Pandemias medievais despertavam medo sobre a existência de mortos-vivos

Análise de sepulturas mostra que enterrar pessoas de bruços foi uma prática que cresceu na época em que epidemias devastavam regiões da Europa onde se falava alemão.

Por Andrew Curry
Publicado 3 de set. de 2020, 13:13 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT

Gravura de Hans Baldung Grien feita no século 16 mostra um mercenário alemão conversando com a morte. À medida que as pandemias assolaram a Europa, boatos sobre mortos-vivos famintos e vingativos se espalharam por regiões onde se falava alemão e podem ter repercutido em práticas funerárias.

Foto de Illustration by DEA Picture Library, De Agostini/Getty

Em 2014, Amelie Alterauge, antropóloga suíça, havia assumido seu novo cargo há apenas alguns dias no Instituto de Medicina Forense da Universidade de Berna, na Suíça, quando foi chamada para examinar um sepultamento incomum em um cemitério centenário que passava por escavações para que se iniciassem obras de construção. Dentre os cerca de 340 sepultamentos no cemitério, um se destacava: um homem de meia-idade, enterrado de bruços em um canto negligenciado do cemitério da igreja. “Nunca havia visto um sepultamento assim”, conta Alterauge.

Os escavadores encontraram uma faca de ferro e uma bolsa cheia de moedas na dobra de seu braço, posicionadas como se tivessem escondidas embaixo de suas roupas. As moedas ajudaram os arqueólogos a datar o corpo entre 1630 e 1650, época em que uma série de epidemias assolou aquela região da Suíça. “Passou a impressão de que a família e o coveiro não quiseram mexer no corpo”, afirma Alterauge. “Talvez já estivesse em estado avançado de decomposição ao ser enterrado — ou talvez tivesse contraído uma doença infecciosa e ninguém quisesse se aproximar.”

A descoberta motivou Alterauge a buscar outros sepultamentos de pessoas de bruços ou viradas para baixo, na Suíça, Alemanha e Áustria. Embora extremamente raros, esses sepultamentos foram documentados em outros locais — sobretudo em regiões eslavas da Europa Oriental. São geralmente comparados a outras práticas, como mutilação ou amarrar pedras para deixar pesados os corpos, que se acreditava evitar vampiros e mortos-vivos por impedir que escapassem de suas sepulturas. Mas Alterauge afirma que ninguém havia pesquisado sistematicamente o fenômeno de sepultamentos de bruços em regiões medievais de língua alemã, distribuídas pela atual Suíça, Alemanha e Áustria.

Agora, em estudo publicado no periódico PLOS One, a equipe de pesquisa de Alterauge revela sua análise de quase 100 sepultamentos de bruços ao longo de 900 anos, documentados por arqueólogos nas partes da Europa de língua alemã. Os dados indicam uma grande mudança nas práticas funerárias, associadas pelos pesquisadores às mortes por epidemias e à crença entre os sobreviventes de que as vítimas poderiam voltar para assombrar os vivos.

Uma sepultura medieval em um cemitério de Berlim revela um homem enterrado de bruços. Os enterros de bruços passaram a ocorrer com mais frequência no fim da Idade Média e podem indicar uma reação às mortes em decorrência da peste bubônica.

Foto de Landesdenkmalamt Berlin, Claudia Maria Melisch

No início e no auge da Idade Média na Europa (aproximadamente entre 950 e 1300), os poucos corpos enterrados de bruços em cemitérios regionais geralmente eram mantidos no centro dos cemitérios das igrejas, ou até mesmo dentro das estruturas sagradas. Alguns deles foram sepultados com joias, roupas finas e instrumentos de escrita, sugerindo que nobres e sacerdotes de alto escalão podem ter escolhido ser enterrados dessa forma para demonstrar humildade diante de Deus. Um exemplo histórico é Pepino, o Breve, pai de Carlos Magno, que teria pedido para ser sepultado de bruços no ano de 768 em frente a uma catedral como penitência pelos pecados de seu pai.

Entretanto arqueólogos começaram a notar um aumento nos sepultamentos de bruços na Europa no início de 1300, incluindo alguns nos cantos de cemitérios cristãos sagrados. A mudança coincide com o surgimento de epidemias devastadoras que assolaram toda a Europa a partir de 1347, matando milhões em todo o continente.

“Algo mudou”, afirma Alterauge, também aluna de doutorado na Universidade de Heidelberg.

À medida que as doenças passaram a matar mais rápido do que as comunidades podiam lidar, a visão e os ruídos dos corpos em decomposição tornaram-se comuns e perturbadores. Cadáveres incham e se modificam, e os intestinos repletos de gás dos mortos emitiam ruídos perturbadores e inesperados. A decomposição e o ressecamento dos corpos passavam a impressão de que os cabelos e as unhas cresciam inexplicavelmente à medida que a carne ao redor encolhia.

