Para salvar as onças do Pantanal, este projeto transformou caçadores em guias de ecoturismo

Inspirado pelos safáris africanos, o projeto Onçafari tenta converter uma antiga cultura de caça em um novo paradigma de conservação.

Por Victor Moriyama
Publicado 15 de out. de 2018, 12:35 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Grupo de turistas usa binóculos e câmeras para tentar avista uma onça-pintada na fazenda Caiman, no ...
Grupo de turistas usa binóculos e câmeras para tentar avista uma onça-pintada na fazenda Caiman, no Pantanal Sul-matogrossense.
Foto de Victor Moriyama
O projeto Onçafari se inspirou nos safáris africanos para avistar onças. A ideia é se aproximar pouco a pouco dos animais, até que se sintam a vontade perto dos veículos do safári.
Foto de Victor Moriyama

“As gralhas-do-pantanal estão muito agitadas, a Yara (onça) está lá na frente”, diz Edu, que se agita no interior do carro enquanto muda a posição da caminhonete em direção ao som agudo das aves. As gralhas do-pantanal são típicas do bioma e denunciam a presença de predadores com seu canto. Estamos percorrendo as estradas do Refúgio Ecológico Caiman, onde Carlos Eduardo Fragoso, o Edu, é biólogo do Onçafari. Há três anos e meio ele trabalha com conservação da onça-pintada na região de Miranda e Aquidauana, no Mato Grosso do Sul, uma área historicamente marcada pela caça de animais silvestres.

Nos anos 2000, a fazendeira Beatriz Rondon foi detida após a circulação de um vídeo nas redes sociais em que comemorava o abate de um felino acuado em cima de uma árvore. Ela foi multada pelo Ibama e pagou fiança de R$ 28 mil para deixar a delegacia após acusação de organizar safáris de caça ilegais na região. “A repercussão do vídeo foi grande e o pessoal deu uma maneirada, mas ainda se caça muita onça nas fazendas daqui”, responde um dos guias do projeto quando pergunto sobre a frequência das caçadas locais. 

No topo da cadeia alimentar, a onça-pintada possui um cardápio variado que, além dos bovinos, vai de pequenos tatus a antas e jacarés. Entretanto, a pressão que as fazendas exercem sobre o bioma – com desmatamento da vegetação nativa para plantio de pastagem e criação de gado – implica num encurralamento territorial do felino e na intensificação de sua alimentação dentro dos pastos.

Introduzido na região há mais de 250 anos, os bois são presas fáceis. Ao contrário dos outros animais do cardápio dos felinos, o gado criado para consumo humano tem seus instintos de sobrevivência pouco desenvolvidos, e um indivíduo proporciona refeições fartas para até quatro dias a uma única onça. “Os felinos ensinam seus filhotes a caçarem os bois porque os bovinos representam pouco gasto energético. Os fazendeiros não querem ter esse prejuízo e por isso contratam os caçadores”, conta a bióloga Lilian Rampim durante o café da manhã na sede da fazenda Caiman, na zona rural de Miranda. 

Caçar onças é uma tradição cultural tão antiga quanto enraizada no Pantanal e no resto do país. “O peão que caça onças ganha status entre os fazendeiros, fica conhecido, famoso. São contratados porque elas comem facilmente os rebanhos e provocam um enorme prejuízo financeiro”, comenta um dos guias locais. A proibição da caça de animais silvestres ocorreu tardiamente no Brasil, em 1967, mas ocorre ilegalmente a todo vapor devido à falta de interesse e investimentos do governo federal nas estruturas de fiscalização da Polícia Federal e dos órgãos ambientais. Assim, é difícil avaliar em números e estatísticas a quantidade de animais abatidos clandestinamente na região pantaneira desde a proibição. Mas matar as onças pode ser um tiro no pé. Um amplo estudo publicado em 2017 revelou que o prejuízo causado por reses abatidas é muito inferior ao potencial turístico que a presença de onças na região pode trazer. 

Ameaça legal

Para além da clandestinidade, uma nova ameaça preocupa a classe conservacionista brasileira. O Projeto de Lei 6268/2016 do deputado Valdir Collato (MDB-SC) – membro da “bancada da bala”, como é conhecida a frente parlamentar composta por políticos brasileiros que defendem a liberação das armas de fogo – propõe a liberação da caça de animais silvestres e sua comercialização deliberada em todo território nacional. “Esse PL quer acabar com as já frágeis espécies ameaçadas de extinção sem que haja nenhuma punição. É um retrocesso enorme para toda sociedade, não só para nós que lutamos pela conservação”, lamenta Mario Haberfeld, criador do Onçafari.

Este guia de ecoturismo do projeto Onçafari era um dos principais caçadores de onça da região de Miranda, no Mato Grosso do Sul. Hoje, usa seu conhecimento sobre os felinos para mostrá-los a turistas.
Foto de Victor Moriyama

A paixão de Haberfeld pelos felinos transcende as noções que temos sobre o amor entre homem e animal. “Conservação é igual Fórmula 1, uma equipe pequena consegue correr, mas quanto mais recursos melhor será seu desempenho”, explica Haberfeld, que deixou de ser piloto de Fórmula Indy para se tornar um dos mais importantes conservacionistas do Brasil. O Onçafari, que completou sete anos em agosto de 2018, surgiu de suas viagens à África, em especial ao Parque Nacional do Kruger, na África do Sul, onde fazendeiros notaram que os animais selvagens se habituavam pouco a pouco à presença dos jipes como parte da paisagem e não representavam uma ameaça à fauna.

