Como atividade humana altera ciclos de chuvas e secas na Amazônia

Pesquisadores usam imagens de satélite para compreender como funciona o maior sistema hidrológico do planeta – e suas ameaças.

O Rio Amazonas e seus afluentes, vistos da Estação Espacial Internacional, possuem uma hidrologia intrincada e complexa. Uma nova revisão de dados de satélite apresenta uma visão mais completa do ciclo da água da Amazônia, ao mesmo tempo em que traz as consequências de impactos ambientais e possibilidades para futuras pesquisas na região.

Foto de Alexander Gerst
Por Redação National Geographic Brasil
Publicado 20 de abr. de 2022, 17:40 BRT

“Um rio cuja foz é tão grande quanto um mar”, teria dito, deslumbrado o capitão espanhol Vicente Pinzón, para descrever o primeiro encontro de um europeu com o que hoje conhecemos como rio Amazonas. Como conta o jornalista Rodolfo Espínola em seu livro Vicente Pinzón e a Descoberta do Brasil, o enorme fluxo de água doce impressionou o navegador, que atingiu a foz do Amazonas no lugar onde hoje fica a Ilha de Marajó, no Pará. Com base em mapas e cartas da época, historiadores acreditam que o navegador ainda buscava um caminho para o Oriente entre janeiro e fevereiro de 1500. Pinzón participou da viagem pioneira de Colombo, em 1492, como comandante da caravela Niña e batizou o local de Santa Maria de la Mar Dulce, ainda como referência ao tamanho do rio encontrado. 

Naquela época, por mais impressionado que estivesse, Pinzón não poderia imaginar a dimensão colossal que aquele rio do tamanho de um mar guardava por trás da densa floresta tropical que acompanha suas margens. Ao todo, a maior bacia hidrográfica do mundo abrange uma área de 7 milhões de km– fosse um país, seria o sétimo maior do mundo. 

A Bacia Amazônica se estende por oito territórios da América do Sul: Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela. É a bacia com maior volume de água doce do mundo e composta por mais de mil afluentes, quatro deles entre os dez maiores rios do planeta – Madeira, Negro, Japurá e o próprio Amazonas.

Seu tamanho continental faz com que os processos hidrológicos da bacia impactem o ambiente de diversas formas. As altas taxas de precipitação, capacidade de armazenamento de água doce e vazão fluvial fazem dela um ator fundamental no sistema climático global, com grandes contribuições para os ciclos da água, energia e carbono.

Agora, um estudo conduzido por 23 pesquisadores revisou 30 anos de descobertas e apontou as principais mudanças nesses ciclos hidrológicos a partir de dados de monitoramento por satélites. A equipe aponta como a ação humana está influenciando a distribuição de chuvas, secas, período de cheias e até mudando cursos de rios inteiros.

O sol poente ilumina o rio Amazonas e vários lagos em sua planície de inundação nesta fotografia desde a Estação Espacial Internacional de 19 de agosto de 2008. Imagens que retratam o reflexo da luz solar revelam grandes detalhes em águas superficiais – neste caso, a diferença marcante entre o contorno suave da Amazônia e a costa recortada do rio Uatumã.

Foto de Tripulação da Expedição 17 (ISS-17) - NASA

Como funciona a distribuição de chuvas na Bacia Amazônica

Publicada na Reviews of Geophysics em outubro de 2021, a análise identificou áreas onde as precipitações estão ficando mais volumosas, enquanto que, em outras, a seca se faz mais presente. 

Segundo o estudo, modelos hidrológicos e modelos climáticos construídos com base em imagens captadas por satélites projetam mais chuvas e inundações no norte e oeste amazônico, e secas mais severas ao sul e leste da região. Por consequência, a alteração no ciclo das chuvas também influencia as cheias e vazões dos rios, o que afetaria tanto a vida selvagem como as populações humanas. 

“As projeções apontam para a redução das vazões médias dos rios do sudeste da Amazônia. Enquanto que, ao norte e oeste, há um cenário de aumento das chuvas e, consequentemente, das cheias, dos rios que vêm do Peru e chegam no Amazonas”, disse o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rodrigo Paiva, um dos autores do estudo. 

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    Foto do satélite Copernicus Sentinel-2A de 2017 no local onde o rio Amazonas encontra o Oceano Atlântico. A água carregada de sedimentos parece marrom à medida que flui para o oceano aberto.