“Corpos em decomposição se alteram e emitem estalidos. Pode parecer que estão se alimentando de si mesmos e de suas mortalhas funerárias”, explica Alterauge.

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    Uma ilustração do século 14 retrata o enterro de vítimas da peste bubônica. Existem contos alemães sobre “nachzehrer” (devoradores de cadáveres, em tradução livre), e “wiedergänger” (“aqueles que voltam a andar”), possivelmente inspirados pelas mortes em massa em decorrência da peste bubônica.

    Foto de Illustration by Hulton Archive/Getty

    Para tentar explicar o que observavam e ouviam, os europeus medievais podem ter se apropriado de mitos sobre mortos-vivos que circulavam em comunidades eslavas da Europa Oriental: “não existe o conceito de vampiro na Alemanha”, conta Alterauge, “mas há histórias de cadáveres que se mexem” importadas de regiões eslavas para o leste, para a Europa Ocidental, logo depois dos primeiros surtos de peste bubônica ocorridos em meados do século 14.

    Lógica por trás dos mortos-vivos

    Antes de 1300, histórias medievais na Europa de língua alemã descreviam espíritos solícitos que voltavam para alertar ou ajudar seus entes queridos. Contudo, em uma época de epidemias, essas figuras assumiram outro formato: fantasmas ou mortos-vivos.

    “Essa transição para espíritos malignos ocorre por volta de 1300 ou 1400”, afirma Matthias Toplak, arqueólogo da Universidade de Tübingen, na Alemanha, que não participou do estudo.

    Buscando indícios no folclore medieval, Alterauge e seus coautores encontraram contos sobre nachzehrer: cadáveres inquietos e famintos que consumiam a si mesmos e suas mortalhas funerárias e esgotavam a força vital de seus parentes vivos nesse processo.

    “Fontes históricas dizem que nachzehrer eram resultado de uma morte incomum ou inesperada”, conta Alterauge. “Havia uma lenda de que o primeiro da comunidade a morrer durante uma epidemia se tornaria um nachzehrer.”

    Nessa época de pandemias na Europa, havia uma lógica convincente nessa lenda: quando familiares próximos das vítimas começavam a manifestar sintomas e adoecer poucos dias após o funeral, deve ter passado a impressão de que haviam sido amaldiçoados pelo túmulo.

    “A origem de todas essas crenças sobrenaturais deve ser a morte súbita de vários indivíduos de uma mesma sociedade”, explica Toplak. “Faz sentido culpar espíritos sobrenaturais e tomar precauções para impedir o retorno dos mortos nesse contexto.”

    Igualmente temidos na época eram os wiedergänger (ou aqueles que voltavam a andar) — cadáveres capazes de se erguer da sepultura e perseguir suas comunidades. “Aqueles que haviam feito algo errado, deixaram pendências na vida devido a uma morte prematura, precisavam pagar por erros ou se vingar poderiam se transformar em wiedergänger”, explica Alterauge.

    O novo estudo revela que o número de corpos sepultados de bruços nos cantos de cemitérios cristãos aumentou entre os séculos 14 e 17. Segundo os pesquisadores, acreditava-se, ao menos nessa região da Europa, que sepultar pessoas de bruços era a melhor maneira de evitar o retorno de cadáveres malévolos para fazer o mal.

    No entanto outros arqueólogos dizem que pode haver outras explicações. Em um mundo devastado por pandemias mortais, enterrar a primeira vítima da comunidade de bruços pode ter sido um gesto simbólico em uma tentativa desesperada de evitar mais calamidades.

    “Uma doença muito grave na época poderia ser considerada como uma punição de Deus”, afirma Petar Parvanov, arqueólogo da Universidade Central Europeia de Budapeste, que não participou do estudo. “Sepultamentos de bruços eram uma forma de indicar algo às pessoas presentes no funeral — de algum modo a sociedade tolerou pecados demais e era preciso demonstrar penitência.”

    O próximo passo, conta Sandra Lösch, arqueóloga, coautora do artigo e chefe do departamento de antropologia física do Instituto de Medicina Forense da Universidade de Berna, seria examinar os sepultamentos de bruços para tentar descobrir se há conexões mais nítidas com os surtos de doenças. Por exemplo, a análise do DNA antigo extraído a partir dos sepultamentos de bruços pode permitir o sequenciamento de micróbios específicos de doenças e a análise de isótopos dos ossos e dentes das vítimas “pode apresentar indícios de uma dieta ou origem geográfica diferente do restante da população”, oferecendo uma explicação alternativa para os sepultamentos incomuns.

    Como os registros de escavações locais muitas vezes não são divulgados, Alterauge espera que surjam mais evidências nos próximos anos, à medida que os arqueólogos reexaminarem evidências antigas ou analisarem sepultamentos medievais incomuns com uma nova perspectiva. “Acredito que encontraremos mais exemplos semelhantes”, afirma ela.

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