Lítio, o metal que move a tecnologia da era digital – mas a que preço?
Com a demanda crescente por baterias eficientes, a Bolívia sonha com a riqueza que o lítio presente sob um enorme deserto de sal pode gerar. Mas será que os bolivianos serão beneficiados?
Confira a reportagem completa na edição de fevereiro da revista National Geographic Brasil.
No início de uma manhã de sábado, Álvaro García Linera, o vice-presidente da Bolívia, me recebe na espaçosa antessala do seu gabinete com vista para a Plaza Murillo, no Centro de La Paz. Afável, de cabelos grisalhos, o político de 56 anos é conhecido no país por seu comprometimento com as ideias marxistas. Em nossa conversa, porém, ele soa mais como um aguerrido defensor do capitalismo.
O negócio que lhe interessa gira em torno do lítio. Um metal indispensável para o atual mundo movido a baterias, o lítio é crucial para o futuro da Bolívia, assegura o vice-presidente. Em sua estimativa, daqui a meros quatro anos o lítio vai se tornar “o motor da nossa economia”. Todos os bolivianos vão ser beneficiados, acrescenta ele, pois a exploração do metal lhes permitirá “sair da pobreza e capacitá-los em áreas científicas e tecnológicas de modo que possam participar da elite intelectual na economia global”.
Todavia, como bem sabe García Linera, nenhuma proposta de usar o lítio como salvação econômica da Bolívia é possível sem levar em conta o local de origem desse metal: o Salar de Uyuni. Esse deserto de sal, com cerca de 10.500 quilômetros quadrados, e uma das paisagens mais deslumbrantes do país, quase certamente vai ser alterado – se não irremediavelmente avariado – pela mineração do metal que jaz sob a sua superfície.
Inclinando-se até ficar bem perto de mim, García Linera me pergunta: “Já esteve no Salar de Uyuni?” Quando respondo que pretendo ir para lá em seguida, o vice-presidente abandona o ar de indiferença polida e parece tomado de nostalgia. “Quando for”, recomenda, “faça uma excursão noturna. Estenda um cobertor bem no meio do salar. E leve um aparelho de música.” Embora esteja sorrindo, ele é enfático: “Pink Floyd. Ouça algo do Pink Floyd. Deitado e de cara para o céu”. O vice-presidente então faz um gesto com a mão, indicando que aí tudo ficaria claro para mim.
A VIAGEM DE CARRO desde a capital mais alta do mundo até o deserto de sal dura o dia todo – uma excursão rodoviária pelo país mais pobre da América do Sul. Saindo de La Paz, a gente sobe até El Alto, o baluarte do segundo maior grupo indígena do país, os aimarás. Nas sete horas seguintes, a estrada é uma descida constante até nivelar numa altitude de 3 600 metros, por uma extensão de Cerrado quase despovoada, só de vez em quando animada por lhamas e suas primas ágeis, as vicunhas.
Chego ao salar, o termo em espanhol para “deserto de sal”, pouco antes do pôr do sol. Por cerca de 2 quilômetros, dirijo pela superfície lisa até ficar evidente que estou no meio do nada. Quando paro e saio para enfrentar o frio cortante, concluo, pesaroso, que não vai dar para estender um cobertor sob as estrelas ao som do Pink Floyd. Ainda assim, a paisagem é alucinante: quilômetros e quilômetros de terreno todo branco, incessantemente nivelado, sua aridez arrematada pelo céu azul sem nuvens e, ao longe, os picos andinos avermelhados. Motocicletas e veículos de tração especial cruzam a superfície alva sem caminhos delimitados, rumo a destinos desconhecidos. Aqui e ali, indivíduos solitários cambaleiam, como se estivessem num estupor pós-apocalíptico, contemplando o que o vice-presidente boliviano chama de “o infinito tabuleiro branco”.
Em algum ponto no horizonte, invisíveis, tratores fazem a manutenção dos tanques de evaporação do deserto de sal. Os tratores vão acabar vindo nessa direção – mas, por enquanto, ninguém sabe quando isso vai ocorrer. O que, de fato, sabemos é que sob o maior deserto de sal do mundo há outra maravilha, uma valiosa reserva com talvez 17% de todo o lítio do planeta. E a exploração desse depósito é considerada pelo governo da Bolívia – um país no qual 40% da população vive abaixo da linha de pobreza – um caminho para sair do seu beco de infortúnios.
