Exuberante e temido, peixe-leão pode invadir costa brasileira em breve e impactar ecossistemas marinhos

Dois espécimes foram capturados em Arraial do Cabo (RJ) e pesquisadores monitoram ilhas oceânicas para prevenir invasão. “É questão de tempo”, dizem estudiosos

Por João Paulo Vicente
Publicado 14 de mar. de 2019, 07:40 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Belíssimo, mas perigoso: peixe-leão tem 18 espinhos espalhados pela região dorsal, com veneno capaz de causar até convulsões em seres humanos.
Foto de Joël Sartore, Arca de Fotos

Em março de 2015, o instrutor de mergulho Marcelo Queiroz guiava uma turma em um passeio subaquático rotineiro na Ilha do Farol, em Arraial do Cabo (RJ). Mas, ao fazer a virada da Ponta Leste para o Saco do Anequim, no lado continental da costa, o proprietário da Queiroz Diver deparou-se com algo que não deveria estar ali: um peixe-leão, espécie natural do Indo-Pacífico que invadiu o sul dos Estados Unidos e o Caribe e se tornou uma praga.

“Na hora em que vi, peguei a câmera de um dos mergulhadores que estava comigo e fiz um vídeo”, conta Queiroz. Assim que saiu da água, ele notificou o Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira (IEAPM), da Marinha, sobre a aparição do animal.

No dia seguinte, o mergulhador voltou ao local com pesquisadores do IEAPM e do Laboratório de Ecologia e Conservação de Ambientes Recifais (Lecar), da Universidade Federal Fluminense (UFF), mas nada do exótico peixe dar as caras. Uma semana depois, um pescador de narguilê — espécie de compressor de oxigênio artesanal que fica no barco e permite ao mergulhador passar longos períodos submerso — encontrou o peixe-leão no lado oceânico da ilha, onde foi capturado.

Foi a segunda aparição na cidade. Dez meses antes, em maio de 2014, outro grupo de turistas avistou um espécime na Prainha. Na ocasião, a Associação das Empresas de Mergulho Recreativo, Turismo e Lazer Náutico de Arraial do Cabo organizou uma expedição para encontrar o animal junto a um grupo de pesquisadores dos dois mesmos institutos. “Os biólogos estavam tentando capturá-lo e acabou que eu o peguei com um puçá (armadilha de pesca)”, conta Paulo Henrique Rodrigues, então presidente da associação. “Assim que subimos na embarcação, eles o congelaram para fazer um estudo”.

Primeiro espécime de peixe-leão capturado em Arraial do Cabo (RJ), analisado pela equipe do Laboratório de Ecologia e Conservação de Ambientes Recifais (Lecar) para identificação da carga genética.
Foto de LECAR/UFF - Divulgação

Na época, os casos causaram o furor do que poderia ser um começo da invasão no Brasil. Mas, até hoje, estes são os únicos episódios documentados da espécie por aqui. Isso não significa, no entanto, que pesquisadores tenham baixado a guarda para o peixe-leão. “Com o tempo, certamente o peixe-leão vai chegar”, diz Carlos Eduardo Ferreira, professor da UFF e coordenador do Lecar. “Como e quando, a gente ainda não sabe”.

Invasor eficiente

O peixe-leão é famoso pela beleza e pelos espinhos: são 18, espalhados pela região dorsal, com um veneno capaz de causar dores, náusea, e até convulsões em seres humanos. Mas não é a peçonha que faz deles um perigo aos ecossistemas invadidos.

Assim como outras espécies exóticas, os peixes-leões não são reconhecidos pelas presas e predadores das regiões onde não ocorrem de maneira natural — e isso significa vida fácil. Os animais que ele come não têm o instinto de se protegerem dele. Por outro lado, peixes maiores, que poderiam se alimentar dele, como tubarões e garoupas, não o veem como parte do cardápio. É uma peça fora da cadeia alimentar.

“Ele consegue comer muito e reduz populações de espécies nativas de caranguejos, lagostas e outros peixes. E também não tem predador, ninguém come ele”, diz Pedro Henrique Cipresso Pereira, pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coordenador do Projeto Conservação Recifal. “Ele nada de braçada, e causa um grande desequilíbrio no ecossistema”.

