'Cerveja' com alucinógenos pode ter selado relações políticas no Peru antigo

Vestígios de 1,1 mil anos encontrados em uma construção wari sugerem que o consumo social de poderosos entorpecentes ajudava a estreitar alianças.

Por Tom Metcalfe
Publicado 12 de jan. de 2022, 15:09 BRT
Foto de cinco vasos antropomórficos de cerâmica wari, do Peru

Os wari, que dominaram a costa peruana entre 600 e 1.000 d.C., tomavam chica, bebida fermentada semelhante à cerveja, nestes coloridos vasos de cerâmica.

Foto de Kenneth Garrett, Museo Nacional De Arquelogia Antropologia e Historia Peru

A sensação de paz e tranquilidade provocada por uma mistura de drogas alucinógenas e bebidas alcoólicas pode ter sido a chave para o poder político na costa do Peru há um milênio, de acordo com um estudo publicado ontem (11/01) na revista científica Antiquity.

Arqueólogos há muito reconhecem o papel que a chicha, uma bebida parecida com a cerveja e ainda consumida hoje, desempenhou na cultura dos wari, que governaram grande parte da costa peruana e do sul dos Andes entre cerca de 600 e 1.000 d.C. A elite wari dava festas elaboradas para os vizinhos, e grandes quantidades de chicha ajudariam a fomentar os laços políticos e econômicos.

Foto de sementes de molle, usada na produção de chica, vistas por uma lente de aumento

Arqueólogos em Quilcapampa encontraram milhares de pequenas frutas da árvore molle, que eram processadas na fabricação de chica, uma bebida alcóolica tradicional consumida até hoje.

Foto de Lisa Milosavljevic, Royal Ontario Museum

Agora, a descoberta de restos de plantas psicotrópicas em uma ‘cervejaria’ wari pode sugerir que os wari combinavam os dois intoxicantes em uma bebida com impacto político ainda maior.

A descoberta foi feita em Quilcapampa, uma aldeia wari no sul do Peru, onde o ambiente extremamente árido preservou os restos do que os moradores comiam e bebiam pouco antes de abandonar o local no final do século 9 d.C. Arqueólogos encontraram nesse local traços milenares de batatas, quinoa e amendoim, bem como um número impressionante de frutas semelhantes a bagas da árvore molle (Schinus mole), com as quais os wari costumavam fazer chicha com um teor alcoólico de aproximadamente 5%.

Entre as frutas ensopadas ou cozidas que sobraram da chicha, estavam vilcas, sementes psicotrópicas da árvore Anadenanthera colubrina. Evidências arqueológicas mostram que a vilca era usada como alucinógeno América do Sul, mas apenas por elites políticas e religiosas, diz Justin Jennings, arqueólogo do Museu Real de Ontário, em Toronto, Canadá, e principal autor do estudo, que foi parcialmente financiado pela National Geographic.

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    À esquerda: No alto:

    O sítio arqueológico de Quilcapampa era um posto avançado dos wari no sul do Peru abandonado no fim dos anos 800 d.C.

    À direita: Acima:

    Uma equipe de arqueólogos do Peru, Canadá e Estados Unidos escavaram Quilpampa entre 2013 e 2017.

    fotos de Lisa Milosavljevic, Royal Ontario Museum

    Quilcapampa foi colonizada no final do século 9 por um punhado de famílias migrantes wari mais ao norte ao longo da costa e das montanhas, e eles podem ter introduzido a prática de combinar vilca e chicha para fortalecer suas novas alianças com grupos não-wari na região. E se misturar vilca e chicha ajudou os aldeões de Quilcapampa a fazer amigos em uma terra estranha, também pode ser o segredo da ascensão política dos wari.

    “O que os wari fizeram foi dizer: ‘Vamos combiná-los… e quando os juntarmos, teremos essa experiência compartilhada'”, acrescenta Jennings.

    [Veja mais: Rosto de antiga rainha wari é revelado pela primeira vez com tecnologia 3D]

    Experiências alucinógenas compartilhadas

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    Os vasos cerâmicos cerimoniais dos wari com frequência incluem animais da região, como esta onça sedenta.

    Foto de Kenneth Garrett, Museo Nacional De Arquelogia Antropologia e Historia Peru

    Como a droga amazônica ayahuasca, a vilca resulta em uma intensa experiência fora do corpo. Seus efeitos psicoativos são drasticamente enfraquecidos quando ingeridos e, portanto, suas sementes geralmente eram fumadas ou moídas em rapé. Mas há razões químicas para pensar que adicionar sementes de vilca moídas à chicha feita de molle retém seu efeito alucinógeno, explica Jennings.

    “Você era capaz de fazer uma viagem, uma experiência fora do corpo até certo ponto, mas era uma experiência mais longa, mais suave e menos violenta”, disse ele. “Você era capaz de ter aquela sensação de ir a algum lugar, de viajar, mas com amigos.”

    E enquanto a árvore molle usada na chicha crescia nas proximidades, as sementes de vilca teriam que ser importadas dos flancos orientais dos Andes e transportadas pelas montanhas por caravanas de lhamas controladas pelos wari. Portanto, a aldeia wari de Quilcapampa poderia ser conhecida regionalmente como uma espécie de ‘cidade festeira’, ostentando uma chicha cujo efeito era singular.

    Foto de um pedaço de vaso cerâmico antropomórfico segurado por uma mão

    Copos cerâmicos dos wari, como este, escavado em Quilcapampa, podem ser encontrados em todo o Peru.

    Foto de Lisa Milosavljevic, Royal Ontario Museum

    A ideia pode explicar um segredo político dos wari – as pinturas em seus vasos às vezes retratam a árvore vilca com suas distintas vagens de sementes.

    Véronique Bélisle é uma arqueoantropóloga na Faculdade Millsaps, no Mississippi, EUA, que não esteve envolvida no estudo Quilcapampa, mas pesquisou o uso de alucinógenos no Peru antigo. Ela disse que há muito se suspeitava que os Wari consumiam vilca adicionando-a à chicha, mas não havia evidências arqueológicas até agora.

    “Esta pesquisa traz uma importante contribuição para a arqueologia andina ao mostrar que os colonos wari organizavam festas durante as quais serviam chicha misturada com vilca a seus convidados”, escreve Bélisle em um e-mail.

    Foto de pesquisadores sob um sol forte em região aparentemente desértica com montanhas no Peru

    A aridez extrama em Quilcapampa preservou os restos de planta por mais de um milênio, oferencendo pistas importantes sobre a vida na cultura wari.

    Foto de Lisa Milosavljevic, Royal Ontario Museum

    Mas nem todos os arqueólogos estão convencidos. O curador Ryan Williams, do Museu Field, em Chicago, que escavou as ruínas de um centro cerimonial wari em Cerro Baúl, cerca de 160 quilômetros a sudeste, acha a hipótese “intrigante”, mas diz que há poucas evidências do consumo de vilca e chica juntos. Williams dá um exemplo: ele encontrou sementes de algodão em uma antiga cervejaria molle em Cerro Baúl. “Mas não afirmamos que os wari estavam bebendo algodão [chica]”, observa ele em um e-mail.

    Jennings admite que não há evidência direta de que a vilca tenha sido misturada com molle de chicha em Quilcapampa, apenas que ambas foram encontradas nos mesmos depósitos arqueológicos. “Infelizmente, não temos a evidência”, disse ele. Outros estudos procurarão evidências de vilca em resíduos de chicha nos restos de xícaras wari e recipientes de servir. “Isso é algo que adoraríamos fazer, para fortalecer o argumento de que vilca e molle foram adicionados ao mesmo recipiente”, diz ele.

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