Evidências de sacrifício humano e misteriosas inscrições em pedra encontradas em cidade antiga

As descobertas feitas nesse imenso sítio arqueológico estão fazendo os arqueólogos repensarem as raízes da civilização chinesa.

Por Brook Larmer
Publicado 10 de ago. de 2020, 12:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Coroada com uma pirâmide de degraus de mais de 60 metros de altura, uma cidade fortificada ...

Coroada com uma pirâmide de degraus de mais de 60 metros de altura, uma cidade fortificada de 4,3 mil anos atrás, conhecida como Shimao, contesta os aspectos tradicionais dos primórdios da China.

Foto de Ben Sherlock, National Geographic

AS PEDRAS NÃO revelam seus segredos facilmente. Durante décadas, os moradores das colinas poeirentas do Planalto de Loesse, na China, acreditavam que as ruínas das paredes rochosas próximas a suas casas faziam parte da Grande Muralha da China. Fazia sentido. Afinal, restos da antiga barreira se estendem por aquela região árida que fica dentro da curva norte do rio Amarelo, limite da fronteira do domínio chinês há mais de dois mil anos.

Mas um curioso detalhe não se encaixava: moradores e mais tarde saqueadores começaram a encontrar relíquias de jade nas ruínas, algumas em formato de discos, lâminas e cetros. Não existe jade nessa região mais ao norte da província de Shaanxi — a jazida mais próxima fica a mais de 1,6 mil quilômetros de distância — e não era uma característica conhecida da Grande Muralha da China. Por que havia tamanha abundância dessa pedra nessa região árida tão próxima do deserto de Ordos?

Quando uma equipe de arqueólogos chineses investigou o enigma há vários anos, constataram algo incrível e intrigante nas escavações: não havia pedras de jade na Grande Muralha da China, mas essas pedras estavam nas ruínas de uma magnífica cidade fortificada. A escavação em andamento revelou mais de nove quilômetros de muros de proteção em torno de uma pirâmide de 70 metros de altura e um santuário interno com murais pintados, artefatos de jade — e evidências terríveis de sacrifício humano.

Antes da suspensão das escavações no início deste ano devido à pandemia de coronavírus, arqueólogos haviam descoberto 70 impressionantes relevos em pedras — serpentes, monstros e feras semi-humanas semelhantes à iconografia do fim da Idade do Bronze na China.

E ainda mais surpreendente: de acordo com a datação de carbono, Shimao, nome do sítio arqueológico (seu nome original é desconhecido), possui regiões datadas de 4,3 mil anos, quase dois mil anos antes do trecho mais antigo da Grande Muralha — e 500 anos antes da origem da civilização chinesa nas Planícies Centrais, várias centenas de quilômetros ao sul.

Shimao prosperou nessa região aparentemente remota por quase meio milênio, entre 2300 a.C. e 1800 a.C. Então, súbita e misteriosamente, foi abandonada.

Nenhum dos textos antigos utilizados para entender a arqueologia chinesa faz menção a uma cidade antiga que fica no extremo norte do chamado “berço da civilização chinesa”, muito menos a uma cidade com tamanha dimensão e complexidade e intensa interação com culturas externas. Shimao atualmente é o maior assentamento neolítico conhecido na China — sua área de 400 hectares é 25% maior que o Central Park na cidade de Nova York — e sua arte e tecnologias eram provenientes das estepes ao norte e influenciariam dinastias chinesas posteriores.

Juntamente com descobertas recentes em outros sítios pré-históricos vizinhos e ao longo da costa, Shimao está forçando os historiadores a repensar os primórdios da civilização chinesa — e a expandir seu conhecimento sobre as regiões geográficas e as influências externas recebidas por suas culturas mais antigas.

“Shimao é uma das descobertas arqueológicas mais importantes deste século”, afirma Sun Zhouyong, diretor do Instituto de Arqueologia da Província de Shaanxi e líder das escavações em Shimao. “Shimao nos proporcionou um novo olhar sobre o desenvolvimento das civilizações mais antigas da China.”

As inscrições em pedra recém-escavadas “podem ter conferido poder religioso especial à pirâmide de degraus”, segundo estudos de arqueólogos.

Foto de Ben Sherlock, National Geographic

Projetada para o perigo

A primeira impressão que Shimao passa, embora apenas escavada parcialmente nas colinas áridas acima do rio Tuwei, é de ter sido uma cidade projetada para enfrentar perigos constantes. A cidade foi construída em uma zona de conflito, uma fronteira dominada por milhares de anos de guerra entre pastores das estepes ao norte e agricultores das Planícies Centrais.

