Sylvia Earle: a dama dos mares
A exploradora residente da National Geographic Society conversou com a revista entre suas palestras na Rio+20.
Os oceanos têm uma voz. Feminina, sensível e experiente. “É hora de agir. O que fazemos hoje é pouco, um sussurro, não um grito. Os próximos dez anos talvez sejam os mais cruciais dos próximos 10 mil”, alerta a oceanógrafa e ambientalista americana Sylvia Earle a respeito da urgência de se criar políticas para a conservação das águas, esgotadas pelas sobrepesca e poluição.
Sylvia falou com a revista no Rio de Janeiro, em uma pausa de suas palestras na Rio+20, no restaurante de um hotel na Barra da Tijuca – ao mesmo tempo, circulavam no hall dezenas de chefes de Estado, muitos que, durante a conferência, ouviram claramente o recado de Sylvia. “Os oceanos controlam o modo como funciona o mundo. E estão negligenciando a importância deles no estudo das mudanças climáticas”, diz. Ainda assim, ela mantém o otimismo: “Se eu pudesse escolher um momento para nascer, seria hoje, em que nossas ações terão um impacto efetivo no futuro”.
A senhora pode falar um pouco de sua vida e da maneira como vê o mundo hoje?
Como uma mulher de 77 anos, gostaria, antes de mais nada, que todos se dessem conta de que venho de um planeta muito diferente, que tinha, por exemplo, menos CO2 na atmosfera e bem mais peixes nos oceanos. Viviam aqui 2 bilhões de pessoas, em vez dos atuais 7 bilhões. Havia mais árvores. O mundo que vejo hoje é resultado de uma transformação rápida e brutal no ambiente, que coincide com o tempo de minha vida.
Muito do que fizemos nos trouxe benefícios: a revolução na medicina, a tecnologia das telecomunicações. Ainda assim, estamos em um momento crucial na história, porque, pela primeira vez, somos capazes de nos ver em perspectiva. Nas últimas décadas, aprendemos mais sobre nós mesmos que durante toda a história anterior da humanidade. Quando eu era pequena, não havia a possibilidade de quantificar o CO2. Não sabíamos da existência de cadeias montanhosas nos oceanos, as maiores formações geológicas da Terra. Nem das fontes hidrotermais. Não sabíamos que os continentes se deslocam, e que isso é parte de nosso passado e de nosso futuro, pois esses processos determinam as transformações naturais do planeta. Com o conhecimento, a ciência, nos demos conta de que nós, seres humanos, somos o vetor da mudança, e desencadeamos transformações em âmbito planetário que podem não ser nada benéficas.
Como surgem os oceanos nesse cenário?
Todos nós somos donos do alto-mar. É como o ar. É um bem comum, e será bom que permaneça intacto e saudável, pois é a garantia de nossa existência. Os oceanos contribuem com a geração de 70% do oxigênio atmosférico. Essa é uma das grandes descobertas do século 20, algo que vínhamos subestimando. Nada se compara ao plâncton em termos de captura de carbono e geração de oxigênio. Todavia, segundo alguns estudos, desde 1950 houve um declínio de 40% no fitoplâncton oceânico. O mesmo se dá com a redução dos peixes; a tendência de declínio é clara. Não protegemos os sistemas que nos mantêm vivos. O que precisamos é agir antes que seja tarde demais, antes que os tubarões e os atuns desapareçam, antes que os corais tenham se extinguido – no Caribe, 80% deles sumiram desde 1950. Quando a gente olha para os números, fica óbvio de que há algo errado no planeta. E, ao contrário do que muita gente acredita, o tamanho dos oceanos não é suficiente para evitar um colapso.
Quais seriam as boas políticas para a preservação dos mares?
Várias ações precisam ser postas em prática. Entre elas, uma rede global de áreas marinhas protegidas. Proteção da biodiversidade em águas internacionais. Pesquisas coordenadas da acidificação dos oceanos e de seus efeitos. Expansão e implementação de acordos institucionais para a proteção do ambiente marinho. E estabelecimento, sempre que viável e por consenso de todos os interessados, dos procedimentos de manejo nas áreas de pesca, com base no respeito aos ecossistemas e aos pescadores artesanais.
