Gelo derrete e revela flechas atiradas há 6 mil anos na Noruega

A descoberta recorde de 68 projéteis do período Neolítico à Era Viking também traz novas informações sobre como o gelo preserva e destrói descobertas arqueológicas.

Por Andrew Curry
Publicado 29 de nov. de 2020, 08:00 BRT
Um pesquisador examina a haste de madeira de uma flecha que emergiu da camada de gelo ...

Um pesquisador examina a haste de madeira de uma flecha que emergiu da camada de gelo de Langfonne na Noruega. A datação por radiocarbono é utilizada para determinar a idade de muitos objetos presos no gelo que está derretendo.

Foto de Glacier Archaeology Program, Innlandet County Council

ARQUEÓLOGOS DA NORUEGA encontraram dezenas de flechas — algumas com seis mil anos — em uma camada de gelo em derretimento de cerca de 24 hectares, localizada nas montanhas do condado do país.

Expedições para analisar a camada de gelo de Langfonne em 2014 e 2016, anos em que os verões foram especialmente quentes, também revelaram uma grande quantidade de ossos e chifres de rena, sugerindo que os caçadores utilizaram a camada de gelo ao longo de milênios. A técnica de caça permaneceu inalterada, mesmo com a evolução das armas utilizadas, que passaram de flechas com pontas de pedra e conchas de rio para pontas de ferro.

Agora, a equipe de pesquisa está divulgando suas descobertas em um artigo publicado recentemente na revista científica Holocene. No total, os pesquisadores encontraram 68 flechas inteiras e fragmentadas (e cinco pontas de flecha) na camada de gelo em derretimento e ao redor dela, quantidade considerada recorde e a maior já recuperada por arqueólogos em qualquer outro local congelado no mundo. Alguns dos projéteis datam do período Neolítico, ao passo que os achados mais “recentes” são do século 14 d.C.

Vista aérea da parte superior da camada de gelo de Langfonne em derretimento. Os pesquisadores estimam que Langfonne hoje tenha metade de seu tamanho no fim da década de 1990 — e um décimo de sua extensão.

Foto de Glacier Archaeology Program, Innlandet County Council

Embora o número absoluto de projéteis históricos seja impressionante, as descobertas em Langfonne também estão abalando teorias amplamente aceitas na arqueologia de camadas de gelo, uma especialidade relativamente nova, e fornecendo pistas inéditas sobre o potencial do gelo de preservar ou destruir evidências do passado ao longo de milhares de anos.

‘Máquina do tempo’ congelante?

Desde que os arqueólogos começaram a pesquisar sistematicamente áreas com derretimento de gelo há 15 anos, foram encontrados nas camadas de gelo da Noruega à América do Norte artefatos antigos, quase em perfeito estado. Isoladamente, as descobertas fornecem informações sobre artesanato e antigas tradições de caça.

Na verdade, Langfonne foi uma das primeiras camadas de gelo a ser descoberta depois que uma pessoa que caminhava pelo local encontrou um sapato de couro de 3,3 mil anos perto do fim da camada, no verão de 2006, e comunicou o fato ao arqueólogo Lars Pilø, agora pesquisador do Departamento de Patrimônio Cultural do Conselho do Condado de Innlandet e coautor do novo estudo.

Desde que a descoberta alertou Pilø sobre a possibilidade de encontrar artefatos preservados em camadas de gelo nas montanhas, pesquisadores na Noruega e em outros países — existem camadas de gelo semelhantes em Yukon, no Canadá, nas Montanhas Rochosas nos Estados Unidos e nos Alpes na Europa — se perguntam se a distribuição de objetos na camada de gelo e ao redor dela poderia trazer informações sobre como e quando esses locais foram utilizados e como aumentaram ao longo do tempo.

Ao contrário das geleiras, que são basicamente rios congelados que se movem lentamente, as camadas de gelo são depósitos fixos de neve e gelo que podem aumentar e diminuir com o tempo. Locais como Langfonne, presumiram os pesquisadores, se assemelham a uma camada de neve no fim do inverno: conforme as temperaturas sobem, os artefatos aprisionados no interior vêm à tona na ordem em que foram depositados.

Uma flecha da Era Viking encontrada em Langfonne possui uma ponta de ferro preservada, além de estrutura de ligação e amarrações feitas com casca de bétula.

Foto de Museum of Cultural History, University of Oslo

Outra flecha da Era Viking descoberta em Langfonne também possui uma ponta de ferro, além de estrutura de ligação e amarrações feitas com casca de bétula.

Foto de Museum of Cultural History, University of Oslo

“Seria imaginar o gelo como uma máquina do tempo. Tudo que cai sobre ele permanece lá e fica protegido”, diz Pilø.

Isso significa que os itens mais antigos seriam encontrados no núcleo mais profundo da camada de gelo, da mesma forma que os arqueólogos que trabalham com artefatos enterrados no solo acreditam que camadas inferiores de terra contenham artefatos mais antigos. E como se pensava que as camadas de gelo aumentavam constantemente com a queda de neve a cada inverno, as descobertas mais recentes estariam mais perto das bordas da camada.

Os arqueólogos acreditavam que se as camadas de gelo congelaram os artefatos exatamente onde foram perdidos, eles poderiam ajudar a reconstruir as atividades realizadas pelas pessoas naquele local no passado, o tamanho das camadas de gelo em pontos específicos da pré-história e a rapidez com que aumentavam e diminuíam ao longo do tempo.