    Foto de COPERNICUS SENTINEL DATA (2017), European Space Agency

    Mas a alteração na pluviosidade amazônica não significa que as chuvas da região não continuem intensas por toda a extensão da bacia. Os ciclos anuais de precipitação variam significativamente, muito influenciados por latitude, relevo e características atmosféricas. Em média, a pluviosidade anual da região é de 2.200 milímetros, podendo atingir valores superiores a 6.000 mm ao ano em locais chamados "hotspots pluviométricos", na transição entre os Andes e a Amazônia. Para efeito de comparação, a precipitação média anual da cidade de São Paulo é de 1.616 mm.

    “A mudança mais importante que estamos analisando no ciclo hidrológico é a intensificação dos eventos extremos”, disse em entrevista à National Geographic Jhan Carlo Espinoza, doutor em climatologia e pesquisador peruano ligado à Universidade de Grenoble Alpes e ao Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento, na França, e um dos autores do estudo. 

    O que a combinação de observações desde o espaço com estudos in situ estão mostrando é, na verdade, um aumento na intensidade dos processos hidrológicos. “Nos últimos anos, o período de seca na parte sul da Amazônia aumentou em média, um mês. Enquanto que, no norte, as chuvas estão muito mais intensas, causando recordes de cheias nos rios”, relata Espinoza. 

    [Conteúdo relacionado: Mudanças climáticas e atividades humanas já ameaçam áreas inundáveis da Amazônia]

    Como o desmatamento impacta nas chuvas amazônicas

    Segundo Espinoza, a intensificação de algumas variáveis hidrológicas vem crescendo, principalmente desde os anos 2000, com eventos de inundação e seca extrema acontecendo com pouco tempo de diferença uns dos outros. 

    A comunidade científica ainda discute as causas dessas mudanças. Dada à complexidade do sistema hidrológico da Bacia Amazônica, clima e condições atmosféricas de outras partes do mundo podem ter consequências na distribuição de chuvas. “O aumento da temperatura dos oceanos, por exemplo, faz com que chova mais no norte da região", explica Espinoza. "Mas as mudanças climáticas globais não são o único fator, porque isso também está muito ligado com a mudança na cobertura do solo na Amazônia, convertido de vegetação nativa para uso na agropecuária ou mineração. "

    Ao combinar dados de satélites sobre chuvas e uso do solo na região amazônica, foi possível relacionar o nível de desmatamento com a quantidade de precipitação de uma região. E o que os pesquisadores viram é que, quanto mais se desmata, menos chove. “Além de chover menos, a chuva atrasa mais, ou seja, o período de seca fica mais longo”, diz Gabriel Abrahão, pesquisador em meteorologia aplicada na Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, e coautor do estudo. 

    A retirada da cobertura vegetal interrompe o fluxo de umidade do solo para a atmosfera, influenciando diretamente no período chuvoso. Segundo Abrahão, a diferença do início da estação chuvosa é nítida ao comparar regiões próximas em que uma é mais preservada que a outra – pode-se demorar mais de uma semana para a chuva chegar na região mais desmatada. 

    “O interessante, ou talvez preocupante, é que se a Bacia Amazônica como um todo tem um ano em que chove bem, o nível de desmatamento não faz diferença. Chove bem em todo lugar”, diz Abrahão. “Mas, nos anos em que a chuva chega mais tarde, a diferença é enorme, podendo atrasar até 30 dias nos lugares mais desmatados. Isso para a agricultura e a ecologia da região é catastrófico”. 

    Esse incremento no período de seca também está ligado com o tamanho da área desmatada. De acordo com a análise feita a partir de imagens de satélite da Missão de Medição das Precipitações Tropicais, da Nasa, que considera uma área com raio de 28 km, pequenas frações desmatadas – até um limite de 57% de desmatamento – levam a um leve aumento na precipitação. No entanto, ao superar esse limite, a precipitação média começa a cair.  Em grandes áreas (acima de 224 km), o desmatamento leva consistentemente a uma redução linear na precipitação média de 4,1 mm ao ano.

    Risco de extinção da pororoca

    A observação da Bacia Amazônica através de satélites permite a identificação de eventos hidromorfológicos que não seriam compreendidos – ou pelo menos demorariam muito mais tempo para isso – apenas com estudos de campo. Um exemplo é a mudança de curso de um rio que perdeu um trecho de 100 km. 

