Na Nova Zelândia, tradição maori dá às baleias encalhadas uma segunda vida em forma de arte
Após morrerem na praia, os mamíferos são recolhidos e esquartejados por grupos preparados para transformar seus ossos em belos utensílios para a população.
Hori Parata conversa com uma baleia morta nas areias de uma praia na Nova Zelândia, como se a recebesse de volta ao lar. “Ela está retornando ao local onde nasceu”, diz ele.
É que as primeiras baleias caminhavam em terra: os biólogos evolucionistas aprenderam isso com os fósseis que mostram um animal terrestre de quatro patas evoluindo gradualmente para um mamífero marinho há cerca de 50 milhões de anos. Parata, de 75 anos, aprendeu com os mais velhos entre os Ngātiwai, tribo maori do norte da Nova Zelândia. O deus da floresta Tane, eles disseram, notou que a baleia, então um animal terrestre, gostava de rios e pântanos - lugares úmidos. Então, Tane deu as baleias como presente para Tangaroa, o deus do oceano.
Parata é um gerente de recursos ambientais Ngātiwai e, para ele, uma baleia morta em uma praia não é apenas um trambolho perigoso de odor forte: é um presente do mar.
Nos últimos 21 anos, ele recolheu cerca de 500 baleias mortas e outros cetáceos nas praias da Nova Zelândia. Parata e uma equipe de ajudantes removem a carne, depois limpam os ossos e dentes dos bichos, que distribuem aos grupos maoris. Muitos dos ossos acabam como joias ou cajados esculpidos no estilo distinto e aberto da arte maori, que muitas vezes apresenta figuras humanas ferozes e bonitas, espirais e anzóis.
Esta ação, em inglês chamada de “flensing”, é considerada hoje uma declaração política - uma expressão muito visível da gestão maori do meio ambiente, após gerações de colonos europeus na Nova Zelândia agindo como bem entendessem. A colheita maori de baleias mortas só foi reconhecida como legal a partir de 1998.
Mas, para Parata, cada baleia morta é também um indivíduo. Ao saudá-las de volta à terra, ele diz: “Suas viagens pelo oceano estão acabadas. Sua vida na carne acabou. Vamos lhe dar uma segunda vida na forma de osso”.
Bênção divina
Em todo o mundo, e não apenas entre os maoris, as baleias encalhadas costumavam ser consideradas bênçãos. Na Islândia, a palavra hvalreki significa "dádiva de Deus", mas traduz-se literalmente como “baleia encalhada”. No país, atualmente, as carcaças de baleias são às vezes rebocadas para o mar e afundadas, diz Gísli Víkingsson, chefe de pesquisa de cetáceos do Instituto de Pesquisas Marinhas e Água Doce.
A situação é bem parecida nos Estados Unidos, onde 589 grandes baleias (baleias de barbatanas e cachalotes) foram confirmadas como encalhadas e mortas entre 2007 e 2017, segundo a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica. Além da tristeza, as baleias mortas são vistas como um problema desagradável e fedorento, especialmente porque as bactérias em sua pele podem ser perigosas para os seres humanos.
Ocasionalmente elas são rebocadas para o mar. Se os oceanos as lançarem em áreas remotas, longe das pessoas, muitas vezes os cadáveres são deixados apodrecendo. Nas praias movimentadas, contudo, uma retroescavadeira pode ser trazida para enterrá-las. Desde um incidente infame no Oregon, em 1970, os administradores optaram sabiamente por não explodir baleias mortas com dinamite.
Na Nova Zelândia, centenas de baleias e golfinhos vêm para as praias a cada ano, de acordo com uma instituição de caridade que tenta salvá-los, o Projeto Jonah. Um ano atrás, 650 baleias-piloto desembarcaram em Farewell Spit. Apesar dos esforços de milhares de voluntários, a maioria morreu. (Um pequeno documentário sobre o evento está aqui, em inglês).
As razões para encalhar são muitas, desde a confusão causada pela poluição sonora no mar até a simples captura de uma maré veloz. Em muitos casos, ninguém sabe por que uma baleia encalhou. Mas Parata diz que os maoris têm uma explicação.
"Uma baleia doente continua afundando", diz ele. “Se uma baleia está sozinha, ela vai para a costa, onde pode se deitar na areia com a cabeça para fora da água, para que possa respirar. Nossos anciãos nos dizem que uma das razões pelas quais eles encalham é que, quando estão feridas, têm medo de se afogar”.
