Arquitetura histórica e singular de Nova Orleans é perfeita para os tempos de pandemia
Varandas, quintais e “áreas neutras” preservam a convivência da cidade nesse momento de distanciamento social.
Em Nova Orleans, residências históricas, como as estalagens crioulas, casas no estilo espingarda (estreitas e compridas) e casas geminadas em fileiras costumam ter espaços ao ar livre, como sacadas e varandas.
EMBORA AS RESTRIÇÕES IMPOSTAS PELA covid-19 estejam privando Nova Orleans de suas tradicional alegria e animação do Mardi Gras, a cidade ainda planeja celebrar a terça-feira gorda (16 de fevereiro) — mas de forma segura, para evitar se tornar um evento de supercontágio, como ocorreu em 2020.
Em vez de desfiles repletos de foliões fantasiados jogando colares para as pessoas, ao descer a Avenida St. Charles e outras vias públicas, os moradores estão transformando suas residências em casas alegóricas coloridas, para substituir os carros alegóricos que não poderão desfilar neste ano.
No entanto essas casas não são apenas uma saída criativa durante uma pandemia. Os residentes de Nova Orleans estão descobrindo que suas propriedades, muitas delas construídas entre o século 18 e o início do século 20, possuem recursos tradicionais úteis para manter o vírus sob controle. Varandas extensas servem como salas de estar ao ar livre e têm plataformas nas quais se pode interagir com os vizinhos de forma segura. Quintais privativos e “áreas neutras” públicas permitem interagir e praticar exercícios físicos com distanciamento social.
Na batalha contra o novo coronavírus, outras cidades com diversas casas históricas semelhantes podem observar de que forma Nova Orleans utiliza esses elementos arquitetônicos para manter a calma e incentivar a vida ao ar livre.
Casa na Avenida St. Charles, em Nova Orleans, que participa do Krewe of House Floats (casas alegóricas), como parte do Mardi Gras com distanciamento social neste ano.
Projetadas para a convivência
Pandemias não são novidade em Nova Orleans. No século 19, seus moradores enfrentaram sucessivas ondas de febre amarela, principalmente em 1853, cujo último surto foi em 1905. O cólera e a gripe espanhola de 1918 também devastaram a cidade.
Mas foi o clima, não as doenças, que realmente moldou o visual e a essência da cidade. Com o clima subtropical de Nova Orleans, os verões podem ser quentes e úmidos, as ondas de calor começam no Festival de Jazz (tradicionalmente na primeira semana de maio) e vão até o fim de outubro. Antes da existência do ar-condicionado, foi preciso incorporar recursos de construção para refrescar e melhorar as condições de vida na cidade.
“Os primeiros projetos residenciais da Luisiana tinham o objetivo de aumentar a ventilação, principalmente para fins de conforto diário, em especial no verão”, explica o geógrafo e autor Richard Campanella, pró-reitor de pesquisa da Faculdade de Arquitetura de Tulane. “Galerias, terraços, sacadas e varandas eram simplesmente considerados comodidades agradáveis, refrescantes e úteis que deixavam as casas mais habitáveis, e a vida urbana, mais tolerável.”
Terraços e varandas exemplificam o amor dos moradores de Nova Orleans por “espaços intermediários”, onde é possível criar conexão visual sem interação física próxima.
Mais uma vez, esses projetos provaram ser úteis durante a atual crise de saúde na cidade.
“A cultura de Nova Orleans é vivenciada ao ar livre. [Na cidade] não é normal ficar dentro de casa”, conta a moradora Ariana Ganak, gerente de um pequeno negócio, que trabalha duas vezes por semana com cinco amigos em frente à sua casa no bairro de Carrollton. “É assim que socializamos desde sempre, então durante a pandemia de covid-19 não tem sido tão diferente. Ao passar por qualquer rua, podemos ver pessoas sentadas na varanda da frente e no terraço.”
Para os turistas, os exemplos dessas características arquitetônicas são abundantes, preservados em 14 bairros históricos, 24 distritos culturais estaduais e 26 marcos históricos nacionais. Nova Orleans é um exemplo de como as soluções tradicionais para promover conforto e bem-estar também podem funcionar no século 21.
Os prazeres dos terraços
“Viver ao ar livre com sofás e fogueiras virou uma tendência nacional, mas já fazemos isso em Nova Orleans há mais de 200 anos”, diz Jennifer Avegno, moradora da cidade de longa data, cujo pai ajudou a restaurar muitos edifícios históricos.
Antes de sua nomeação à chefe da Secretaria de Saúde de Nova Orleans, a prioridade dessa médica socorrista era ajudar as comunidades carentes de Nova Orleans. Agora, Avegno é responsável pela resposta de saúde pública municipal à covid-19. Ela e sua família vivem na cidade em uma casa “espingarda” restaurada de 1883. Seu terraço é um local para fazer refeições com outras pessoas, falar ao telefone e fugir de cômodos lotados.
“Basta dar uma volta pelo meu bairro para ver várias pessoas em suas varandas com seus notebooks”, diz Avegno. “certamente estão trabalhando, mas trabalhando fora de casa.”
Além disso, as varandas podem facilitar o isolamento com distanciamento social, tornando-se uma plataforma para cumprimentar os vizinhos e conversar a uma distância segura, e confortável.
Para alguns moradores, elas também se transformaram em um palco. Em Algiers Point, bairro histórico na margem oeste do rio Mississippi, há inclusive uma varanda inovadora em que se realizam apresentações de algumas lendárias músicas de jazz da cidade para seus moradores e fãs.
