
"Minha preocupação é que essas técnicas de anticorpos sejam altamente suscetíveis a falso-positivos devido a consolidantes [compostos utilizados para estabilizar os fósseis], contaminantes e outros materiais orgânicos do fóssil", escreve Evan Saitta por e-mail, pesquisador do Museu Field de História Natural que liderou a nova análise da espécie Shuvuuia. "Gostaria que esses estudos incluíssem mais amostras de controle... embora a natureza heterogênea dessa amostra possa ajudar a solucionar parte desse enigma".
Em parte, o ceticismo provém da magnitude das alegações de Schweitzer e outros pesquisadores. Se as proteínas realmente ficam tão bem preservadas no registro fóssil, os pesquisadores poderiam diretamente estudar as proteínas de animais antigos e aprender muito mais sobre como essas criaturas viviam e evoluíam, muito mais do que os ossos podem revelar sozinhos. Trabalhos futuros com outros ictiossauros, bem como outras análises da espécie Stenopterygius desse estudo, devem ajudar a esclarecer a questão.
"Nós com certeza continuaremos [estudando esse fóssil]", diz Schweitzer. "É um material extraordinário".
Enquanto isso, Kear recebe abertamente o debate que o estudo da equipe pode provocar: "Podem vir com tudo!" diz ele. "Somente com o teste constante dos dados é que teremos ideia do que realmente está acontecendo".