Circula entre alguns conservacionistas a ideia de que, se conseguirmos proteger de modo efetivo 10% dos oceanos, será possível salvar as populações de peixes. É verdade?
Admitindo-se que o oceano é o coração do planeta, basta transpor a imagem para nosso corpo: alguém consegue viver com 10% do coração? Não funciona assim. Mudando de metáfora, não faz sentido achar que, depois de gastar 90% do que você tem no banco, os 10% restantes continuarão rendendo o mesmo que antes. No litoral de muitos países, a poluição fez com que alguns tipos de plâncton proliferassem e consumissem todo o oxigênio, criando zonas anóxicas, que provocam a morte dos peixes. São zonas sem vida, e já existem 400 delas nos litorais do mundo.
A cada ano, buscamos uma meta de pesca de 100 milhões de toneladas, mas bem menos que isso chega aos mercados. Esse total é atingido apenas se considerarmos a pesca acidental – as criaturas que ficam presas e são descartadas das redes de arrasto, puxadas por traineiras que varrem o leito do mar. Os peixes nobres cobiçados pela pesca não estão sozinhos.
Sem eles, tendemos a achar que os oceanos não passam de rocha e água, mas, na verdade, são constituídos de rocha, água e muitos tipos de organismo. É a parte viva do oceano que torna hospitaleira, para nós, essa pequena rocha em que vivemos no universo.
A tecnologia que permite a exploração econômica dos mares não favorece a conservação?
Na pesca, estamos usando redes de plástico super-resistentes, com as quais recolhemos a floresta inteira, quando tudo o que queríamos eram alguns poucos pássaros canoros. Você fica com esses pássaros e joga fora o resto da floresta, e também a rede, que continua a matar. Esse é um dos problemas mais graves nos oceanos. Se você está em um submarino, a última coisa que quer é topar com uma dessas redes. O dano aos mamíferos marinhos é colossal. Um estudo da organização WWF chegou a um número pavoroso: 300 mil mamíferos marinhos – golfinhos, baleias, focas, leões-marinhos –, assim como centenas de milhares de aves e tartarugas, morrem todos os anos presos nessas redes.
Semanas atrás, eu estava nas Bahamas. No último mergulho de nossa expedição, surgiu do nada um golfinho solitário. Consegui ver a cara dele emergindo das profundezas. Havia cerca de dez pessoas na água. Ele foi se aproximando cada vez mais e aí passou a nadar em volta. Estávamos todos muito próximos dele, tão perto quanto estamos aqui. E ele ficou nos espreitando. Esse contato maravilhoso durou uns 20 minutos. Era o tipo de golfinho mais conhecido, o nariz-de-garrafa. Um animal lindo, mas em seu dorso havia um corte, já cicatrizado. Ele quase perdera a cauda.
Não acho que seja proposital que pescadores tenham a intenção de matar mamíferos marinhos, mas, com raríssimas exceções, todos os lugares em que mergulhei nos últimos 20 anos tinham lixo plástico. Em geral, equipamentos de pesca descartados.
Devemos ser pessimistas?
Tenho grande confiança de que a vida, de alguma forma, vai sobreviver. As bactérias estão por aí há, literalmente, bilhões de anos. Agora aqui estamos nós. Não apenas nos últimos 10 mil anos, mas, sobretudo, no último século, aceleramos mais e mais a destruição das circunstâncias que nos permitem continuar vivos. Um dos termos usados para designar esse período é Antropoceno. Mas, às vezes, digo que nasci no “pré-plasticoceno”, pois não havia nada desse material quando eu era criança. O plástico foi uma dádiva a nossa civilização, e também um fardo, porque só observamos sua praticidade, não seu dano ao ambiente.
É possível remover o plástico dos mares?
