DNA de urso-das-cavernas extinto encontrado em ursos vivos
A descoberta é a primeira desse tipo fora da linhagem humana.
Depois de perambular pela Europa e Ásia por mais de cem mil anos, os ursos-das-cavernas desapareceram há cerca de 24 mil anos, após uma espiral de morte que durou milênios e que foi possivelmente estimulada pela caça, pelas mudanças climáticas naturais e pela competição com humanos por habitat.
Nenhum urso-da-caverna despertou dessa hibernação final, mas o DNA desse animal ainda vive: Um novo estudo confirma que cerca de 0,9 a 2,4 por cento do DNA de ursos-pardos vivos remonta à extinta espécie.
A descoberta, publicada na revista científica Nature Ecology and Evolution na segunda-feira, representa apenas a segunda vez que pesquisadores descobrem genes de uma criatura extinta, da era do gelo, em um parente vivo. Os humanos são o primeiro exemplo conhecido: Entre um e meio e quatro por cento do genoma humano não africano provêm de neandertais, produto do cruzamento entre a nossa espécie e nosso parente milenar.
“Pela definição padrão, [os ursos-das-cavernas] estão extintos, mas isso não significa que seu fundo genético tenha sumido, porque eles continuam a viver nos genomas desses animais vivos”, afirma Axel Barlow, pesquisador de pós-doutorado da Universidade de Potsdam e um dos principais autores do estudo.
O estudo também reforça que algumas espécies cruzam regularmente umas com as outras. O DNA do iaque e do gado do Tibete, por exemplo, mostra sinais de cruzamento entre espécies, assim como as espécies de porcos, cujos ancestrais comuns viveram milhões de anos atrás. Em alguns casos, houve cruzamento entre ursos-pardos e ursos-polares. E na semana passada pesquisadores descobriram a filha de uma mãe neandertal e um pai denisovano — um exemplo do que pode ter sido uma ampla hibridização entre homininos milenares.
“A ideia que se tinha de uma espécie [é que ela] é isolada reprodutivamente de outras espécies”, diz Rasmus Nielsen, geneticista da Universidade da Califórnia, Berkeley, que não participou do estudo. “Esse artigo é mais um de uma série de artigos que vêm mostrando que essa visão de mundo, na verdade, está errada.”
Reprodução entre ursos?
Para determinar por que os ursos-das-cavernas desapareceram, Barlow e sua equipe de pesquisa estudaram como as populações desse animal aumentaram e diminuíram, o que puderam deduzir a partir do DNA de ursos-das-cavernas extraído dos ossos do ouvido de quatro animais que viveram há mais de 35 mil anos.
Primeiro, os pesquisadores compararam os genomas gerais dos ursos-das-cavernas com o de ursos-polares e ursos-pardos. Como era de se esperar, as duas espécies vivas tinham mais relação entre si do que com os ursos-das-cavernas. Mas o quadro ficou mais complexo quando os pesquisadores começaram a contar as variantes de genes individuais de ursos.
Como os genomas animais são muito grandes, existe bastante chance de variação aleatória em determinados genes. Por puro acaso, os mesmos genes em animais com parentesco distante podem parecer semelhantes e os mesmos genes de animais com parentesco próximo podem parecer diferentes. Na ausência de cruzamento entre espécies, essas peculiaridades se acumulam em quantidades mais ou menos iguais, basicamente um cara ou coroa – e não foi isso que os pesquisadores observaram entre os ursos.
“Se encontrarmos uma superabundância de posições de genomas em que os ursos-das-cavernas e os ursos-pardos estejam mostrando mais semelhança entre si do que com os ursos‑polares, então alguma outra coisa deve ter acontecido”, afirma Barlow. “E essa coisa se trata da hibridização entre as duas espécies.”
Os pesquisadores não viram somente sinais de cruzamento, como também confirmaram que os ursos híbridos poderiam cruzar com qualquer uma dessas espécies. Quando Barlow e seu colega James Cahill analisaram os genomas das espécies parte a parte, descobriram que os ursos-pardos e os ursos-das-cavernas tinham, cada um, fragmentos de DNA um do outro.
“Na minha percepção, o conceito de cruzamento entre ursos-pardos e ursos-das-cavernas não é uma surpresa, na verdade faz sentido. De modo geral, eles são muito semelhantes na aparência e houve uma congruência entre eles no tempo e no espaço”, conta o paleontólogo da Universidade Estadual de East Tennessee, Blaine Schubert, em e-mail. “No entanto, provavelmente era apenas especulação até o recente estudo.”
A vida após a morte genética de ursos-das-cavernas lembra a influência ainda presente de neandertais no genoma humano. Mas os pesquisadores enfatizam que há também algumas diferenças significativas.
Por exemplo, os humanos modernos e os neandertais são parentes mais próximos do que os ursos-das-cavernas e os ursos-pardos. Também é muito mais fácil estudar os humanos e seus parentes extintos mais próximos, dada a enorme quantidade de DNA humano sequenciado. A limitação dos dados dificulta analisar se os ursos-pardos usam variantes genéticas de ursos-das-cavernas. Nos humanos, o DNA dos nossos primos arcaicos afeta nossa imunidade, estrutura capilar e nossa capacidade de viver em altas altitudes, entre outras características.
Mas, mesmo com os dados limitados, Barlow fica maravilhado com o que os ursos-das-cavernas ainda podem ensinar aos cientistas, dezenas de milhares de anos após o seu fim: “Acho muito legal porque nos força a pensar, em nível filosófico, o que queremos dizer com extinção de espécie”.