A Bolívia continua presa aos grilhões do passado. O primeiro aimará a ser presidente, Evo Morales, eleito pela primeira vez em 2006, mencionou no seu mais recente discurso de posse “os 500 anos que sofremos” em consequência do colonialismo espanhol – um regime brutal de escravização e expurgo cultural. Desde então, a geografia e o desgoverno conspiram para frustrar a reinvenção do país. As perspectivas econômicas da Bolívia sofreram um duro golpe quando, em 1905, teve de ceder o seu litoral no Pacífico após perder uma guerra com o Chile. Enquanto países vizinhos, como o Brasil e a Argentina, foram se tornando mais prósperos, a Bolívia viveu décadas de golpes militares e de corrupção. As duas principais populações indígenas, os quéchuas e os aimarás, continuam relegados à condição de cidadãos de segunda classe pela elite dominante de ascendência europeia.
Em resumo, a Bolívia é um país marcado pela autoestima precária e pela falta de um sentido compartilhado de destino nacional. A sua história econômica caracteriza-se por incessantes ciclos de crescimento e declínio bruscos. Ainda que isso seja comum em nações dependentes de recursos naturais, outros países da América Latina – por exemplo, o Chile – conseguiram administrar tais recursos de forma competente. Em sua ânsia por lucros rápidos, mas transitórios, os governos bolivianos muitas vezes acabaram por abdicar do controle de seus minérios em favor de empresas estrangeiras. Como me disse o vice-presidente, “ao longo da nossa história, não desenvolvemos nenhuma cultura capaz de conciliar matérias-primas e pensamento inteligente. O resultado é um país com abundantes recursos naturais, mas muito pobre em termos sociais”.
ENTRE OS PAÍSES latino-americanos, a Bolívia permanece com uma história volátil e pouco memorável. O papel secundário que desempenhou em Butch Cassidy poderia ser visto como metáfora dessa condição de semianonimato. Nesse filme de 1969, hoje um clássico, a Bolívia era o sonolento refúgio de dois ladrões de banco americanos. Glamourizados por Hollywood, os fora da lei simbolizam algo menos romântico na Bolívia – a impiedosa espoliação de seus recursos por gringos vindos de nações bem mais ricas.
Um trem crivado de balas que a dupla teria roubado é uma atração turística de Pulacayo, um fantasmagórico vilarejo mineiro – as minas foram fechadas em 1959. O fim do povoado foi um golpe para Uyuni, um centro de distribuição de minério a cerca de 20 quilômetros dali. Todavia, na década de 1980, enquanto pesquisava eventuais atrações que pudessem rivalizar com o Lago Titicaca, um agente de turismo de La Paz – Juan Quesada Valda – chegou ao salar.
Até então, o deserto de sal era visto pelos bolivianos como pouco mais que uma anomalia geográfica. “As pessoas temiam que, se andassem por ali, acabariam por se perder, morrer de sede”, explica Patricio Mendoza, o prefeito de Uyuni.
Quando viu o Salar de Uyuni, Juan Quesada teve um estalo, conta a sua filha, Lucía. “Lagos existem por toda parte, mas um deserto de sal não se acha em nenhum outro lugar no mundo”, diz ela. Formado em arquitetura, Juan Quesada iniciou a construção da primeira de várias pousadas, erguidas quase só com blocos de sal, no vilarejo de Colchani. Aventureiros de outros países começaram a afluir. Casamentos, aulas de ioga e corridas de carros foram organizadas ali. Hoje, as pousadas estão lotadas, ao passo que Uyuni virou um centro cheio de pizzarias e de mochileiros. “Quase 90% da nossa economia têm a ver com o turismo”, diz o prefeito da cidade.
Tudo isso para dizer que, na longa e taciturna história de decepções econômicas da Bolívia, o Salar de Uyuni constitui uma exceção feliz, ainda que modesta. Mas, agora, vem chegando o futuro do país, sob a forma do lítio.
Confira a reportagem completa na edição de fevereiro da revista National Geographic Brasil.