A cantora de jazz Anaïs St. John e o pianista Harry Mayronne se apresentaram na varanda da casa da cantora em Nova Orleans, no dia 11 de abril de 2020. Com as salas de música de Nova Orleans fechadas devido ao surto do novo coronavírus, músicos e fãs encontraram novos espaços de convivência, seja em varandas e gramados, em salas de estar e estúdios ou pelas redes sociais.
“[Varandas] são uma forma de nos relacionarmos com outras pessoas com segurança”, afirma a cantora de jazz local Anaïs St. John. “É um modo de nos mostrarmos para mundo exterior e nos tornarmos acessíveis. É algo muito sofisticado.”
Ex-meio-soprano da Ópera de Nova Orleans e professora de música na Escola Episcopal Trinity, St. John organizou mais de 30 apresentações desde o início da pandemia de covid-19. Os eventos contaram com a participação de músicos locais, que a acompanham enquanto ela canta músicas de Eartha Kitt, Nina Simone e Dolly Parton, da varanda de sua casa “lombo de camelo” pintada de azul e roxo, estilo arquitetônico de dois andares, nos fundos de uma casa “espingarda”.
“Meus vizinhos e amigos aparecem aqui. Todos estão em distanciamento social e utilizam máscaras”, conta ela. “Quando cantei músicas de Dolly Parton, havia 65 pessoas na rua.” Algumas até foram vestidas como a estrela de Nashville. Segundo St. John, “é algo muito típico de Nova Orleans”. “Adoramos fantasias e aproveitamos qualquer ocasião para nos fantasiarmos.”
Edifícios públicos, como o Columns, também fazem uso de varandas ao ar livre. Em funcionamento em uma mansão da década de 1890 na Avenida St. Charles, ao norte do Garden District, o antigo hotel é famoso por sua espaçosa varanda de dois andares, rodeada por filodendros e bananeiras. Não é exclusivo para hóspedes; é um espaço procurado para aniversários, noivados e formaturas de moradores locais.
“Ficar na varanda é como voltar no tempo”, relata a jornalista e editora local Sue Strachan, que está preparando um livro sobre a cultura de coquetéis da cidade. “Não tem explicação.”
“Áreas neutras” animadas e quintais icônicos
Fora do bairro French Quarter, grande parte do traçado das ruas de Nova Orleans deve seu design a costumes que remontam à França medieval. A tradição francesa de garantir que todos os proprietários de terras ficassem de frente para um rio deu origem a uma série de plantações compridas e estreitas ao longo do rio Mississippi, na colônia da Luisiana quando pertencia à França, esclarece Lake Douglas, professor da Faculdade Robert Reich de Arquitetura e Paisagismo da Universidade Estadual da Luisiana.
Conforme as regiões mais próximas da crescente Nova Orleans se tornaram bairros no século 19, os incorporadores abandonaram as antigas demarcações, mas drenaram as outrora terras agrícolas ao longo da “área neutra” entre duas propriedades adjacentes. Essas valas, ou canais, levavam a água para a “parte de trás da cidade”, como é chamada a área de pântanos e terras baixas atrás do terreno elevado ao longo do rio.
Na década de 1880, esses canais de água a céu aberto estavam sendo fechados, enterrados e cobertos com grama para combater doenças como a febre amarela e melhorar a infraestrutura da cidade. Os amplos canteiros verdes, ainda chamados de áreas neutras na linguagem local, eram os responsáveis pela aparência majestosa de avenidas como Elysian Fields, Louisiana e Napoleon. No século 21, essas vias verdes sombreadas por árvores — incluindo a Lafitte Greenway com 3,2 quilômetros de extensão, que antigamente era o Canal Carondelet — tornaram-se lugares para os moradores de Nova Orleans correrem, caminharem e andarem de bicicleta.
“Eu ando na área neutra da Avenida Napoleon todos os dias”, conta Avegno. Ela costuma pedalar no Parque Audubon, projetado por John Charles Olmstead em 1871, que já sediou uma feira mundial, a World Cotton Centennial, em 1884.
Mas talvez os espaços ao ar livre mais icônicos de Nova Orleans sejam seus quintais privativos. “As pessoas não se dão conta de que, em uma dessas casas estreitas de Nova Orleans, pode haver um lindo quintal nos fundos que ninguém sequer imagina existir”, diz Avegno.
Muitas vezes escondidos atrás de paredes de tijolos cobertas por jasmim e com samambaias, vasos de flores e fontes, os quintais conferem um ar romântico aos restaurantes do French Quarter. A realidade histórica não era sonhadora nem perfumada. Parte da tradição do século 18 era realizar as tarefas domésticas mais sujas do lado externo, portanto os quintais do bairro eram lugares onde as chaleiras borbulhavam, fogueiras fumegavam e animais defecavam.
Uma passagem de tijolos leva a um quintal privativo no histórico bairro French Quarter de Nova Orleans.
“Os quintais permaneceram abertos para as utilidades e operações da casa, lavanderia, cozinha ou estábulos”, explica Douglas. “Apenas no século 20, quando houve um movimento para preservar o French Quarter, é que os quintais passaram de locais de utilidade para locais cobiçados e de relaxamento.”
Hoje, a resiliência dos espaços ao ar livre de Nova Orleans, tanto os privados quanto os públicos, continua sendo um alívio para moradores e visitantes em isolamento. A cidade sobreviveu a enchentes e furacões, incêndios e febre, tudo isso sem interromper a festa. Talvez este ano seja mais tranquilo, mas Nova Orleans, enquanto se prepara para o seu programa de vacinação, está de olhos no futuro.
“Estamos trabalhando noite e dia para fazer com que esta seja a cidade mais segura para se viver”, declara Avegno. “E quando esse objetivo for atingido, será a cidade mais segura para os turistas visitarem. Daqui a alguns meses voltaremos com força total.”