Eduardo Góes Neves e a busca por ruínas escondidas na Amazônia revelada

Em parceria com Povos da Floresta, projeto sobrevoará a Amazônia com a tecnologia Lidar para mapear sítios arqueológicos encobertos pela vegetação.

Por Gabi Di Bella, Miguel Vilela
Publicado 15 de mai. de 2023, 13:34 BRT
Retrato de Eduardo Neves feito com técnica de light painting na sala da reserva técnica do ...

Retrato de Eduardo Neves feito com técnica de light painting na sala da reserva técnica do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. 

Foto de Gabi di Bella

Belém, Santarém, Marabá: foi lendo os nomes de cidades na capa da revista semanal de notícias que a mãe comprava, lá nos anos 1970, que o arqueólogo Eduardo Góes Neves, 57 anos, professor-titular e diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, teve seu primeiro contato com a Amazônia. O fascínio com o fato de que a publicação custava mais caro nessas cidades distantes do mundo deste paulistano instigou ele a focar sua vida no estudo da história da região Norte do Brasil.

“Em 1985, eu peguei um ônibus e fui para Belém, são dois dias de viagem; era moleque e me lembro até hoje como era tudo diferente – o cheiro, a comida, a música, o sorvete de bacuri, eu fiquei encantado”, diz Neves. A cruzada de mais de 2,9 mil quilômetros foi somente o início de mais de 30 anos de trabalho para desvendar a história da Amazônia, um lugar que vive sob o signo da incompletude, como se não tivesse história, como escreve Neves no livro Sob os tempos do equinócio, de 2022. 

Hoje, depois de obter mestrado e doutorado nos Estados Unidos, dar aulas como professor visitante em Harvard e universidades da França, Espanha, Argentina e Peru, e coordenar dezenas de escavações, Neves volta suas atenções ao ambicioso projeto Amazônia revelada, que pretende encontrar antigos vestígios de ocupação humana escondidos pela vegetação amazônica e provar que a maior floresta tropical do mundo foi e continua sendo ocupada pelos Povos da Floresta, e o seu patrimônio biocultural precisa ser reconhecido.

A partir de junho 2023 haverão sobrevoos na Terra do Meio (Reservas Extrativistas Rio Iriri e Riozinho do Anfrísio) e no estado de Rondônia, na Serra da Muralha. Serão pequenos aviões equipados com a tecnologia Lidar (light detecion and ranging) vão sobrevoar trechos de floresta emitindo lasers para avaliar se há indícios de sítios arqueológicos no terreno abaixo. Assim, será possível mapear enormes áreas sem a necessidade de intervenção física, como desmatar ou escavar. Trata-se da mesma tecnologia que permitiu desvendar, por exemplo, antigos centros urbanos e pirâmides encobertas pela mata na Amazônia Boliviana, em 2022, e mais de 60 mil construções – entre casas, palácios, rodovias elevadas e outros recursos arquitetônicos – na Guatemala, em 2018. 

O projeto também conta com parcerias com o Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), Museu da Amazônia, Instituto Arapyau, Mapbiomas, Instituto Socioambiental e outras instituições. 

A equipe da National Geographic encontrou Eduardo Góes Neves em seu escritório na Universidade de São Paulo (USP), um pequeno espaço inversamente proporcional ao tamanho das histórias que esse arqueólogo tem para contar sobre uma vida inteira em campo. Nesta entrevista, editada para fins de clareza e concisão, ele conta sobre sua trajetória até o Amazônia revelada, que, segundo ele, pode mudar a maneira como a arqueologia é feita na América Latina e, talvez, no mundo. 

Eduardo Góes Neves é arqueólogo professor titular e diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo e Explorador da National Geographic.

Foto de Gabi di Bella

National Geographic: Como é o projeto Amazônia revelada? E o que Lidar pode trazer de novo? 

Eduardo Góes Neves: O Amazônia revelada tem várias pessoas envolvidas, arqueólogos e arqueólogas, indígenas, moradores não indígenas, ribeirinhos, quilombolas. A ideia é juntar todos neste mapeamento do patrimônio arqueológico da Amazônia usando essa tecnologia disponível, o Lidar, que permite que a gente veja sítios arqueológicos embaixo da floresta.