Para se protegerem de rivais violentos, as elites de Shimao construíram sua pirâmide retangular com 20 níveis na mais alta dessas colinas. A estrutura, visível de todos os pontos da cidade, possui cerca de metade da altura da Grande Pirâmide de Gizé, no Egito, construída na mesma época (2250 a.C.). No entanto sua base é quatro vezes maior e, para ter proteção adicional, as elites de Shimao habitavam o nível superior da plataforma, que continha um complexo palaciano de oito hectares com um reservatório de água próprio, oficinas de produção manual e, provavelmente, templos rituais.

A pirâmide central de Shimao era cercada por quilômetros de muros internos e externos, um projeto urbano rudimentar reproduzido em cidades chinesas ao longo dos tempos. Somente para os muros, foram necessários 125 mil metros cúbicos de pedras, o equivalente em volume a 50 piscinas olímpicas — um feito grandioso para uma sociedade neolítica com uma população provavelmente entre 10 mil e 20 mil pessoas. A magnitude do projeto levou os arqueólogos a acreditar que Shimao contava com a lealdade — e a mão de obra — das cidades-satélites menores recentemente descobertas ao seu redor.

Mais de 70 cidades de pedra da mesma era neolítica, conhecida como período Longshan, foram descobertas na província de Shaanxi ao norte. Dez delas estão localizadas na bacia do rio Tuwei, onde fica Shimao. “Essas cidades ou vilas-satélites são semelhantes a luas orbitando ao redor do sítio de Shimao”, afirma Sun. “Juntas, formavam uma sólida base social para a criação de um estado primitivo em Shimao.”

As fortificações de Shimao são surpreendentes não apenas por seu tamanho, mas também por sua engenhosidade. O sistema de defesa incluía barbacãs (portões contornados por torres), barreiras de controle (que permitiam a entrada em um único sentido) e baluartes (uma proeminência no muro que permitia disparos de defesa em várias direções). O sistema também empregava uma estrutura “mamiana” (“cara de cavalo”), cujos ângulos atraíam eventuais agressores a um local onde os defensores poderiam golpeá-los a partir de três diferentes frentes — um projeto que se tornaria uma das bases da arquitetura chinesa de defesa.

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    Muros fortificados com mais de dois metros de largura e nove quilômetros de comprimento rodeavam a cidade. As ruínas foram encontradas há décadas, mas acreditava-se que faziam parte da Grande Muralha da China até que descobertas recentes revelaram serem muito mais antigas.

    Foto de Li Min, Ucla

    Dentro dos muros de pedra, a equipe de Sun encontrou outra inovação inesperada: vigas de madeira utilizadas como reforço. Datadas por radiocarbono de 2300 a.C., acadêmicos acreditavam que as vigas de cipreste, ainda intactas, representavam um método de construção desenvolvido apenas na Dinastia Han — mais de dois mil anos depois.

    Descoberta tenebrosa

    A descoberta mais tenebrosa estava embaixo do muro leste da cidade: 80 crânios humanos agrupados em seis poços — sem esqueletos ligados a eles (os dois poços mais próximos do Portão Leste, na entrada principal da cidade, continham exatamente 24 crânios cada). O número e a disposição dos crânios sugerem um ritual de decapitação durante a construção da fundação do muro — o mais antigo exemplo conhecido de sacrifício humano na história chinesa. Os cientistas forenses determinaram que quase todas as vítimas eram meninas adolescentes, provavelmente tomadas como prisioneiras de um grupo rival.

    “Esse grau de violência em rituais em Shimao nunca havia sido observado na China antiga”, afirma Li Min, arqueólogo da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que visitou Shimao diversas vezes e escreveu exaustivamente sobre o local. Os crânios em Shimao são indícios dos sacrifícios humanos em massa que se tornariam o que Li denomina como “um atributo definidor da civilização Shang” muitos séculos depois (entre 1600 a.C. e 1046 a.C.) antes das dinastias sucessoras colocarem fim à prática.

    Os crânios são apenas um indicativo de que o Portão Leste marcava a entrada para um mundo incomum. Qualquer um que ousasse atravessar o limite — que ficava acima dos poços de sacrifício enterrados — ficaria intimidado por avisos ainda mais nítidos. Diversos blocos de pedra nos muros altos dos terraços foram entalhados com desenhos de losangos, para dar a impressão de que olhos enormes estavam vigiando o Portão Leste. Encravados nos muros de pedra em intervalos regulares, milhares de ornamentos cintilantes de jade verde escuro e preto serviam tanto para afastar o mal quanto para ostentar o poder e a riqueza das elites de Shimao. A abundância de artefatos de jade sugere que Shimao, sem nenhuma jazida própria, importou grandes quantidades da pedra de parceiros comerciais distantes.

