Em volta ao mundo a pé, escritor encontra civilização de 2 mil anos às margens de rio lendário
Jarros de barro enterrados em plantações de trigo e amendoim guardam os restos mortais do povo de Pyu, cidade da Idade do Ferro às margens do rio Irrawaddy, em Mianmar.
Às margens do rio Irrawaddy, prosperou uma antiga civilização formada por pessoas que decoravam o cabelo com joias, criavam obras de arte com jade e mantinham negócios em locais tão distantes quanto a Indonésia e as Filipinas.
A jornada Para Longe do Éden, de Paul Salopek, escritor e colaborador da National Geographic, é uma odisseia narrativa pelo mundo que segue os passos de nossos antepassados. Esta é a última reportagem enviada de Mianmar.
Mosteiro de Shein Ma Kar, Mianmar | Para chegar ao sagrado rio Irrawaddy partindo de Shwebo, cidade pouco conhecida no norte de Mianmar, no Sudeste Asiático, é preciso seguir ao leste por estradas tórridas.
Ao amanhecer, o suor já escorre pelas pálpebras. Passada uma hora, o sol escaldante esvanece todas as cores do mundo. Na esquina, um ferreiro usa um secador de cabelo como fole para sua forja. O som alto do secador permanece nos ouvidos por quilômetros: o fim do universo, sua incineração, deve fazer esse mesmo barulho.
Sem perceber, entramos no império de Pyu, da Idade do Ferro. A civilização de 2 mil anos possuía cidades com muralhas, estupas altas e ruas de pedra. Hoje, tudo isso permanece adormecido sob campos em tons de argila no vale de Mu.
Naquela época, a vida era farta e rica: uma versão do sudeste asiático de Xanadu. Cidadãos abastados residiam em casas de madeira com telhado de zinco. Faziam suas refeições com utensílios de ouro, decoravam o cabelo com joias e criavam obras de arte usando vidro verde, cristal e jade. O comércio desse povo se estendia por portos distantes nas regiões atuais do Vietnã, Indonésia e Filipinas. No século 1 d.C., embaixadores romanos a caminho da China passaram por aqui. Historiadores da Dinastia Tang relatam que os moradores de Pyu eram budistas pacíficos que abominavam a guerra. Usavam algodão em vez de seda para evitar o sacrifício de bichos-da-seda. Os mortos de Pyu ainda permanecem sepultados, dentro de jarros de barro, sob as plantações de trigo e amendoim deste ano. Ocasionalmente, alguns agricultores se deparam com alguns. São fantasmas de um império fluvial, restos mortais tão antigos e esquecidos que quase não parecem humanos.
Quando chegamos às margens brilhantes de Irrawaddy, os agricultores estavam colhendo pimentas. As mãos ásperas deslizam pelas folhas macias. Eles nos presenteiam com um saco de pimentas, vermelhas como rubis, sem pronunciar uma única palavra. É assim que Pyu se perpetua.
Para chegar ao eterno rio Irrawaddy — a ampla e silenciosa via arterial de Mianmar — é preciso caminhar sobre ossos.
É o caso, por exemplo, dos ossos enterrados em Mawlaik.
Mawlaik é uma pequena cidade portuária localizada às margens lamacentas do rio Chindwin, enorme afluente ocidental do Irrawaddy. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi um distante entreposto colonial de exploração madeireira. Quando os japoneses invadiram a região, os britânicos abandonaram o entreposto sem hesitar (fugiram em pânico para salvar suas vidas). Mais tarde, foi a vez dos japoneses evacuarem Mawlaik quando seus avanços em direção a Índia foram frustrados.
“Muitos japoneses se suicidaram em vez de se render”, afirma U Than Zin, historiador informal da cidade e professor de inglês aposentado, que, por essa razão, ainda gosta de soletrar as palavras. “Muitos dos japoneses que bateram em retirada estavam doentes ou feridos. Percebeu o que eu disse? F-E-R-I-D-O-S. Por isso, eles se enforcaram em casa.”
U Than Zin conta que o povo de Mawlaik atirou os corpos dos japoneses nas crateras dos bombardeiros. Cobriram com lama e construíram novas casas por cima.
