Expedição enfrenta os perigos árticos em nome da ciência climática

Depois de anos de frustrações causadas pelas condições extremas, os pesquisadores finalmente conseguiram coletar amostras-chave de um lago remoto em Svalbard - o que pode render informações valiosas sobre como nosso clima mudará nas próximas décadas.

Por John Wendle
Publicado 6 de jun. de 2018, 16:49 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Um passeio de drone pelo Ártico
Expedição de cientistas pelo Polo Norte enfrenta desafios para revelar a história do clima da Terra.

NORDAUSTLANDET, SVALBARD O barco ergueu-se do profundo azul da onda, atravessou a crista, silenciosamente, pairou no ar por um momento e então bateu de volta no mar. O choque repercutiu por todo o casco de alumínio, ampliando o barulho vibrante do mastro que suporta um vendaval de grau oito. Quando o barco mergulhou a proa, a espuma das águas de cor cobalto do Oceano Ártico levantou-se e bloqueou a vista dos picos cobertos de neve de Nordaustlandet, no arquipélago norueguês Svalbard. Com ventos a 72 km/h e um ar pesado e gelado, uma onda de 6 metros atingiu o veleiro pelo lado, deixando a tripulação de paleoclimatologistas cambaleando.

Após chover por seis horas, a inesperada tempestade não mostrou sinais de enfraquecimento. O capitão Mario Acquarone fez uma manobra perigosa, em alta velocidade, através das ondas que iam e vinham. No dia anterior, nesta costa inacessível a 80º norte, a tripulação de cientistas tinha pegado amostras de sedimentos de um lago e de um sistema glacial pouco explorados. Eles esperavam que a pesquisa produzisse vários dados bem detalhados sobre as mudanças climáticas e que fosse capaz de fornecer registros por década – documentação de uma relevante mudança climática para a vida do ser humano – e ajudá-los a melhor prever os efeitos de um futuro mais quente.

Por cinco anos, eles tentaram chegar ao Lago Ringgåsvatnet e na geleira Ahlmannfonna, mas todas as vezes encontravam tempestades épicas pelo caminho ou eram bloqueados pelo gelo à deriva. Agora, estão ansiosos para voltarem e analisarem a porção de lama, mas primeiro tiveram que sobreviver ao vendaval.

“Isso é ciência radical”, disse Ray Bradley, o mais velho e mais experiente pesquisador do Ártico da viagem, quando o barco ancorou na segura mas traiçoeira baía de Innvika. Após quinze horas subindo e descendo com as ondas, o diretor do Climate System Research Center da Universidade de Massachusetts, de Amherst, finalmente foi capaz de preparar uma tigela de mingau de aveia. “Ao verem um gráfico em um pedaço de papel, as pessoas sempre se esquecem […] de todos os esforços que foram necessários para conseguir aquilo”, ele disse. “Em muitos casos, você coloca a sua vida em risco para conseguir os dados.”

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    De fato, a expedição enfrentou inúmeros perigos para coletar os dados desse local remoto da Noruega. Não houve somente quatro tempestades em nove dias, mas também a constante ameaça de ataques de ursos-polares, o risco de atingir uma pedra, naufragar em fiordes inexplorados e pequenos icebergs. Infelizmente, a inanição era algo possível de acontecer caso os ventos instáveis mudassem, empurrando o gelo polar para o sul, por horas, e prendendo o barco e a tripulação em um fiorde muito longe para um resgate de helicóptero. Tudo isso por um pouco de lama.

    Mas essa não é qualquer lama. “Esperamos que o sedimento encontrado no fundo do lago nos conte, principalmente, uma história de como a calota de gelo sobreviveu – cresceu ou diminuiu – com o passar do tempo. Então, estamos tentando ver a condição ambiental da atualidade partindo de um contexto de longo prazo”, disse Bradley, cujo sotaque britânico foi quase totalmente substituído pelo de Boston. “Queríamos vir aqui porque é um alerta de perigo que nos indica como o clima mudará no futuro e como mudou no passado.”

