Cultivar a maior e mais fétida flor do mundo é tarefa árdua

Por décadas, a raflésia resistiu às tentativas de cultivo fora das florestas tropicais do Sudeste Asiático. Mas os esforços de uma botânica indonésia finalmente floresceram.

Por Shi En Kim
Publicado 10 de jan. de 2022, 07:00 BRT
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Cultivo da flor raflésia é difícil fora de suas florestas tropicais nativas, o que a torna vulnerável à extinção.

Foto de Frans Lanting, Nat Geo Image Collection

Um dos fenômenos da flora mais peculiares do mundo tem início com uma semente do tamanho de uma serragem sob a casca de uma videira lenhosa. Depois de meses ou anos (ninguém sabe ao certo), pode surgir um botão parasita do tamanho de uma bola de golfe e que dificilmente se distingue de seu hospedeiro, a videira da espécie Tetrastigma. Se o botão evoluir para o próximo estágio, se transformará em uma protuberância em formato de repolho. A evolução final é a monstruosa raflésia, uma flor cor vermelho-sangue que possui protuberâncias e emana um odor de carne podre.

O espectro da flor é perturbador — e, em breve, seu destino também poderá ser. As cerca de 30 espécies fétidas conhecidas do gênero Rafflesia, encontradas apenas nas florestas tropicais do Sudeste Asiático, estão ameaçadas pela destruição de habitat e pela colheita ilegal devido a seus questionáveis benefícios medicinais. Diversas espécies estão criticamente ameaçadas de extinção.

Como parasita, a Rafflesia restringe seus indivíduos para não sobrecarregar seus hospedeiros, explica Sofi Mursidawati, botânica do Jardim Botânico de Bogor, na ilha de Java, Indonésia. No entanto, mediante as pressões impulsionadas por humanos que põem em perigo sua existência, Rafflesia — também conhecida como a flor-cadáver — é indiscutivelmente sua própria inimiga quando se trata de autopreservação.

Quando os animais estão ameaçados de extinção, os conservacionistas apressam-se para criar os últimos espécimes  remanescentes em cativeiro. Nesse caso, Mursidawati é a primeira botânica a cultivar flores de Rafflesia de maneira confiável longe de seus habitats de floresta tropical. A botânica está ansiosa em compartilhar suas técnicas para desvendar os segredos desse espécime curioso da natureza — antes que ele desapareça.

Mistério colossal

Os membros do gênero Rafflesia são incrivelmente excêntricos. Primeiro porque as flores são inexplicavelmente imensas, conta Mursidawati. Rafflesia arnoldii detém o recorde de maior flor do mundo, com mais de um metro de diâmetro e nove quilos.

Existem outros gigantes botânicos, e até mesmo outros malcheirosos: as espécies de Amorphophallus, encontradas na Ásia, África e Austrália, também são chamadas de flores-cadáveres. A mais elusiva das flores fétidas na natureza é a Rafflesia e, como os odores de suas congêneres, seu fedor é uma atração irresistível para moscas saprófagas polinizadoras, mas desagradável para a maioria dos humanos.

De acordo com a definição botânica, a Rafflesia mal se qualifica como planta. Não tem caules, raízes ou folhas. Depende completamente de seu hospedeiro, tendo evoluído sem o gene para a fotossíntese há milhões de anos.

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    À esquerda: No alto:

    As moscas saprófagas polinizam a raflésia; uma das poucas criaturas atraídas pela flor.

    À direita: Acima:

    Interior de uma flor raflésia.

    fotos de Frans Lanting, Nat Geo Image Collection

    “O quebra-cabeça fica cada vez mais complicado”, comenta Jeanmaire Molina, bióloga de plantas da Universidade de Long Island, no Brooklyn, Estados Unidos, que fez a descoberta do gene ausente em 2014. “Tem sido um grande desafio estudar a Rafflesia, principalmente conservá-la.”

    O complicado ciclo de vida da parasita e sua misteriosa biologia atormentam os cientistas que desejam evitar sua extinção.

    As flores são o centro reprodutivo das plantas e geralmente possuem as partes masculinas, produtoras de pólen, e as femininas, receptoras de pólen. Os indivíduos de Rafflesia possuem um único sexo, possuindo apenas uma parte das características necessárias para polinização. Para que a fertilização ocorra, duas flores, um macho e uma fêmea, precisam florescer simultaneamente a menos de um quilômetro uma da outra, perto o suficiente para que os polinizadores transportem material genético entre elas. Para complicar ainda mais, o desabrochar dura menos de uma semana, então o período para a polinização é um mero lapso em comparação com os meses ou anos de vida da Rafflesia.

    Mursidawati nunca teve êxito na polinização manual de uma Rafflesia, nem germinou uma a partir de sementes silvestres. Em vez disso, desenvolveu um método alternativo: enxertar tecidos de uma videira parasitada pela Rafflesia com outra planta hospedeira.

