Mulheres são pioneiras em promissor destino de surfe

Ao longo do vasto litoral chileno acidentado, as surfistas se destacam tanto na competição como na preservação.

Por Lacy Morris
Publicado 23 de mar. de 2021, 07:00 BRT, Atualizado 6 de mar. de 2024, 12:30 BRT
Chile surfing landscape

Paloma Santos pega uma onda na praia de Puertecillo, perto de Pichilemu, um dos locais que atraem surfistas em busca de aventura na costa chilena pouco conhecida.

Foto de Matias Donoso

Estou com minha prancha de surfe na praia de Pichilemu, no Chile. É janeiro — auge do verão — o sol já saiu e há uma brisa quase constante soprando do oceano Pacífico. Uma série de enseadas de areia negra emolduram a atração principal dessas regiões: Punta de Lobos, um pointbreak de esquerda, onde as ondas se rompem elegantemente (em condições suaves) em volta de um afloramento de rocha escarpada.

Essa cena poderia ser em Maui ou no sul da Califórnia — exceto por alguns detalhes: as árvores são pinheiros, e não palmeiras; a temperatura da água oscila em torno de 15 graus Celsius; e quase não há ninguém por perto. Vestindo um macacão de neoprene Quiksilver de 4/3 mm — ideal para esse “calor” que mais parece inverno — subo na prancha e começo a remar com um misto de emoção e terror.

Com uma costa de pouco mais de quatro mil quilômetros de norte a sul, o Chile é realmente uma das últimas fronteiras do surfe. Os surfistas encontrarão quilômetros e mais quilômetros de praias e ondas inexploradas e vazias, localizadas em vilas de pescadores acolhedoras. A água fria, a localização remota e a falta de infraestrutura turística fizeram com que o Chile ficasse fora do radar para a maioria dos surfistas que percorrem o mundo e viajam a locais como Irlanda e China se estiverem em busca de aventura, ou Bali e Havaí se não estiverem.

Mas nos últimos 20 anos houve um aumento notável do interesse pelo esporte e, com o desenvolvimento de uma cultura do surfe exclusivamente chilena, também houve maior ênfase em comunidade e sustentabilidade. Surfistas locais são as vozes mais marcantes na campanha de preservação das joias brutas que eles sabem que possuem e, nos últimos anos, essas vozes foram sobretudo femininas. Em um país que estava em meio a uma mudança social antes da pandemia, as mulheres estão em uma maré de ativismo comunitário, à frente de um movimento político em desenvolvimento e do avanço de um esporte.

Ondas desconhecidas

Pichilemu, a capital do surfe não oficial do Chile, é uma pequena vila de pescadores com 15 mil habitantes, localizada a cerca de 210 quilômetros ao sul de Santiago. Seu pico local — a esquerda de Punta de Lobos, que significa “Ponto dos Lobos” — pode criar ondas de pouco mais de seis metros.

Em 2017, após um movimento colaborativo bem-sucedido para arrecadação de fundos e campanha realizados pela organização sem fins lucrativos Save the Waves Coalition, pela empresa de equipamentos para atividades ao ar livre Patagonia e por uma organização sem fins lucrativos local chamada Fundación Punta de Lobos, ficou estabelecido que o litoral passaria a ser a sétima reserva mundial de surfe, o que protegerá o quebra-mar e a área vizinha de futuros desenvolvimentos.

A surfista chilena Antonia Vidueira compete durante a semifinal da competição Maui and Sons Pichilemu Women Pro Chile 2016.

Foto de Martin Bernetti, AFP, Getty Images

Em 2020, o governo chileno aprovou a criação do Santuário Marinho Costeiro Piedra del Viento. O santuário protege mais de quatro mil hectares de litoral ao norte de Pichilemu e é a primeira área protegida no Chile a levar em consideração a proteção das ondas e do surfe, preservando seis importantes locais para a prática do esporte.