As flechas de Langfonne surgiram como uma forma de testar a teoria da máquina do tempo.

As flechas e os ossos de rena confirmaram suspeitas anteriores de que as camadas de gelo nas montanhas da Noruega eram locais importantes para a caça de renas: quando esses animais, que gostavam do frio, se retiravam para o gelo para evitar picadas de insetos durante os meses de verão, as pessoas os seguiam com arcos, flechas e facas de caça.

Mas depois de datar por radiocarbono todas as flechas e coletar informações sobre a data de diversos outros restos de renas encontrados no gelo, os pesquisadores perceberam que, pelo menos em Langfonne, a teoria da máquina do tempo não era confiável. Eles acreditavam que os itens mais antigos ficassem presos no lugar desde o dia em que foram perdidos e preservados, assim como os artefatos enterrados no gelo nos séculos posteriores. Mas os artefatos mais antigos em Langfonne, que datam do Neolítico, estavam fragmentados e muito desgastados, como se tivessem sido movimentados pelo gelo ou expostos à luz solar e ao vento por anos.

Flechas de períodos posteriores, como uma flecha de 1,5 mil anos feita com uma concha afiada de mexilhão recolhida de um rio a pelo menos 80 quilômetros de distância, pareciam ter sido disparadas ontem. “Isso indica que algo aconteceu no interior do gelo”, que expôs e congelou novamente os itens mais antigos, afirma Pilø.

E as flechas não pareciam vir à tona em nenhuma ordem específica, conforme esperado se o gelo tivesse formado camadas perfeitas ao longo do tempo. Flechas feitas com milhares de anos de diferença não estavam muito longe umas das outras ao longo da borda do gelo. “A ideia de que evidências mais antigas são encontradas quando a camada de gelo está menor não é verdade”, comenta a arqueóloga Rachel Reckin dos Parques Estaduais de Montana, que não participou da pesquisa. “Parece que a gravidade e a água empurram os artefatos para níveis mais profundos.”

O coautor Atle Nesje, glaciólogo da Universidade de Bergen, diz que milhares de anos atrás, verões quentes provavelmente expuseram artefatos mais antigos que, antes de congelarem novamente, foram levados para a borda da camada de gelo pela água formada após o derretimento. O peso do gelo que pressionava as camadas inferiores pode ter feito com que elas se movessem, levando o conteúdo congelado com elas. Ainda é possível que as hastes leves de madeira das flechas tenham sido sopradas pela superfície por ventos violentos antes de se alojarem nas rochas ou serem cobertas novamente pela neve. Por outro lado, flechas perdidas na neve mais recentemente podem ter permanecido imóveis.

Como as flechas antigas podem ser levadas por águas de degelo e congeladas novamente, o local onde foram encontradas pode estar distante do local onde caíram originalmente. Diante disso, utilizar as flechas datadas por radiocarbono para mapear o tamanho da camada de gelo no passado se mostrou inviável. “Os glaciólogos e arqueólogos que trabalham nas camadas de gelo esperavam que os artefatos pudessem nos dar uma ideia do tamanho ao longo do tempo, mas isso não será possível”, diz Reckin.

Carcajus e vikings

No entanto os pesquisadores ficaram contentes com o fato de que as flechas de Langfonne, uma vez datadas, podiam fornecer pistas interessantes sobre como as pessoas utilizaram a camada de gelo ao longo do tempo. Durante certos períodos, por exemplo, a equipe encontrou muitos ossos de rena, mas poucas flechas. Isso sugere que as pessoas não estavam caçando no gelo; em vez disso, as renas provavelmente estavam sendo mortas por carcajus, que enterram suas carcaças na neve para se alimentarem posteriormente.

Entre 600 d.C. e 1300 — a Era Viking aproximadamente — a datação por radiocarbono revelou uma atividade diferente na camada de Langfonne. “Muitas flechas foram encontradas, mas quase nenhum material que fosse proveniente de renas”, diz Pilø. “Isso não é uma coincidência.” Os humanos trabalhavam arduamente para remover renas mortas do gelo, e retiravam suas peles e chifres para vender como mercadorias.

A rapidez com que novas informações foram obtidas sobre o gelo e seus segredos corresponde à velocidade em que o gelo está desaparecendo. “Estudo as geleiras norueguesas há 40 anos. Foram muitas mudança”, diz Nesje. “É assustador ver a rapidez com que as camadas de gelo podem derreter, de um dia para o outro.”

Com base no crescimento de líquen nas rochas ao redor da camada de gelo, Nesje estima que Langfonne hoje tenha metade do tamanho que tinha no fim da década de 1990 — e um décimo de sua extensão durante a Pequena Idade do Gelo, época na qual as temperaturas globais permaneceram baixas durante séculos, de cerca de 1300 d.C. até os anos 1800.

Devido ao derretimento constante, os arqueólogos precisam agir rapidamente, preservando o máximo de informações possível. “O tempo é primordial. Estamos tentando ser bons cientistas e utilizar da melhor forma os dados obtidos”, diz Reckin. “Cada peça desse quebra-cabeça é extremamente útil, pois nos ajuda a entender a complexidade dos processos envolvidos.”

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