“A cidade inteira foi construída em cima de ossos”, disse. “Não me sinto mal por isso. Não vi os mortos. Eu era muito pequeno. Minha família apenas mandou que eu me escondesse. E foi o que fiz. E-S-C-O-N-D-E-R. É só o que me lembro dessa época.”
Nas semanas seguintes, para caminhar até o agitado rio Irrawaddy, foi preciso atravessar muitas pontes antigas de treliças deixadas pelos britânicos. Estão quase desmoronando, mas ainda são utilizadas. Suas placas de aço soltas e enferrujadas rangem e estalam com nossos passos, tocando uma M-E-L-O-D-I-A metálica para um mundo surdo.
Para chegar às margens agitadas do rio Irrawaddy partindo de Ye-U, é preciso seguir os sulcos de irrigação.
Os primeiros sulcos foram feitos há pelo menos 8,2 mil anos, em arrozais antigos onde agora mulheres, com os rostos pintados com a pasta amarela “thanaka”, se curvam. Os sulcos atravessam as altas plantações de laca-japonesa, cujas árvores sustentam uma espécie de canudo de bambu em seus troncos, e se estendem pelas plantações de amendoim.
“Acha difícil caminhar?”, provocam as mulheres na colheita. “Experimente colher amendoins!”
A peanut harvester displays her crop near the town of Ye-U.
The furrow leads back and forth through fields of sesame, cowpeas, kidney beans, pulses. Under a large fig tree on the banks of the Irrawaddy itself, you finally catch up with its maker, a young farmer in a limpet hat who doesn’t give his name. He has been steering his two plow oxen atop the dried riverbed, churning up clods. His forehead is accordioned in frustration. He doesn’t want to be a farmer. “It’s better in the city,” he sighs.
He wants what we all want. To
Os sulcos ziguezagueiam através das plantações de gergelim, feijão-fradinho, feijão-vermelho e outras leguminosas. Embaixo de uma enorme figueira às margens do próprio Irrawaddy, encontramos finalmente o criador dos sulcos, um jovem agricultor usando um chapéu cônico que não nos conta seu nome. O jovem vem conduzindo seu arado com dois bois sobre o leito seco do rio, revolvendo torrões. Sua testa está franzida de frustração. Ele não quer ser agricultor. “É melhor na cidade”, suspira ele.
Ele almeja o que todos almejam: ser como Pyusawhti, o primeiro rei-herói da antiga dinastia pagã, nascido de um ovo de dragão trazido pelo Irrawaddy, que fundou uma capital com 10 mil templos. Em outras palavras, uma história de ambição, um futuro.
Ao alcançar as margens do célebre Irrawaddy, seguimos suas trilhas ribeirinhas.
As trilhas dão voltas como bailarinas entre os vilarejos formados por casas com paredes de bambu. As casas são sustentadas por palafitas, semelhantes a gaiolas. Embaixo delas, são mantidas canoas fora da água. A cada poucos quilômetros, há mosteiros budistas com guardiões em formato de dragões esculpidos em pedra pintada de branco. Esses retiros são interligados por caminhos de peregrinação pavimentados com pedras recobertas de musgo.
No rio, pescadores batem nas bordas das canoas com os remos para chamar os golfinhos-do-irrawaddy, uma espécie sem bico que há séculos colabora com a pesca humana. Agora, os golfinhos aparecem com menos frequência. Restam menos de 80 no rio homônimo. A poluição e a pesca com choques elétricos dizimaram as populações.
O Irrawaddy se estende por quase dois mil quilômetros, das geleiras nas montanhas na fronteira com o Tibete até as águas quentes do mar de Andaman. Em sua margem ocidental, em frente a Mandalay, encontramos o sino de Mingun. O sino gigantesco foi fundido há 210 anos pelo rei Bodawpaya e pesa 55 toneladas. Quem toca o sino com um bastão de madeira recebe bênçãos poderosas. O sino deve ser tocado para marcar nascimentos e mortes, durante epidemias e durante eleições e revoluções.
O rio segue seu curso passando por ele, em meio à dor e à alegria.
Esta reportagem foi publicada originalmente no site da National Geographic Society dedicado ao projeto Para Longe do Éden.
Paul Salopek ganhou dois prêmios Pulitzer por seu trabalho como correspondente internacional do jornal Chicago Tribune. Siga-o no Twitter @paulsalopek.