    As amostras de sedimento são “arquivos naturais da mudança ambiental do passado”, ele disse. “O que queremos fazer é basicamente abrir aquela biblioteca e ler a história dos sedimentos.”

    Lago dos Segredos

    O Lago Ringgåsvatnet é importante, porque é um corpo descongelado de água fresca no extremo norte do planeta, aquecido pela extremidade da Corrente do Golfo. Ele também é abastecido por apenas uma calota de gelo e os sedimentos do fundo não foram removidos por uma geleira, então há um sinal histórico claro. A geleira Ahlmannfonna é importante porque é uma calota de gelo pequena e isolada, então é uma presa para as mudanças climáticas. Estudar as camadas dos sedimentos glaciais arrastados para o lago revelará como a geleira mudou e, deste modo, mostrar como o clima mudou.

    Alcançar um lugar tão revelador assim é perigoso, mas o Bradley não tem medo dos riscos. Em 2005, ele se envolveu no que ficou conhecido como a Controvérsia do Taco de Hockey, após os congressistas republicados terem atacado ele e os seus colegas por um gráfico da história do clima, publicado em um relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). O gráfico apresentava um pico dramático nas temperaturas médias globais que coincidiam com a Revolução Industrial – evidências fortes de que os humanos estavam causando o aquecimento global.

     “Eles decidiram que o melhor jeito de acabar com a credibilidade do relatório do IPCC era atacar os cientistas ao invés da ciência”, disse Bradley. Durante as “asneiras políticas”, como Bradley as descreve, o presidente que liderou o ataque, Joe Barton do Texas, mandou uma carta aberta aos seus eleitores, arrogantemente escrevendo que a ciência era “um trabalho de escritório e que não envolvia nenhum tipo de trabalho pesado.”

    William D'Andrea, paleoclimatologista do Observatório Terrestre Lamont-Doherty da Universidade de Columbia, em Nova York, observa os ursos enquanto examina um campo de pedras entre a geleira Ahlmannfonna e o Lago Ringgåsvatnet.
    Foto de John Wendle

    Nos dias que antecederam a tempestade, avistamos um urso polar e seus filhotes em uma colina e vimos baleias azuis e jubartes soprando jatos d’água em um cenário composto por geleiras que desciam até o mar. Finalmente, depois de 48 horas no oceano, nos aproximamos de nosso Rubicon: o estreito fosso entre a Península de Platen, no lado norte, e o bloco de gelo do Ártico, a apenas 20 milhas náuticas de distância.

    "Estamos tentando fazer essa viagem há cinco anos e tivemos muitos problemas com o gelo", diz o líder da expedição, Jostein Bakke, chefe do grupo Quaternary Earth Systems do Bjerknes Centre for Climate Research da Universidade de Bergen, na Noruega. "Não é o tipo mais seguro de expedição", diz ele. Se os ventos se virassem e empurrassem o gelo para o sul, o barco ficaria preso em poucas horas. "Estamos testando os limites do que é possível fazer".

    Neste dia não havia gelo. Ao passarmos pela montanha Goodenough, na ponta da península, Acquarone, pesquisador de mamíferos marinhos e presidente da European Cetacean Society, que tem navegado no arquipélago por duas décadas, diz que a falta de gelo é boa e ruim. “Por um lado, é emocionante porque temos a possibilidade de visitar novas áreas que antes estavam congeladas. Mas, por outro lado, é meio assustador porque é um sinal de que as coisas estão mudando muito, muito rápido”.

    Agora não há mais retorno, o barco se vira para o sul e entra na enseada inexplorada de Innvika. Examinando previsões meteorológicas irregulares, os climatologistas veem que há apenas uma janela de oito horas para descarregar centenas de quilos de equipamento e levar tudo para terra antes que outro vendaval nos atinja. Enquanto nos preparamos para desembarcar o equipamento, Bradley diz: "Estamos prestes a ver que isso vai além do trabalho interno e é definitivamente muito pesado".