Como vamos recolher cada pedacinho moldado dele? Não existe nenhum método que nos permita baixar uma espécie de ímã no oceano e retirar esse material sem levar junto as coisas boas. Então, resta apenas um trabalhoso processo de coleta, possível apenas nas áreas de muita concentração de dejetos. Ainda é preciso avaliar a viabilidade prática disso, sobretudo em locais como a Grande Mancha de Lixo do Pacífico. Ou, no Atlântico, o Mar de Sargaços. São áreas em que as correntes formam gigantescos redemoinhos, que carregam o lixo e as substâncias tóxicas, os quais vão se concentrando à medida que se aproximam do centro. Enfim, essa coleta pode fazer diferença quando se trata de material mais volumoso. Por exemplo, o que vamos fazer com os objetos carregados pelo mar durante o tsunami no Japão? É uma avalanche de material; há até um enorme pedaço de cais que chegou à costa americana do Oregon, carregando consigo criaturas que não são nativas daquela região no Pacífico.
No dia a dia, que escolhas podemos fazer?
A alimentação é um parâmetro sempre oportuno de nossas decisões. Os peixes, por exemplo. Melhor consumir aqueles que estão mais embaixo na cadeia alimentar, como a tilápia, a carpa, o bagre. Não é bom para o oceano que a gente se alimente de atum, peixe-espada, tubarão, garoupa ou caranha. É o mesmo que comer carne de tigre, com a diferença de que esses peixes estão em posição superior a de qualquer carnívoro terrestre, pois as cadeias oceânicas são bem mais longas e complexas.
Além disso, os peixes são mais velhos que qualquer outro animal criado. Raramente, uma galinha tem mais de 1 ano de vida. Nenhuma vaca é abatida com mais de 2 anos, pois ninguém quer carne dura. No entanto, alguns dos peixes encontrados hoje em supermercados levaram 100 anos para crescer. O peixe-relógio precisa de 30 anos para ficar adulto – já se constatou que alguns deles chegam a mais de 200 anos. O peixe conhecido como hoki, ou granadeiro-azul, vive nas profundezas do mar, a milhares de metros da superfície. Antes do fim do século 20, ele era inacessível. Agora é usado pelo McDonald’s em seus sanduíches.
Então, em nossa santa ignorância, comemos animais que não apenas deveriam permanecer nos oceanos como também acumularam ao longo da vida tudo aquilo que não queremos para nós. Quanto mais além na cadeia alimentar, mais velha é a criatura, e maior a concentração nela de mercúrio, substâncias tóxicas, inseticidas – tudo isso que lançamos no ar e na água.
Não damos a devida atenção à conservação por que não conseguimos nos livrar de nossos hábitos?
Basicamente, ainda somos as mesmas criaturas – em termos físico, intelectual e emocional – que éramos 10 mil anos atrás. Como caçadores-coletores, fazíamos uso do mundo ao redor, sem nos dar conta de que havia limites. Impomos nossa vontade à natureza por questão de sobrevivência. Todos os animais agem assim. A minhoca faz isso, e o cervo, o urso, o caranguejo, a lagosta. Você vive ou morre, consegue ou não prosperar em função da habilidade de se apropriar dos recursos a sua volta. Portanto, é natural que as pessoas cacem e pesquem para se alimentar. É um mundo no qual ou se come ou se é comido.
No entanto, há algo crucial que nos distingue: sabemos que existem limites, que podemos viajar pelo espaço, ou mesmo entrar no Google Earth, e ver a Terra como um ponto azul maravilhoso no universo. Outros animais podem ficar intrigados com tantos pontos brilhantes no céu, mas apenas nós compreendemos o que são as estrelas e os planetas, e também sabemos que estão além de nosso alcance como moradia. Não podemos nos mudar para lá – pelo menos no futuro imediato. Então, temos de fazer as pazes com a natureza, com a água, as aves, as florestas, os peixes, enfim, com os sistemas que permitem a vida no planeta Terra. Caso contrário, estaremos condenados.
Por último, uma pergunta pessoal: qual é o lugar no mundo onde a senhora mais gosta de mergulhar?
Qualquer local de 50 anos atrás... (Risos.) Certos lugares na Flórida que conheci quando criança nem existem mais... Foram aterrados. Mas adoro voltar aos que já conheço, pois é como reencontrar velhos amigos. É o caso de Abrolhos, na Bahia. Ou a costa de Nova Jersey, onde vi o mar pela primeira vez. Quando tinha uns 3 anos, fui derrubada por uma onda ali. Era o oceano me chamando.