Cheias recordes atingiram cidades na bacia amazônica este ano – mas a vida seguiu
O Relógio Municipal de Manaus é refletido nas águas que inundaram a cidade durante as cheias da bacia do Amazonas em junho de 2021.
Nota do editor: as fotos desta reportagem foram produzidos com apoio do Fundo de Emergência Covid-19 para Jornalistas da National Geographic Society.
É ao som do saxofone que Jorge da Silva Machado, 66 anos, recebe o fotógrafo Christian Braga em sua casa. Morador do bairro de Educandos, em Manaus, capital do Amazonas, Jorge embala com música a vida em meio as correntes do rio Negro, o maior afluente da margem esquerda do rio Amazonas, que invadiu sua casa neste ano. Jorge foi uma das pessoas que o fotógrafo acompanhou durante o período em que as águas afetaram o cotidiano de cidades já fortemente afligidas pela pandemia desde 2020.
As cheias do rio Negro são comuns, mas em 2021 bateram a marca recorde de 30,02 metros altura, atingida no dia 01 de junho, a maior desde 1902, quando o dado começou a ser registrado. O rio Solimões, que após encontrar o rio Negro na região de Manaus recebe o nome de Amazonas, também bateu recordes de cheia: 20,8 metros, marca registrada na cidade de Manacapuru (AM), a maior desde o começo da série, iniciada há 49 anos. Medições da altura do rio Amazonas nas cidades de Itacoatiara, Careiro e Parintins também foram as mais altas já aferidas.
Para Jorge, que nasceu e cresceu às margens da maior bacia hidrográfica do mundo – a do rio Amazonas –, a cheia, apesar de histórica, foi só mais uma à qual teve que se adaptar. “Todo ano é sempre a mesma coisa, mas nunca tinha alagado tanto assim, todo mundo teve que fazer marombas para sair de casa, a minha é um pouco mais alta e por sorte só atingiu uma parte”, disse à reportagem. Marombas são pontes de madeira que este ano muitos amazonenses tiveram que construir, dentro e fora de casa, para se movimentar durante a cheia. Segundo a prefeitura e a defesa civil de Manaus, foram construídos mais de 13 mil metros de marombas em 21 bairros da capital.
Seu Jorge, músico e morador do bairro Educandos, em Manaus, foi impactado diretamente pela maior enchente da história. Vive numa casa de madeira que teve que se readaptar ao aumento da água. Na foto, toca saxofone durante visita do fotógrafo em maio de 2021.
Dona Maroca é vacinada na comunidade de Terra Brasil, na cidade de Anamã, 165 km a oeste de Manaus, no Amazonas, em maio de 2021. A cheia histórica não impediu o trânsito dos agentes de saúde, que atenderam de barco as diversas comunidades da região.
Bairro Educandos, na cidade de Manaus, durante a maior cheia da história dos rios Solimões e Negro, na bacia do Amazonas, em maio de 2021. O bairo é diretamente impactado com as questões ambientais que a cheia provoca na cidade, como aumento do lixo, esgotos e casas perdidas.
No bairro de Educandos, um dos maiores da cidade, com cerca de 15 mil habitantes, a população passou a receber cestas básicas e um auxílio de R$ 150,00 para sobreviver durante a cheia. As águas acabaram ajudando Jorge, que trabalha com reciclagem, trazendo latinhas (que boiam quando estão vazias) e madeira, que ele recolhe e vende para a torra da castanha. “Um pouquinho ali, um pouquinho aqui, e a gente vai se virando”, disse. Ele também planta feijão, milho, cria porcos e galinhas, “mas estou pondo à venda os porcos; a ração deles está muito cara.” No entanto, sua paixão mesmo é a música – Jorge coleciona instrumentos, como bateria, guitarra, violão, teclado e saxofone. “Estou aprendendo a tocar lambada, mas ainda sou um amador”, diz.
Jorge conta que já construiu seis casas na região, todas altas, em cima de palafitas. De tão acostumado a essa vida, ele nem considera estranho que, durante a cheia, tenha pescado um pirarucu dentro de casa – apareceram quatro, mas apenas o menor, de 12 kg, foi apanhado. “Aqui só podemos construir casas de madeira e altas, não podem ser de alvenaria, porque a casa tem que se adaptar às águas.” Um estilo de vida moldado às estações amazônicas: o verão, com o período de seca – entre os meses de junho e dezembro –, e o inverno, período de chuvas – dezembro a maio.
Mas o volume de água não foi o maior desafio enfrentado pelos amazonenses. O recorde no nível das águas veio depois de mais de um ano e meio em que a cidade viveu o caos no sistema de saúde, com duas ondas de covid-19 que chegaram a vitimar mais de 13 mil pessoas no estado. O filho de Jorge foi uma dessas vítimas. “Faz sete meses que ele faleceu, foi um choque para mim; ele tinha 30 anos e era bem próximo.”
Cemitério principal da cidade de Careiro da Várzea (AM), durante a cheia da bacia do Amazonas em maio de 2021. O cemitério ficou completamente debaixo dágua.
Cruz de cemitério de Careiro de Várzea completamente coberta de água das cheias da bacia do Amazonas.
Encoberta pela água, placa em chão de escola municipal de Careiro da Várzea instrui sobre regras de distanciamento na pandemia, em maio de 2021. As aulas foram interrompidas por causa da enchente.
Criança brinca na praça principal da cidade de Careiro da Várzea, vizinha a Manaus, no Amazonas, em maio de 2021.