    Arqueólogos descobriram 80 cabeças decepadas em poços sob os muros da cidade.

    Foto de Shaanxi Academy of Archaeology

    Todas as vítimas eram meninas adolescentes que podem ter sido sacrificadas durante a cerimônia de fundação da cidade.

    Foto de Screengrab by National Geographic

    Apesar de hoje parecer remota, Shimao não estava isolada do mundo exterior. Havia uma intensa troca de ideias, tecnologias e mercadorias entre Shimao e diversas outras culturas, das estepes de Altai ao norte e até em regiões costeiras próximas ao Mar Amarelo.

    “O importante é que Shimao, juntamente com diversas outras regiões, demonstra que a civilização da China possui inúmeras raízes e que não surgiu apenas do desenvolvimento das Planícies Centrais no segmento intermediário do rio Amarelo”, afirma Jessica Rawson, professora de Arte e Arqueologia Chinesa da Universidade de Oxford. “Foram utilizados diversos elementos provenientes de regiões até mesmo além do norte da China atual — como, por exemplo, estruturas de pedra, mais associada com as estepes do que com as Planícies Centrais. Outros elementos são a criação de rebanhos de bois e ovelhas para a subsistência e a metalurgia. São tecnologias muito importantes adotadas e incorporadas pela China em toda a sua cultura.”

    Vários artefatos encontrados em Shimao só poderiam ter origem em terras distantes. Além do jade, os arqueólogos também encontraram restos de peles de jacaré, provavelmente provenientes de uma região mais pantanosa no extremo sul. Tambores feitos de pele de jacaré provavelmente eram utilizados durante cerimônias ritualísticas, um sinal do papel vital desempenhado pela música na vida palaciana de Shimao.

    Outra descoberta desconcertante para Sun e sua equipe: vinte pedaços idênticos de ossos, finos, lisos e curvados. Os arqueólogos acreditavam tratar-se de pentes ou grampos de cabelo, até que um especialista em música deduziu que os ossos eram os primeiros exemplos de um instrumento de sopro primitivo conhecido como berimbau de boca ou, mais coloquialmente, harpa de judeu.

    “Shimao é o berço do berimbau de boca”, afirma Sun, observando que o instrumento se disseminou por mais de 100 grupos étnicos em todo o mundo. “É uma descoberta importante que fornece valiosos indícios para explorar o passado de populações e culturas remotas.”

    Mistérios e vestígios

    Apenas um pequeno trecho de Shimao foi escavado até agora, portanto, mais descobertas serão feitas. Além das inscrições em pedra descobertas ano passado, os arqueólogos encontraram evidências de bustos humanos e estátuas anteriormente instalados nos muros ao redor do Portão Leste. Segundo Li Min, arqueólogo da Universidade da Califórnia, estamos apenas começando a entender o possível significado das inscrições, mas representações antropomórficas são “um feito bastante inovador e raro”.

    Shimao é o maior assentamento conhecido da Idade da Pedra na China, e apenas um pequeno trecho do local foi escavado. Arqueólogos estão na expectativa de muito mais descobertas.

    Foto de Rachel Vaknin, National Geographic

    Tantos aspectos sobre Shimao permanecem desconhecidos, incluindo seu nome. Arqueólogos ainda tentam entender o funcionamento de sua economia, sua interação com outras culturas pré-históricas e a existência de um possível sistema de escrita de suas elites. “Esses esclarecimentos solucionariam um mistério de longa data”, conta Sun.

    Há algumas pistas, no entanto, que explicariam por que Shimao foi abandonada após 500 anos. Excluem-se causas como terremoto, inundação ou doença. Uma guerra pode ter contribuído para sua extinção, porém os cientistas cada vez mais acreditam que as mudanças climáticas desempenharam um papel fundamental.

    Em 3000 a.C., época da fundação de Shimao, um clima relativamente quente e úmido atraiu uma população em expansão para o Planalto de Loesse. Registros históricos revelam uma drástica mudança para um clima mais árido e frio entre 2000 a.C. e 1700 a.C. Lagos secaram, florestas desapareceram, desertos avançaram e o povo de Shimao migrou para territórios desconhecidos.

    A extremidade antes distante do deserto de Ordos passou a recobrir as margens do rio Tuwei, logo abaixo da entrada de Shimao. O local primitivo ficou envolto em poeira, rochas e silêncio. Contudo, passados 4,3 mil anos, uma das cidades mais antigas do mundo não está mais abandonada e perdida para a história. Suas pedras revelaram uma infinidade de segredos preciosos, desafiando nosso conhecimento sobre o período mais antigo da civilização chinesa. Certamente muitas outras revelações estão por vir.

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