O que são os geoglifos milenares destruídos por trator na Amazônia acreana
Valas de até dez metros de largura abertas por povos indígenas foram aterradas para dar lugar a plantação de milho.
Imagem aérea de 2009 mostra uma das 818 estruturas do tipo mapeadas na Amazônia. Muitos desses geoglifos já foram afetados por construção de estradas, plantações e pastagens. Esta semana, o paleontólogo Alceu Ranzi percebeu e denunciou ao Iphan e ao Ministério Público Federal danos em um dos maiores já encontrados, no Acre.
De Rio Branco (AC) | Primeiro, a pá de uma máquina retroescavadeira aterrou as valas dos geoglifos do sítio arqueológico da fazenda Crixá, em Capixaba, no Acre, a 70 Km da capital Rio Branco, em setembro de 2019. Depois, um trator com uma grade aradora de discos afiados revolveu o solo duas vezes. Por fim, sementes de milho e capim foram jogadas sobre um monumento que fazia parte de uma das descobertas mais enigmáticas da arqueologia amazônica das últimas décadas. A destruição foi denunciada ao Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural e ao Ministério Público Federal pelo paleontólogo Alceu Ranzi, que trabalha na região há mais de quatro décadas.
Pesquisadores acreditam que as valas – com dez metros de largura e um de profundidade – foram moldadas por povos indígenas munidos de instrumentos de madeira. Elas formam várias figuras quadrangulares e circulares, incluindo um círculo com 100 metros de diâmetro e um retângulo de 100 por 150 metros.
Foto de satélite, no alto, mostra o geoglifo Crixá, na fazenda de mesmo nome, ainda inteiro. A imagem mais recente, de setembro de 2019, embaixo, mostra a destruição do geoglifo para dar lugar a plantações.
Pelo menos 818 estruturas gigantescas como essas já foram mapeadas e 523 catalogadas pelo Iphan nos estados do Acre, Rondônia, Amazonas, Mato Grosso e Amazônia boliviana. Acredita-se que as estruturas foram construídas como espaços de sociabilidade a partir do início da Era Cristã até o século 16 ou 17 – possíveis locais de encontros e rituais erguidos quando a região ainda era uma savana, antes do surgimento da floresta que conhecemos. Cercados por valetas e muretas, os recintos estão em áreas de platô, junto a nascentes de água de boa qualidade e sempre a distância de dois a oito quilômetros dos principais rios. Com tamanhos variando entre 50 e 300 metros de diâmetro, as construções são prova de que os indígenas dominavam "precisão geométrica e consistência de medidas" e eram capazes de organizar e instruir muitos braços para escavar e transportar toneladas de solo.
O primeiro geoglifo do Acre foi localizado em 1977, em pesquisas lideradas pelo professor Ondemar Dias, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Dias contou com a participação de Alceu Ranzi, na época um estudante de geografia da Universidade Federal do Acre. Ambos seguiram caminhos diferentes. Dias deu continuidade aos estudos dos geoglifos na década de 1980 e 1990, focado em escavar, catalogar e analisar as cerâmicas. Ranzi tornou-se conceituado paleontólogo e suas pesquisas sobre paleoambientes tangenciam o tema dos geoglifos. Foi ele quem percebeu a monumentalidade dos geoglifos e se empenhou para dar-lhes visibilidade. Em 1986, liderou uma busca aérea e conseguiu, com o fotógrafo Agenor Mariano, as primeiras imagens de um geoglifo do alto – publicadas na imprensa do Acre. Treze anos depois, em 1999, avistou, por acaso, outro geoglifo circular da janela de um avião comercial que viajava entre Porto Velho (RO) e Rio Branco (AC). Impressionado com o que viu, obteve apoio estatal para novos sobrevoos, desta vez com o fotógrafo Edison Caetano. Pela primeira vez, imagens aéreas dos geoglifos circularam na imprensa nacional e internacional.
Névoa encobre a floresta em foto feita durante voo entre Rio Branco e Xapuri, no Acre, em 2009, em uma das regiões com maior concentração de geoglifos da Amazônia. Pesquisadores acreditam que estruturas foram construídos em uma época que a vegetação ainda era de savana.
Estudos sobre essas construções ganharam impulso quando Ranzi e a arqueóloga gaúcha Denise Pahl Schaan (1962-2018), da Universidade Federal do Pará, se conheceram durante um trabalho de consultoria para licenciamento ambiental de um linhão da Eletronorte no Acre. Em 2005, Schaan criou o grupo de pesquisa Geoglifos da Amazônia Ocidental, integrando pesquisadores do Brasil e do exterior. "Uma das questões que movem o interesse do Dr. Ranzi pelos geoglifos é de suma importância não só para a comunidade científica, mas também para a sociedade em geral: se os geoglifos foram construídos quando esse ambiente não era de floresta, mas sim de savana, temos muito a aprender sobre os processos de encolhimento e expansão da floresta durante os últimos milhares de anos, o que traz consequências para as atuais práticas de manejo da floresta", me escreveu a arqueóloga em carta de 2006.
As pesquisas levam a crer que os geoglifos tenham sido abandonados em decorrência da chegada dos espanhóis nas Américas. O desmatamento da região, intensificado desde a década de 1970, possibilitou a visualização das estruturas, mas já foram identificados geoglifos apenas parcialmente expostos em decorrência do desmatamento, bem como outros totalmente cobertos pela floresta. Boa parte do trabalho de localização e identificação só foi possível pelo esforço de pesquisadores, como Ranzi, que utilizaram imagens de satélite disponibilizadas pelo Google Earth.