    Ponto sem retorno

    Embora seja difícil, e muitas vezes impossível, chegar até aqui, esse sistema de lagos e geleiras ajudará os paleoclimatologistas a contar uma história mais precisa sobre o clima. “Svalbard é um lugar muito sensível”, diz Bakke. Por esta razão, isso poderá ajudá-los a dar uma perspectiva de longo prazo às mudanças climáticas de maneira única.

    O ponto que talvez seja o mais importante: eles querem entender por que parece haver “passos” no antigo registro climático - momentos em que o sistema parecia mudar repentinamente. “Para o clima futuro, isso é muito importante, porque há esses limites e, uma vez que os cruzemos, não há como voltar”, diz Bakke. “Espero que nossa pesquisa possa ajudar a obter melhores previsões para o futuro. Assim, nós podemos estar preparados para o que vai acontecer nos próximos cem anos.”

    Para isso, os pesquisadores irão reunir as amostras e outros dados sobre a área. De volta ao laboratório, eles cuidadosamente cortarão os tubos de perfuração abertos, passarão uma corda de piano pelo seu comprimento e dividirão a lama encharcada como as duas metades de um livro.

    A datação por carbono define as idades das camadas de sedimentos. Camadas ricas em minerais apontam para geleiras crescendo em períodos frios, à medida que trituram pedras e são levadas para um lago. Camadas de sedimentos orgânicos significam que uma geleira recuou de um lago durante os períodos quentes, produzindo assim menos pedra moída. “Podemos olhar o passado e ver quando as geleiras cresceram e diminuíram, como mudaram abruptamente e como foram dinâmicas ao longo dos últimos 10 mil anos”, diz William D'Andrea, climatologista no Observatório da Terra Lamont-Doherty da Universidade de Columbia.

    D'Andrea estuda moléculas de cera e gordura de plantas e algas mortas que são preservadas nas amostras. O tipo e a quantidade dessas substâncias podem dar informações sobre a temperatura de um lago antigo e o volume das chuvas em momentos diferentes.

    “A principal coisa que procuramos é a temperatura e a precipitação”, diz ele. “Essas são as duas coisas que mais importam em qualquer dia - vai chover e eu devo colocar uma camiseta ou um suéter?”

    A equipe de cientistas prepara um tubo para a extração de amostras de sedimentos do lago na margem do Lago Ringgåsvatnet.
    Foto de John Wendle

    Cerca de 9,5 mil anos atrás, o clima em Svalbard era para camisetas, muito mais quente do que é hoje. E os paleoclimatologistas acham que o clima poderia ser parecido com o que o Ártico deverá enfrentar em um futuro próximo. Entender exatamente o que aconteceu no passado pode nos ajudar a prever melhor o futuro próximo.

    No entanto, embora muitas pessoas entendam que o clima está mudando, o processo é relativamente lento quando comparado ao nosso dia-a-dia. Por conta disso, pode ser difícil fazer com que o público dê a devida atenção a isso. Esta equipe espera retirar finas camadas dos núcleos para que possam mostrar mudanças climáticas antigas na escala de décadas, em vez de milênios.

    “Apenas daqui a 30 anos, quando seus filhos estiverem mais velhos e seus netos tiverem nascido, o clima será muito diferente”, diz Bradley. “Estamos tentando contar uma história com uma resolução muito boa, em uma escala de tempo relevante para as pessoas”.