Ossos esculturais
Quando a equipe de Parata chega ao local, eles preenchem a papelada e coletam uma amostra de tecido para testes de laboratório com funcionários do Departamento de Conservação da Nova Zelândia (DOC). Então, usando roupas de proteção que se agitam com a brisa do oceano, eles se dedicam à parte física do trabalho.
Eles afiam suas lâminas e fazem uma oração, rodeando o enorme corpo da baleia. Com as mãos cobertas de grossas luvas pretas, eles operam por entre a pele cinzenta e manchada e a gordura rosa. Embora uma baleia fresca possa ser cortada “como manteiga”, diz Parata, as em estado de decomposição são rígidas e difíceis de cortar, além de abrigarem bactérias que podem causar uma infecção desagradável se entrarem em contato com uma ferida. Por isso as luvas e as roupas especiais, que rapidamente se encharcam de sangue coagulado.
Trabalhando seção por seção, a equipe usa enormes ganchos de metal para descascar a carne e expor os enormes e esculturais ossos de baleia. A carne e os intestinos são enterrados na praia e a gordura é processada - cozida lentamente - para extrair o óleo. Uma vez que os ossos tenham sido esculpidos, eles serão enterrados sob alguns metros de areia limpa, então vermes e outros insetos podem encontrá-los e limpá-los completamente. A limpeza demora de seis meses a um ano. Após o período, são desenterrados, jateados com água e deixados para secar ao sol durante alguns dias.
Enquanto trabalham, Parata e sua equipe também conversam com transeuntes curiosos. Muitas pessoas sentem um impulso de tocar a baleia. “Se precisar, nós lhe daremos um par de botas de borracha e algumas luvas para tocá-la”, diz Parata.
Se levar mais de um dia para extrair todos os ossos, um membro da equipe de Parata dormirá na areia, protegendo a baleia - porque às vezes o interesse público vai além da curiosidade. “Na época em que estávamos desenvolvendo nosso protocolo, as pessoas começaram a cortar a mandíbula ou um buraco na barriga para obter o âmbar”, diz Parata. O âmbar cinza, ou âmbar de baleia, é uma substância produzida por uma espécie de cachalote como parte de sua digestão. Ele é um ingrediente raro e caro de perfumes.
No final, a equipe cobrará do DOC pelo custo da operação. O governo paga com satisfação, já que a colheita também tem o efeito de lidar com uma ameaça potencial à saúde e com o incômodo do público.
"Nós dependemos muito da expertise deles", diz Aaron Taikato, gerente de relações tribais do DOC. "Trata-se de garantir que o mana da baleia seja mantido intacto." Mana, um complexo conceito Maori, refere-se à honra, responsabilidade, poder e autoridade mantida por uma pessoa ou coisa, herdada e recebida.
Festas e funerais
Nos tempos pré-europeus, os maoris comiam baleias encalhadas e a proteína era muito bem-vinda. Mas ainda havia algo de importante em um grande encalhe de baleia. Festas eram associadas a funerais e se o deus Tangaroa estava dando uma festa ao povo, isso poderia pressagiar a morte de uma pessoa importante. Quando Parata era criança, ele diz, "se uma baleia encalhasse na praia, os mais velhos começavam a chorar".
Muito poucas baleias encalhadas são comidas hoje, já que a causa da morte pode tornar a carne imprópria, uma vez que muitas só são descobertas depois de começarem a se deteriorar. Uma exceção seria uma baleia sacrificada pelo DOC, diz Parata. Neste caso, a tribo pode colher um pouco de carne.
Cada baleia é diferente e Parata e sua equipe reconhecem isso dando a cada uma um nome único. Cada pedaço de osso que eles distribuem terá um nome relacionado, e cada item feito do osso também. É uma vida após a morte melhor do que ser enterrada com uma retroescavadeira, pensa Parata.
E ele sente que é o homem certo para escoltar as baleias em sua jornada. Seu nome do meio é Temoanaroa, que significa "oceano longo". Os maoris que descobriram a Nova Zelândia fizeram parte de longas gerações de exploração do Pacífico pelos povos polinésios, uma das maiores viagens humanas de todos os tempos. “Meus ancestrais têm olhado para as baleias há milhares de anos”, diz Parata. "Eles viajaram ao redor do oceano com elas."