O paleontólogo Alceu Ranzi, na frente, analisa um geoglifo em sítio arqueológico da fazenda JK, no Acre. Ao fundo, a arqueóloga Denise Schann.
A fazenda, que pertence ao pecuarista Assuero Doca Veronez, presidente a Federação da Agricultura e Agropecuária do Acre, já foi embargada pelo Iphan. Paulista de Ribeiro Preto, Veronez vive no Acre há 39 anos e já foi vice-presidente da Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil. Um dos pioneiros do cultivo experimental de soja no estado, ele defende a expansão da conversão de novas áreas de florestas para o agronegócio para dar maior escala à produção e ampliar as agroindústrias. Veronez possui três fazendas em área contígua, sendo uma arrendada. Ele conta que, no passado, plantou 380 hectares de soja e 300 de milho, mas nega que tenha mandado destruir os geoglifos.
Veronez alega que a destruição decorreu de erro do capataz e do tratorista. Segundo ele, os trabalhadores teriam sido avisados sobre a importância do sítio arqueológico, mas, ao executar trabalho, o tratorista não observou os cuidados necessários e aterrou as valas. “Eu, sinceramente, não sei como resolver isso. Vou aguardar as orientações do Iphan para ver o que pode ser feito para mitigar os danos”, me disse Veronez em entrevista por telefone. “Além disso, o sítio arqueológico é semelhante a centenas de outros existentes na região. Se existem centenas de geoglifos semelhantes, no meu entendimento a gravidade do fato tem uma importância relativa. No local foi plantado milho e hoje é pasto. Sobre embargar minha atividade agrícola, não sei em que isso contribui."
A arqueóloga do Iphan Antônia Damasceno (de camiseta laranja) e Denise Schaan (in memorian) conversam com capataz de fazenda de gado de corte localizada próxima a um geoglifo, no Acre. Schaan criou o grupo de pesquisa Geoglifos da Amazônia Ocidental e foi uma das principais responsáveis por identificar e catalogar os geoglifos da Amazônia.
Ranzi alerta que, além da monumentalidade, os sítios arqueológicos dos geoglifos chamam a atenção pela perfeição geométrica. Ele entende que há espaço suficiente no Acre para o desenvolvimento da pecuária, da agricultura e da manutenção do patrimônio – que não é, diga-se, apenas acreano ou brasileiro, mas da humanidade. "Necessitamos de muito trabalho de educação patrimonial porque acreditamos que a destruição dos geoglifos na fazenda Crixá não tenha sido intencional", disse Ranzi em entrevista à reportagem. Para ele, um desafio a ser trabalhado pelo poder público será a gerência do acervo patrimonial, levando em conta, por exemplo, o uso da terra onde ocorrem os geoglifos para que os mesmos não sejam vistos como um impedimento ao desenvolvimento da atividade agrícola e pecuária, mas como oportunidade de geração de emprego e renda.
O pesquisador assinala que os geoglifos são obras de um povo que viveu na região muito antes da chegada de Cabral e que, por isso, devem ser protegidos e preservados para as gerações futuras. "O registro da destruição de um desses monumentos, obtido por satélites, nos traz preocupação e temos que trabalhar imensamente para a conscientização da manutenção”, diz Ranzi. “É uma destruição muito grave, ao mesmo tempo que nos indica a extrema necessidade de educação patrimonial para que os proprietários tomem conhecimento de que em suas terras existem esses monumentos e é imperiosa a necessidade de preservá-los para o futuro."
Cerâmica do tipo popularmente conhecido como vaso careta encontrada na região dos geoglifos do Acre e fotografada no Museu da Borracha, no Acre – um possível vestígio dos misteriosos povos construtores da Amazônia.
Há quase 15 anos, a superintendência do Iphan no Acre tentou impedir a divulgação de coordenadas geográficas na internet com o argumento de que isso poderia atrair a visitação descontrolada de pessoas e causar danos ao patrimônio. Foi quando Denise Schaan levantou a voz. A arqueóloga que mais contribuiu para as pesquisas sobre os geoglifos do Acre morreu repentinamente, em março de 2018, vítima de esclerose lateral amiotrófica, mas não antes de lembrar que, ao deparar-se com os geoglifos a partir de uma vista aérea, Alceu Ranzi teve a visão que é o sonho de qualquer arqueólogo trabalhando na Amazônia: ele viu algo gigantesco, produto da ação coordenada e engenhosa de sociedades humanas que aqui viveram muitos séculos antes da chegada dos europeus, nesse lugar que, por muitas décadas, foi considerado inóspito para o desenvolvimento de sociedades complexas.
"Por mais que tivesse antes visto do solo, a geometria perfeita dos geoglifos, a associação entre as várias estruturas, é somente realmente percebida do alto”, me disse Schaan naquela carta de 2006. “E isso não deve ser mantido em segredo. Não deve porque acredito que, se os proprietários de fazendas onde se localizam os geoglifos tivessem sabido antes sobre sua existência, pensariam duas vezes antes de cortá-los por estradas ou reaproveitá-los para fazer açudes.”
Nota do editor: uma versão anterior dessa reportagem dizia que o Iphan teria acionado o Ministério Público Federal e a Justiça Federal, mas essa informação não foi confirmada.