    A partir de imagens Landsat (programa de satélites da Nasa para observação da Terra que atua em pesquisas de recursos naturais), pesquisadores observaram a recente captura de quase toda a extensão do rio Araguari, no Amapá, pelo rio Amazonas.

    À esquerda: No alto:

    Imagens feitas a partir de dados do satélite Landsat do rio Araguari em 1999 e em 2017 mostrando a captura de quase todo o fluxo de água deste rio pelo Rio Amazonas. Os painéis foram desenhados usando o Global Surface Water Explorer. 

    À direita: Acima:

    O Rio Araguari costumava fluir diretamente para o Oceano Atlântico. Começando com um grande evento de inundação em 2011, o canal de Urucurituba cresceu até este imenso canal de água ser conectado à foz do Amazonas, por volta de 2015.

    fotos de Pekel et al., 2016

    “Um rio com uma vazão enorme, que desaguava no mar, e que simplesmente sumiu em um período de dois, três anos”, comentou Abrahão. Segundo os autores do estudo, o Araguari, cuja vazão era cinco vezes a do rio Doce e que tinha um fluxo em sua foz de 900 metros cúbicos por segundo, começou a drenar para outro lugar até desaparecer, deixando centenas de pessoas sem água, meio de subsistência e transporte.  

    O motivo do sumiço: margens destruídas pela criação de búfalo, três hidrelétricas e canais de irrigação para fazendas próximas. “O desvio se deu por ações humanas como a degradação da vegetação e o pisoteamento dos animais, que criaram as condições para que se formasse o canal, levando a água quase toda para o Amazonas”, explicou Abrahão.

    O evento causou não só o sumiço do rio como também acabou com a pororoca, um dos fenômenos mais famosos na Amazônia. Derivado do tupi, pororoca significa “estrondo” e corresponde a um acontecimento natural quando há a formação de grandes e violentas ondas no encontro das águas de um rio com o oceano. “O trecho do Araguari era onde aconteciam as maiores pororocas da Amazônia e agora isso simplesmente não existe mais, porque o rio secou”, comentou Alice Fassoni-Andrade, doutora em recursos hídricos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e coautora da pesquisa.

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    Estudar a Amazônia desde o espaço

    Nas últimas décadas, a Amazônia tem sofrido grandes mudanças ambientais. As extensas áreas de floresta tropical desmatadas para a conversão em pastagens, terras agrícolas ou mineração impactaram não só o regime de chuvas na região como também processos como a evapotranspiração (transferência de água para a atmosfera por evaporação da água do solo e transpiração das plantas), transporte de sedimentos, vazão fluvial e cor dos rios. 

    Muitas dessas mudanças e características só puderam ser percebidas depois do início da era da exploração espacial. “A Amazônia serviu como grande laboratório para o desenvolvimento das técnicas de monitoramento remoto por satélites”, afirma Rodrigo Paiva, coautor do estudo. Ele explica que a região funcionou como um laboratório ideal por ter sinais hidrológicos fortes, como chuvas muito intensas e volumosas, rios enormes e de grande amplitude no nível da água, até mesmo com cores diferentes entre eles. “Foi um local muito adequado para testar e desenvolver essas técnicas. Permitiu um estudo do ambiente e entendimento dos processos hidrológicos que não seria possível apenas com medições em campo."

    À esquerda: No alto:

    Imagem do sensor MODIS do do Programa EOS (Earth Observing System) do trecho médio/baixo do rio Amazonas.

    Foto de NASA Earth Observatory
    À direita: Acima:

    Imagem do rio Amazonas e afluentes capturada pela missão Copernicus Sentinel-1 em 2019.

    Foto de Copernicus Sentinel data (2019), European Space Agency

    O monitoramento dos eventos hidrológicos na Amazônia demanda dados de difícil aquisição in situ – seja pela necessidade de recursos humanos e financeiros ou pelo difícil acesso. Uma vez que o principal meio de transporte na bacia é através dos rios, o que pode significar dias de viagem para uma medição, o sensoriamento remoto – como é chamado o uso de sensores de satélites para captação de informações desde o espaço – permite fazer levantamento de dados sem precisar estar no local, o que facilita a logística dos estudos. 