    Desabrochando lentamente

    A carreira de Mursidawati na botânica de Rafflesia começou em 2004, quando retornou ao Jardim Botânico de Bogor após concluir seus estudos de pós-graduação no exterior. Ao discutir ideias de projetos, escolheu a sugestão de seu supervisor para cultivar a Rafflesia patma, nativa de Java, em viveiro. Outros botânicos haviam tentado e falhado por 70 anos antes de Mursidawati.

    “Acho que ninguém estava disposto a trabalhar com o gênero Rafflesia por causa das dificuldades”, recorda ela sobre quando começou. “Todos também me disseram que era impossível.”

    Além de aprimorar as técnicas já testadas e comprovadas, Mursidawati também aprimorou um método de enxerto anteriormente aplicado a tramazeiras no Reino Unido.  

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        Longe das florestas tropicais, Mursidawati (à esquerda) cultivou com sucesso Rafflesia patma no Jardim Botânico de Bogor, na ilha de Java, Indonésia, que fica a apenas uma hora de carro da capital do país e é a segunda cidade mais populosa do mundo.

        Foto de Sofi Mursidawati

        Ela primeiro coletou amostras selvagens de Rafflesia na Reserva Natural Pangandaran, a oito horas de carro de Bogor. Foram necessárias mais três horas de caminhada para chegar até as plantas. Ela trouxe sementes de Rafflesia, cortes de raízes de um Tetrastigma parecido com uma videira adornada com botões de Rafflesia e, logo no início, uma planta hospedeira inteira apanhada com as raízes da floresta tropical. Em seguida, fez testes paralelos de plantio de sementes, ressuscitando a planta hospedeira totalmente crescida e atando as mudas de raiz ao florescente Tetrastigma no viveiro.

        Nenhum dos botões originais em suas amostras de Tetrastigma sobreviveu. Em 2006, um novo botão surgiu em uma das plantas hospedeiras, apenas para sucumbir dois meses depois à superexposição à luz do sol, quando um furacão abriu o dossel acima.

        Mais quatro anos se passariam antes que o Jardim Botânico de Bogor recebesse suas primeiras flores de Rafflesia. Um macho foi o primeiro a prosperar no Tetrastigma enxertado de Mursidawati e, um ano depois, duas fêmeas germinaram no hospedeiro transplantado. Ela batizou as fêmeas de Margaret e Elizabeth, em homenagem à família real britânica.

        Na última década e após centenas de tentativas, Mursidawati cultivou à mão 16 exemplares de Rafflesia do botão à flor. Ela reconhece que seus esforços — embora sejam um grande passo para a botânica de Rafflesia — são um pequeno passo para a conservação da espécie. A taxa de mortalidade de botões é de 90%. Ela não conseguiu cultivar nenhuma outra espécie, como a arnoldii, que é encontrada na próxima ilha e é mais fácil de coletar.

        Até agora, as flores em seu jardim tiveram uma infelicidade: não floresceram simultaneamente para que a polinização pudesse ocorrer; consequentemente, suas sementes são inviáveis. Isso significa que as longas linhagens de Rafflesia apanhadas da natureza representam suas últimas gerações no jardim de Mursidawati.

        A estratégia de conservação adequada

        Embora os esforços de Mursidawati sejam um importante apoio para a preservação da espécie, a ênfase excessiva no cultivo vai desviar a atenção do trabalho real de proteger Rafflesia em seu habitat natural, salienta Zulhazman Hamzah, ecologista da Universidade da Malásia, em Kelantan. Suas campanhas ambientais estimularam o governo a criar áreas de floresta tropical protegidas pelo governo federal no oeste da Malásia depois que sua equipe encontrou Rafflesia no local.

        Outros pesquisadores afirmam que o cultivo aumentará a chance de sobrevivência da Rafflesia e aumentará a acessibilidade dessa maravilha natural para o resto do mundo. “Não importa onde ela cresça, desde que seja promovida a conservação desse organismo”, reitera Molina. Mais pessoas vão querer contribuir para a preservação de Rafflesia quando aprenderem a apreciar a curiosidade que ela chama de “o panda do mundo das plantas”.

        De diversas maneiras, a planta inspira iniciativas semelhantes aos do urso tão amado. Assim como o panda, o gigante floral atrai o turismo e é uma fonte de renda para os habitantes. É também uma das flores nacionais da Indonésia. Para Mursidawati, perder a Rafflesia seria perder parte de sua identidade nacional.

        Otimismo duradouro

        É preciso ter uma forte determinação para cultivar uma flora tão exigente quanto a Rafflesia. Mursidawati conta que, entre as centenas de trepadeiras Tetrastigma que cruzam o chão e escalam as cercas do viveiro, apenas três conseguiram gerar flores de Rafflesia. Ela brinca que as videiras hospedeiras provavelmente irão se aposentar, assim como ela.

        Agora que treinou um aprendiz para cultivar a Rafflesia e assumir seu trabalho, Mursidawati pode dormir um pouco melhor. Ela ainda cuida de seus botões de Rafflesia todos os dias e, embora normalmente trabalhe sozinha, nunca está sozinha. É “mais fácil conversar com as plantas do que com as pessoas”, ela brinca — e termina cada uma de suas conversas unilaterais com uma prece especial, sinal de sua esperança sem fim.

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