As cheias não impediram o avanço da vacinação no estado. Agentes de saúde utilizaram barcos e voadeiras para chegar em cidades como Anamã – população de cerca de 14 mil habitantes e banhada pelo Solimões –, onde moram a professora Maura da Costa Avelino, 29 anos, e sua mãe, Maria, de 69. “Com a cheia já estamos acostumados; mesmo sendo de grandes proporções, ela não é capaz de fazer um estrago tão grande como foi o provocado pela pandemia”, disse Maura em entrevista. Para ela, as enchentes também facilitaram o isolamento da cidade, localizada na beira do rio Amazonas, 165 km a oeste de Manaus, diminuindo o número de casos na região. Maria não sofreu muitas perdas materiais para as águas, mas perdeu o pai para a nova doença.
Ela se preocupa com a devastação do meio ambiente e acha que as cheias devem piorar nos próximos anos. “Nós moramos numa área de várzea; por sorte, conseguimos salvar tudo, mas ano após ano o rio sobe. Vejo que outras partes do Brasil estão sendo afetadas por secas também; se os governantes não tomarem uma atitude isso vai piorar”, alerta.
Já na outra direção, 15 minutos de lancha para o lado leste de Manaus, vive Valcemir Cardoso da Silva, 54, conhecido como Tio Capu. O comerciante, torcedor do Flamengo, conta que construiu marombas dentro de casa e chegou a perder muitas coisas, muitos móveis que não teve tempo de levantar – só conseguiu salvar geladeira. “Desta vez acho que subiu mais rápido; um dia, achando que a água ia baixar, dormi seco e acordei molhado, o chinelo tinha saído boiando no rio”, lembra.
Anamã, no interior do Amazonas, durante as cheias da bacia do Amazonas em maio de 2021. A cidade, que é conhecida como Veneza da Amazônia, ficou totalmente debaixo d'água.
Cotidiano dos moradores na cidade de Anamã durante a maior cheia da história do rio Amazonas. Carros são substituidos por barcos e canoas. Anamã, Amazonas.
Moradores da cidade de Careiro da Várzea, município do Amazonas, tiveram que adaptar suas casas com madeiras compradas ou doadas, durante a cheia do rio Amazonas.
Tio Capu conta que a família teve sorte, ninguém se contaminou com a covid-19 e hoje já estão vacinados. Durante a pandemia, chegou a fazer serviços de táxi, levando doentes em sua lancha, antes de perdê-la em um acidente que sofreu com a enteada e o genro durante a cheia. “A lancha virou, e quase que não consegui sair. Por sorte me tiraram e ninguém se machucou, ia ser um acidente feio!”
“Quando a enchente vem aqui, é tudo água. Não tem terra, é tudo água, nós falamos que no cemitério da cidade é onde se morre duas vezes, todo ano quando a água vem se morre de novo”, diz Tio Capu. As imagens feitas por Christian Braga demonstram isso, com o reflexo das cruzes, lembrando que há um outro mundo logo abaixo da linha d’água. A cidade vista de cima é uma grande Veneza Amazônica, com ruas onde só é possível passar navegando. Tio Capu continua vendendo gás e água e espera em breve conseguir comprar outra lancha. Para ele a enchente foi bem parecida com as de 2009 e 2015. Sobre o futuro, não há como prever, “quem vai determinar é Deus”, diz ele.
O que na percepção dos moradores do Amazonas é mais um ano construindo marombas, para Flávio Mendes de Oliveira, chefe do 1º Distrito de Meteorologia de Manaus, é consequência da Oscilação Decadal do Oceano Pacífico. Esse fenômeno cíclico provoca estiagem no Sudeste do Brasil e mais chuvas no Norte. Segundo ele, tudo isso está acontecendo devido a uma questão oceânica, relacionada ao Pacífico Norte.
Para Flávio, o período que se denominaria como seco está registrando muita chuva. Em agosto, choveu três vezes mais que o normal para a região. “Estão sendo registradas chuvas muito intensas na região desde 2020. E modelos indicam a possibilidade de retorno para o final do ano”, explica o meteorologista. “Há previsão de La Niña e, com isso, possibilidade de cheias para 2022.”
Chama a atenção que, em 119 anos de análise destes dados, dos 11 maiores registros da altura do rio Negro, sete ocorreram na última década.
11 maiores registros no nível do rio Negro no porto de Manaus
1. 2021 - 30,02 m
2. 2012 - 29,97 m
3. 2009 - 29,77 m
4. 1953 - 29,69 m
5. 2015 - 29,66 m
6. 1976 - 29,61 m
7. 2014 - 29,50 m
8. 1989 - 29,42 m
9. 2019 - 29,42 m
10. 1922 - 29,35 m
11. 2013 - 29,33 m
Neste ano, a alta do rio atingiu a vida de mais de 455 mil pessoas, em 52 dos 62 municípios do Amazonas, provocando principalmente perdas materiais. Mas, para além dos fenômenos com nomes difíceis, a experiência de quem convive com os rios sempre passa por driblar as dificuldades. Jorge, por exemplo, planeja construir uma casa de madeira que boie. O curral onde ele cria os porcos já é assim. “A ideia é construir uma casa que flutue, assim não há problema com o sobe e desce dos rios”, diz ele.
Já para Tio Capu, as águas vêm para limpar tudo que passou. “A enchente veio e lavou toda a terra”, diz ele, “levou embora o que aconteceu no passado.”