    “Até 20 anos atrás a gente não sabia o quanto chovia, de verdade, na Amazônia”, diz Alice Fassoni-Andrade, coautora da pesquisa. “Na região dos Andes, por exemplo, seria necessário uma rede de monitores em terra colossal para conseguir pegar toda a distribuição espacial e temporal das chuvas.” 

    Satélites como ferramentas de preservação

    O alcance de visão desde o espaço também é relevante em questão de governança, e contribuir na criação de políticas públicas, principalmente em esforços de preservação. 

    “Conseguir relacionar, por exemplo, qual é o impacto que a ação humana tem na Amazônia é fundamental, porque muitas dessas coisas são, inclusive, criminosas”, afirma Gabriel Abrahão, referindo-se, principalmente, aos garimpos.

    Para Tainá Conchy, mestre em clima e ambiente pela Universidade Estadual do Amazonas e integrante do Laboratório de Recursos Hídricos e Altimetria Espacial da Amazônia, que não participou do levantamento, a importância do sensoriamento remoto para estudar a região está em entender o equilíbrio ecológico amazônico preservar o bioma. “A Bacia Amazônica é importantíssima no sistema climático global. Logo, toda e qualquer mudança, seja climática, natural ou antropogênica, pode desencadear modificações que afetarão não só o ciclo hidrológico da Amazônia, como o clima de forma geral.” 

    Entre 30% e 40% da água que chove na Amazônia volta para a atmosfera pela transpiração das plantas e evaporação do solo e vegetação úmidos. Esse processo é o principal responsável pela manutenção da umidade da floresta tropical e de outras partes do continente sul-americano. 

    Não fosse a umidade da Amazônia, as regiões da bacia do rio da Prata (Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil, Paraguai, Uruguai, Argentina e Bolívia), por exemplo, seriam desérticas. O ciclo hidrológico da bacia evita um fenômeno recorrente em outros locais do mundo que ficam em latitudes próximas aos trópicos de Capricórnio (Hemisfério Sul) e Câncer (Hemisfério Norte). Grandes áreas continentais nessas regiões costumam receber pouquíssimas massas de ar úmido e ficam secas, como os desertos de Monjave e Sonora, na Califórnia e no Arizona, respectivamente, nos Estados Unidos.

    Além disso, a Amazônia abriga aproximadamente 40% da floresta tropical do mundo e cerca de 15% da biodiversidade terrestre global. a população local também conta com os rios como corredores de transporte e utiliza esses ambientes para a subsistência. As águas superficiais também são uma importante fonte e sumidouro de dióxido de carbono.

    Imagem de alta resolução da topografia da planície de inundação do Rio Amazonas feitas pelo programa Landsat.

    Foto de Alice Fassoni-Andrade

    Novos satélites, novos dados

    Até então, os dados de sensoriamento remoto usados no estudo vêm de missões com diferentes objetivos, mas cujos dados puderam ser reutilizados para entender o ciclo hidrológico na Amazônia. Entretanto, os pesquisadores apontam para a necessidade de missões lançadas especificamente para estudos hidrológicos, a fim de melhorar as leituras espaciais. 

    Neste ano, os lançamentos do satélite Surface Water and Ocean Topography (SWOT) e da missão Nasa-Isro (Nisar), pela Nasa, trarão novas oportunidades de estudos na área, com equipamentos dedicados para observações hidrológicas. O Nisar, por exemplo, terá cobertura global e períodos de revisita de 12 dias (intervalo de tempo em que o satélite passa pelo mesmo local), aumentando a disponibilidade de dados. Além de possuir sensores dedicados capaz de monitorar as águas superficiais (rios, riachos, lagos) da Amazônia com mais clareza. 

    Já o SWOT permitirá uma observação sem precedentes ao longo da rede fluvial e dos principais lagos e várzeas. Dedicado a capturar amostras de rios com mais de 100 metros de largura e de lagos acima de 250 m2, o satélite será “um avanço para monitoramento das águas trans-fronteiriças e áreas úmidas na Amazônia”, diz Fassoni-Andrade. Para a pesquisadora, esse é mais um passo para que as técnicas de monitoramento remoto se popularizem e possam servir como base nas decisões acerca da região. “A esperança é que, no futuro, assim como usamos a meteorologia no dia a dia, esses dados possam dar essa abertura para pensar em políticas públicas para as pessoas que vivem na região e para a preservação ambiental."

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