    Trabalhos de extração

    No convés do barco, os cientistas se preparam para desembarcar e iniciar o trabalho pesado. Eles carregam três velhas carabinas Mauser com balas de ponta macia, inspecionam cinco sinalizadores e relembram os procedimentos de segurança com ursos polares. Um leão marinho curioso segue o bote enquanto eles buscam um local de teste. Ao voltarem, eles soltam tubos de plástico vendidos em qualquer loja de ferragens. As ferramentas de extração se encaixariam perfeitamente em uma plataforma de petróleo da década de 1850. Dezenas de viagens transportam dois botes infláveis, 180 kg de material para as plataformas de perfuração, pesos de extração, um macaco de metal sólido, um pistão para empurrar os tubos pela lama, dois motores de barco, pelo menos cinquenta metros de cano e uma variedade de outros equipamentos. Aí o trabalho começa.

    Entre a costa e o lago há 1 quilômetro e meio de terreno pantanoso e quebrado. Carregando seções de 40 kg da plataforma, nossos pesados passos são engolidos por camadas esponjosas de musgos antigos. Outras vezes afundamos até os joelhos na lama. Pedras capazes de quebrar um tornozelo estão por toda parte. Correr de um urso parece impossível. Por fim, o objetivo da expedição aparece: o lago Ringgåsvatnet, de quase 30 metros de profundidade.

    O vento aumentou e a equipe rapidamente montou o equipamento. Eu tinha um rifle e me disseram para ficar de olho nos ursos polares. Chegamos ao veleiro pouco antes da tempestade. Por 24 horas, o vento berrava no alto de suas rajadas de 110 km/h, agitando a enseada rasa. A âncora parecia deslizar e o iate de alumínio era arremessado perigosamente perto das rochas. "É a verdadeira experiência do Ártico", diz Acquarone.

    O veleiro ancorado em um dia calmo no arquipélago de Svalbard.
    Foto de John Wendle

    Por fim, as rajadas arrefeceram-se. Sob o sol da meia-noite, envolto em pesadas nuvens cinzentas, os pesquisadores se prepararam para uma o trabalho duro e para irem até a costa. No lago, sobre a pequena plataforma do bote, Bakke e sua equipe norueguesa afundam um dos longos tubos através do vão de perfuração e em cerca de 25 metros de água, abaixando-o até que tocasse o fundo. Durante as quatro horas seguintes, eles subiram e desceram o pesado pistão, guiando o tubo verticalmente em direção à lama, cascalho e areia do leito do lago. Uma amostra de um metro e meio geralmente leva algumas horas de trabalho pesado. O tubo pode fornecer uma amostra de até 6 metros. "Não é muito sofisticado, mas funciona", diz Bradley.

    Os cientistas, depois dessa longa jornada com tantos perigos, estão determinados a levar a maior - e mais antiga – seção do núcleo do lago. Em terra, D'Andrea e outro pesquisador catalogavam a paisagem caótica marcada por pedras do tamanho de bolas de boliche entre a geleira de 600 metros a 3 km de distância e a margem do lago. Eles coletaram bolsas de sedimentos e amostras de água e leituras de elevação feitas pelo GPS.

    Depois de trabalhar da meia-noite ao meio-dia, a equipe da sonda retirou uma amostra longa e uma curta, e a equipe de terra concluiu sua exploração e medições. Encontrando-se na praia de cascalho, os fatigados membros da expedição iniciaram o exaustivo trabalho de desmontagem de todos os equipamentos para voltarem ao barco.

    Após mais três horas de trabalho, os cientistas sabem que eles ainda terão dois dias e meio no mar, quatro lagos e muitas outras repetições do processo de perfuração pela frente. Embora não fossem capazes de prever a grande tempestade que os esperava, o que todos sabem é que o perigo e a exaustão valem cada momento de exploração e descoberta. O valor dos dados faz com que os perigos valham a pena.

    “Existem certos aspectos da ciência em que é preciso se arriscar para fazer algo”, diz Bradley. “No fim das contas, é preciso correr esses riscos para obter as informações.”

    Veja mais do trabalho de John Wendle em johnwendle.com, instagram.com/johnwendle e vimeo.com/johnwendle.

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