Outras pequenas cidades de surfe em desenvolvimento, como Matanzas, Reñaca e Totoralillo — todas ao norte de Pichilemu e fora das áreas protegidas — também estão ficando mais famosas, juntamente com Pichilemu. E embora por enquanto os projetos de conservação sejam realizados em menor escala, o mesmo ocorre com o desenvolvimento. Esses locais podem ser facilmente comparados à Califórnia da década de 1950, quando pranchas flutuando na água ainda eram uma novidade e cabanas de praia improvisadas com teto de palha ofereciam aluguel de prancha e aulas para os poucos que apareciam em busca da cultura descontraída do surfe.

Tudo é novidade na região, mas “há muito potencial [para o surfe] no Chile se conseguirmos proteger a fonte disso tudo”, afirma Ramón Navarro, o nome mais frequentemente associado ao surfe chileno, como atleta e defensor de sua proteção. Ele foi o primeiro chileno a ficar conhecido no circuito competitivo internacional, além de ser o líder das campanhas no local.  

No Chile, as raízes do surfe remontam à década de 1970, quando os jovens começaram a ver turistas brasileiros com pranchas durante as férias em busca de novas ondas fora de seu país, onde o esporte estava muito mais consolidado. Antes disso, era considerado um esporte para ricos, ou simplesmente inviável, pois não havia lojas que vendiam pranchas.

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    Surfistas aguardando ondas durante a semifinal da competição Maui and Sons Pichilemu Women Pro Chile 2016.

    Foto de Martin Bernetti, AFP/Getty Images

    Nesse esporte predominantemente masculino, as mulheres só começaram a aparecer com pranchas na década de 1990. Inconscientemente, isso pode ter preparado o caminho para a futura luta pela igualdade das mulheres no Chile, que ganhou atenção internacional no fim de 2019, no auge do movimento #MeToo.

    A canção e a coreografia interpretadas pela primeira vez pelo grupo feminista chileno Las Tesis se espalhou pelo mundo e foram adotadas e adaptadas pelas ativistas do movimento #MeToo para denunciar as violações dos direitos das mulheres. “A culpa não foi minha, nem do local onde eu estava, nem da forma como me vestia”, foi entoado em vários idiomas, desde a Índia, passando pela Turquia até os Estados Unidos, onde o poderoso hino foi apresentado em janeiro de 2020 do lado de fora do tribunal de Nova York, onde Harvey Weinstein estava sendo julgado por estupro.

    Mulheres ao mar

    “Definitivamente foi um momento decisivo” para as mulheres chilenas assistirem à globalização de um movimento iniciado por elas, afirmou Jessica Anderson, surfista de competição de 30 anos de idade. Para Anderson, foi uma ocasião bem-vinda — e incomum — de desafio das normas de gênero, já que “a cultura aqui era e ainda é muito machista, mas o surfe e os esportes em geral ajudam a quebrar esse paradigma”.

    Anderson, cujos pais eram missionários cristãos e ex-surfistas californianos, foi criada em Pichilemu. Quando ela era pequena, o local não passava de uma vila de pescadores arenosa, sem ruas asfaltadas, com praias amplas e falésias rochosas.

    Em 1993, quando Anderson tinha 3 anos, o Chile sediou seu primeiro evento da Liga Mundial de Surfe, na cidade costeira de Iquique, 1,9 mil quilômetros ao norte, perto da fronteira do país com o Peru. O evento aconteceu quase 30 anos após a formação da organização que representa os surfistas profissionais de todo o mundo. Naquela época, outros países com abundância de ondas já estavam em sua segunda, terceira ou até quarta geração de lendas do surfe.

    “Por razões que ainda não estão claras, o Chile demorou para mergulhar de cabeça no surfe; seu vizinho ao norte, o Peru, começou a pegar gosto pelo esporte décadas antes e o Brasil estava a caminho de se tornar uma potência mundial do surfe”, observa o autor Matt Warshaw, no livro The Encyclopedia of Surfing (A enciclopédia do surfe, em tradução livre).