O Lidar é um sensor que pode voar em um helicóptero, avião ou drone. Ele emite milhares de ondas por segundo. Muitas dessas ondas vão em direção ao solo; em lugares de floresta, a maioria vai bater na copa das árvores e voltar. Só que, como são milhares por segundo, assim como os raios de sol, algumas penetram pelas copas e chegam até a superfície do solo. Quando voltam com uma frequência um pouco diferente é possível identificar se há estruturas no solo, construídas ou cavadas. Essa tecnologia é maravilhosa pois permite identificar estruturas de terra em locais que estão recobertos pela floresta. Sem ela, gastamos semanas para mapear um sítio de 90 hectares e com essa tecnologia você pode fazer isso em poucas horas. 

Entretanto, esta tecnologia custa muito caro. Temos que contratar uma empresa, alugar um avião, são dias nesses locais, combustível, processamento de informações. Então, para montar um projeto dessa escala, - para sobrevoar quatro áreas de 400 km² - somente com uma ajuda financeira muito grande e essa ajuda está vindo da National Geographic que acreditou nesse projeto nada ortodoxo. 

NG: Como esta tecnologia pode ajudar a preservar a floresta? 

EGN: Esse projeto surgiu da nossa aflição. A gente sabe que essa história de destruição da Amazônia e ataque aos povos indígenas começou há 500 anos atrás, só que nos últimos anos vimos, pela primeira vez, o estado brasileiro se colocar abertamente a favor da destruição e do genocídio. Nunca vimos acontecer nessa escala, um ataque tão deliberado. Então pensei: eu tenho que fazer alguma coisa como arqueólogo, pois minha pesquisa tem uma conexão com o passado, o presente e o futuro. Não acho que a arqueologia vai mudar o mundo, nem salvar a Amazônia, mas eu não podia mais ficar preso no meu escritório, onde a gente está agora, falando que a cerâmica amazônica tem 5.800 ou 7.000 anos e tudo bem. Isso é muito importante, mas tem uma outra coisa tão importante, tanto como cidadão quanto cientista: fazer alguma coisa para proteger a Amazônia e, também produzir conhecimento sobre o passado. 

A floresta tem que ser vista como um patrimônio não só natural, mas patrimônio biocultural, porque ela representa essa interação da presença indígena, nos últimos doze mil anos pelo menos, e, mais recentemente também quilombola e ribeirinha. A ideia é usar essa tecnologia para patrimonializar estas áreas, já que a lei brasileira estabelece que patrimônio arqueológico não pode ser destruído, pois se torna da união. Ao identificar esses sítios em diálogo com as populações que vivem ali, que conhecem esses locais, e registrá-los no Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a gente quer criar mais uma camada, ou uma barreira, para proteger essas áreas que já estão muito ameaçadas de destruição. 

NG: Você comentou que parte importante é a participação dos povos originários locais, como eles estão entendendo o projeto? 

EGN: Eles entendem, e muito rápido. Recebemos, por exemplo, uma comitiva do povo Tenharim, que é de língua tupi-guaraní e vive no sul da Amazônia. Um povo que saiu do isolamento no dia que a Transamazônica passou por cima deles, literalmente. Foi como sair da pré-história para o mundo moderno no susto. Hoje eles vivem uma questão muito séria com pressões fundiárias e garimpo. No ano passado, quando conversei com eles sobre o projeto, imediatamente me falaram: “Cara, você tem que voar!”. 

Quando você mostra as imagens, que é uma linguagem muito clara, as estruturas estão ali e eles entendem a questão. Mesmo que eles, às vezes, não tracem uma ligação direta com quem fez aquilo, entendem que tem uma história que é daquela paisagem da qual fazem parte. Eles são guardiões daquilo. 