Logo, esses criadores de gado e ovelhas perceberam o potencial do ecoturismo em suas propriedades e alavancaram campanhas para atrair turistas do mundo todo interessados em observar e fotografar os animais. A proposta deu certo – apenas no último ano fiscal, entre 2016 e 2017, o Kruger recebeu mais de 1,8 milhões de turistas. “Viajei a África toda para ver de perto os animais e as formas de habituação dos felinos nas fazendas. As práticas de lá me inspiraram muito”, disse Haberfeld. 

Para criar um modelo de negócio de sucesso de longo prazo, Haberfeld uniu conservação, pesquisa científica e ecoturismo no mesmo lugar. Em 2012, o índice de turistas que avistavam os felinos era de apenas 8%. Ano passado, 88% dos hóspedes tiveram avistamentos de uma ou mais onças durante as suas estadias. “Fazer conservação no Brasil é muito difícil, não há ajuda nem interesse do governo. Cada colar de monitoramento com GPS que instalamos nas onças custa em média US$ 5 mil e duram no máximo doze meses”, disse Haberfeld.

Apesar do desinteresse governamental no tema, o ecoturismo tem crescido no Refúgio Ecológico Caiman, mas ainda representa apenas 30% do orçamento anual do Onçafari. Alguns turistas se envolvem com a conservação e passam a integrar o programa “adote uma onça”, com contribuições financeiras periódicas que permitem a continuidade dos trabalhos de monitoramento. Haberfeld pretende expandir este modelo de conservação para outros biomas e outras espécies como o lobo-guará, mas esbarra em dificuldades financeiras e de recursos humanos. “Uma das maiores dificuldades é o treinamento de pessoal que dura no mínimo dois anos até que compreendam as noções básicas para trabalhar com a onça-pintada”, aponta Haberfeld.

Crânio da onça Garoa, o primeiro felino a ser acompanhado pela equipe do Onçafari.
Foto de Victor Moriyama

Para encontrar o maior predador da América do Sul é preciso observar atentamente os sinais deixados por ele. Pegadas, fezes frescas, cheiro de urina acentuado e o canto estridente da gralha-do-pantanal – que denuncia a presença de predadores ao emitir um som agudo – são os principais indicadores da presença do felino e servem de guia para nossa busca. Patrulhadores e defensores de seus territórios, os machos chegam a abranger áreas de até 345 km². Já as fêmeas percorrem 143 km² e procriam em média a cada dois anos.

Tive a sorte de flagrar um casal caminhando pela estrada principal logo no primeiro dia em que cheguei na sede do Onçafari. “Sorte de fotógrafo”, diz Edu ao meu lado, enquanto compara as pranchas de identificação com as pelagens do casal a partir das minhas fotos. Para não depender da sorte, os pesquisadores instalam armadilhas fotográficas ativadas a partir de um sensor de calor que capta a movimentação dos animais. As imagens são essenciais para a conservação e monitoramento das espécies. “Elas são os grandes espiões do campo para entender as movimentações do animal. Seria quase impossível identificar qual onça passou por determinado local sem a ajuda dessa tecnologia”, diz Edu.

As onças acompanhadas pelo Onçafari – como o macho Pinche ou a fêmea Yara – são categorizadas, entre outras maneiras, pelo padrão de manchas na lateral do corpo e na face, daí a importância das imagens captadas pelas armadilhas fotográficas que geralmente são instaladas próximas a carcaças de animais abatidos, nos pontos comuns de avistamento e nos locais com ocorrência frequente de vestígios, como pegadas e árvores arranhadas. Com ajuda dessas ferramentas, especialistas produzem relatórios mensais com estatísticas de avistamentos, avaliações nos comportamentos dos indivíduos e mapas de circulação que permitem entender as áreas de incidência e deslocamento dos felinos. Ao longo dos sete anos de atuação, 126 onças já foram catalogadas pelos biólogos do Onçafari.

As onças-pintadas são animais de hábitos noturnos, mas, na fazenda Caiman, é comum avistá-las durante o dia.
Foto de Victor Moriyama

Com o endurecimento da fiscalização, a caça ilegal vive um processo de míngua, ou pelo menos é feita de forma ainda mais clandestina do que no passado. Muitos peões das fazendas especialistas na caça do felino que possuíam sua própria matilha se viram diante de um ofício obsoleto e perigoso. “Quando o pessoal do projeto de conservação Gadonça me chamou para trabalhar com eles, eu morri de alegria. Foi a partir daí que comecei a mudar para o turismo e graças a deus não saí mais”, relata um dos guias de ecoturismo da Caiman que no passado era conhecido como exímio caçador da região.

A união de turismo e ecologia é uma arma poderosa capaz de transformar as tradições culturais de uma região: “Ninguém quer trabalhar numa atividade ilegal hoje em dia”, comenta Haberfeld com olhar esperançoso em direção ao horizonte. Safaris que habituam os animais silvestres a presença dos carros, não aos humanos, e proporcionam o desenvolvimento do turismo sustentável são o melhor caminho para a conservação num país tão rico quanto complexo como o Brasil?

Como amante da natureza, não tenho dúvidas de que os animais acompanhados pelo Onçafari vivem livremente em seu habitat natural nas condições mais próximas ao ideal. Saio de campo satisfeito com a experiência de três avistamentos de qualidade em apenas cinco dias de trabalho. As boas condições de liberdade e cardápio variado para a onça-pintada indicam um bom equilíbrio da cadeia alimentar na região sul do Pantanal. Se projetos de conservação como esse floresçam em outros biomas brasileiros e a população se aproxime do rico patrimônio natural se apropriando do ecoturismo, talvez então possamos diminuir num futuro não tão distante, a triste lista de animais ameaçados de extinção no país.

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