    “É um esporte que vem crescendo lentamente aqui”, concorda Anderson. Quase sem lojas de surfe no país (a primeira foi aberta em Santiago em 1985), o pai de Anderson “pedia a amigos e igrejas dos Estados Unidos que doassem pranchas de surfe e roupas de neoprene, então todo o nosso equipamento era compartilhado com os amigos. Alguns surfistas brasileiros vinham para Pichilemu e todos nós comprávamos pranchas deles.” Foi assim que Anderson conseguiu sua primeira pranchinha aos 15 anos.

    Foi apenas nos últimos 10 anos que “o surfe causou uma grande transformação em Pichilemu”, conta ela, e as mulheres têm uma grande participação nessa mudança, principalmente devido ao empenho de Trinidad Segura. Ela mora em uma cidade vizinha de Pichilemu e, às vezes, compete com Anderson dentro da água.

    Em 2011, Segura fundou a Sirena Producciones, empresa cuja missão é incentivar as mulheres a praticar surfe. Segura desempenhou um papel fundamental ao sediar a primeira série de qualificação da Liga Mundial de Surfe no Chile, na qual uma surfista foi coroada campeã. Realizado em Punta de Lobos, o Maui and Sons Pichilemu Pro teve início em 2014 e, desde então, é realizado anualmente. (A Liga Mundial de Surfe ainda não realiza um evento da série de qualificação masculina no mesmo pico famoso.)

    É difícil ser mulher e mais difícil ainda ser surfista”, declara Segura. “Eu queria começar algo que nos unisse e criasse uma comunidade, mas também queria chamar a atenção da mídia para minhas amigas. Não há muitas oportunidades de patrocínio para surfistas mulheres, principalmente no Chile.”

    Atualmente, há vários nomes femininos famosos, como Josefina Vidueira, de 22 anos, que atua com marcas como O'Neil. Em 2014, aos 15 anos, ela ficou entre os 75 jovens surfistas promissores a receber a Bolsa Individual da Associação Internacional de Surfe, destinada a ajudar a aliviar as despesas com taxas de competição e equipamentos de surfe. Lorena Fica, de 26 anos, patrocinada pela Rip Curl, é uma das chilenas com melhor classificação na Liga Mundial de Surfe, tendo vencido o campeonato nacional cinco vezes, enquanto Paloma Santos, de 21 anos, conquistou o campeonato nacional duas vezes. 

    “Pichilemu se tornou a praia dos surfistas, com tudo necessário e muitas atividades para fazer”, relata Anderson. “Tive o privilégio de surfar em todo o mundo e Pichilemu não deixa nada a desejar em relação a nenhum desses lugares, a não ser a água quente, talvez. Pode haver muito ego dentre as praticantes, mas é preciso ser forte e lutar pelas ondas como os homens.”

    Uma infraestrutura hoteleira construída em torno do esporte está em ascensão em Pichilemu e, na maioria dos casos, seguindo um modelo semelhante de sustentabilidade. O Hotel Alaia, um alojamento para surfistas, com 12 quartos de carvalho e rocha negra reaproveitados, é o estudo perfeito da arquitetura chilena singular na cor de terra e de altura reduzida. Foi onde me encontrei com Segura para conversarmos em volta de uma lareira na área comum, com vista para um conjunto de janelas perfeitamente posicionadas para conferir as ondas. Perto do fim de sua gravidez, Segura deu um tempo na prancha; ela conta que o companheirismo de suas amigas surfistas é o que dá mais saudade.

    Foi gratificante ver as mulheres em nosso país iniciarem um movimento em todo o mundo”, exalta ela. É algo para o qual Segura atuou como catalisadora, remando contra a maré em sua cidade natal, Pichilemu, e dando às mulheres a voz que elas merecem em um esporte que ela adora.

    “Também há um movimento acontecendo aqui”, diz ela. “É isso que adoro no surfe: sua capacidade de aproximar as pessoas.”

    Lacy Morris é escritora, editora e fotógrafa freelance.

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