Os Tenharim, por exemplo, plantam milho, que é uma planta sagrada. Eles chegaram a perder o milho, mas conseguiram recuperar porque encontraram as sementes com o povo Krahô, devido a um projeto da Embrapa. O lado tocante da história é que eles dizem que enquanto puderem plantar milho é que vão continuar existindo como povo. O único lugar que dá para plantar milho na Terra deles é onde tem terra preta, e terra preta é sítio arqueológico. Eles dizem que sabem que isso é dos índios antigos. ‘Não foi a gente que fez, mas aqui a gente planta milho”, contam. Eles sabem que é coisa dos povos indígenas do passado. 

Essa sabedoria é muito importante pois não queremos aplicar esta tecnologia de maneira colonialista, para não reforçar desigualdades. Então nós fazemos um trabalho de consulta prévia em cada localidade antes de sobrevoá-las. Vamos começar por duas áreas da Amazônia, uma na região do médio Guaporé, em Rondônia e no Mato Grosso; e o baixo Xingu, na Terra do Meio, no Pará. Todos os dados coletados serão processados pelo Inpe e ficarão à disposição dos moradores de cada área – serão deles também.

NG: E quais podem ser as primeiras revelações deste projeto? 

EGN: Hoje as estradas são um vetor de destruição da Amazônia, mas eu acho que no passado eram um vetor de promover conexões. Há muitos relatos de pessoas descrevendo estes caminhos. Entre eles o do Capitão Altamirano, cronista da expedição de Lope de Aguirre, do filme Aguirre, a cólera dos Deuses. A expedição aconteceu em 1562 e ele conta que andou mais de 200 km Alto do Rio Solimões adentro, seguindo apenas estradas. Os antropólogos norte-americanos William Balée e Darrell Posey, que moraram em Belém, nos anos 1980 já afirmavam que a relação dos indígenas era dinâmica. Willian afirmava que cerca de 11% da floresta era resultado da atividade dos povos indígenas, não eram matas virgens. 

Então eu acho que vamos encontrar muitas estradas, muitos caminhos, vamos achar sítios em formatos diferentes por toda parte. Muitas eram acompanhadas por árvores frutíferas. Temos essa imagem de que a história do Brasil começou em 1500, com certidão de nascimento – a carta de Pero Vaz de Caminha – e até missa de batismo. Mas, na verdade há uma história muito mais antiga e interessante e acredito que isso pode nos ajudar a nos ver como país, um encontro com nossa identidade mais profunda, qual nosso papel no mundo e no futuro também. 

NG: O que você acha que mudou no Brasil para que este projeto seja possível agora e como ele pode afetar o futuro da arqueologia? 

EGN: Uma vez, saindo de um Congresso, lá em Belém, sobre os 500 anos do descobrimento, no ano 2000, eu e três amigos antropólogos saímos para almoçar. Depois do almoço pegamos um táxi. Entramos os quatro e o motorista dirigia que nem um louco, aí eu falei para ele: ‘Por favor, vai devagar, porque se bater o carro vai acabar com toda a arqueologia amazônica’. Claro que não era só isso, mas há 20 anos atrás ela cabia basicamente no Fiat Uno. 

Os anos de estabilidade política e econômica no Brasil, o final da ditadura, o Plano Real, criaram um contexto interessante que abriram novas possibilidades de pesquisa para a Amazônia. Essa geração, da qual eu faço parte, queria mostrar essas ideias, baseadas no que chamamos de determinismo ambiental, estavam erradas.  Houve uma mudança e hoje temos muita gente fazendo arqueologia. 

Esse projeto pode abrir a possibilidade de temas de pesquisa antropológica por décadas. Pode ser muito bacana pela participação de populações locais – eventualmente teremos arqueólogos indígenas, ribeirinhos trabalhando com a gente. Pois, assim como mundo está acabando por um lado, a gente tem que ter esperança, lutar contra o fim do mundo o tempo inteiro. Quando o Carbono 14 foi descoberto, houve um grande debate que ele iria acabar com a arqueologia. Não acabou. O Lidar vive um efeito parecido, mas eu acho que ele vai ampliar muito o nosso conhecimento, não só na Amazônia, mas no mundo inteiro. Pois vivemos uma corrida contra o tempo, vivendo entre o apocalipse e a esperança. Eu mesmo me considero um otimista, quase tolo. 

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