Para piorar, a espécie atinge a maturidade no rápido período de um ano, as fêmeas chegam a liberar mais de 100 mil ovos por mês e há uma grande dispersão na fase larval, quando podem viajar longas distâncias junto a correntes marítimas. Além disso, também é muito resistente: se vira bem tanto em águas de temperaturas altas quanto baixas, se adapta a regiões de baixa salinidade, como mangues, e nada em profundidades superiores a 300 metros.

“Ele tem um range de resistência muito grande. Por isso é chamado de um bom invasor”, afirma Carlos Eduardo.

Como eles chegaram a esse lado?

Peixe-leão, na verdade, é um nome guarda-chuva para peixes de 12 espécies do Indo-Pacífico, que inclui tanto o Oceano Índico quanto uma porção do Pacífico mais próxima à Austrália — distante, portanto, das Américas. Por aqui, os indivíduos invasores são de duas espécies: uma maioria de Ptoris volitans, com casos esporádicos de Ptoris miles.

Hoje, eles são encontrados de Rhode Island, estado no Norte da Costa Leste dos Estados Unidos, até a Venezuela. É quase um consenso que os peixes chegaram por meio de aquaristas que os soltaram na natureza. Há uma teoria, inclusive, de que o início da invasão foi em 1992, quando o Furacão Andrews destruiu uma loja de aquários na Flórida e dezenas de espécimes escaparam. De qualquer forma, os animais já haviam sido vistos na América do Norte durante a década de 1980.

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    “Ele consegue comer muito e reduz populações de espécies nativas de caranguejos, lagostas e outros peixes. E também não tem predador, ninguém come ele.”

    por Pedro Henrique Cipresso Pereira
    Pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco

    Nos anos 2000, a invasão ganhou corpo e continuou a descer rumo ao Sul. Em algumas ilhas do Caribe, centenas de peixes-leão podem ser vistos em um único mergulho. Determinados locais, como a Flórida, chegaram a lançar programas de recompensas para quem capturasse um grande número de bichos.

    O Brasil poderia estar nessa rota. Na verdade, uma modelagem de distribuição da espécie feita por pesquisadores da Universidade do Estado do Colorado e da US Geological Survey publicada na revista Aquatic Invasions mostrou que o peixe-leão tem condições chegar até a costa da Argentina. Mas, então, por que ele não aparecia?

    De acordo com um estudo do qual Carlos Eduardo, da UFF, fez parte em 2013, uma das razões é a grande massa de água doce e sedimentos que os rios Amazonas e Orinoco, na Venezuela, jogam no Atlântico. Essa pluma forma uma espécie de barreira que impede a chegada do invasor por aqui.

    Mas, ao analisar os espécimes capturados em Arraial do Cabo, os pesquisadores do Lecar tiveram uma surpresa: a origem deles era no Caribe.

    Leões brasileiros

    “O peixe-leão é muito bonito. E, como é um predador, muitos aquaristas gostam de assistir ele caçando”, conta Antônio Freitas, dono da Planeta Marinho Aquarismo Profissional, em São Paulo. No final de 2017, após pressão da comunidade científica, o Ibama proibiu a importação da espécie.

    “Antes disso, a demanda era grande”, diz Antônio. Segundo o Ibama, 3.722 exemplares foram trazidos ao Brasil do começo de 2014 até setembro de 2017, quando foi expedida a última licença de importação. Cada um deles era vendido por até R$ 800. Nesse contexto, seria natural imaginar que os espécimes capturados no litoral do Rio tivessem origem no aquário.

    Para investigar isso, a equipe do Lecar, junto a pesquisadores de outras instituições do Brasil, Austrália e Estados Unidos, fez um estudo detalhado dos peixes. “Nós analisámos o pool genético”, conta Carlos Eduardo. “Isso porque a população do Caribe já tem uma digital genética diferente das populações originais da espécie”, explica.

    Como em geral os peixes importados vêm do Indo-Pacífico, seria natural que essa fosse a assinatura genética caso fossem oriundos do aquarismo. No entanto, a correlação genética encontrada foi com as populações caribenhas.

    O resultado da pesquisa, porém, publicada na revista PLOS ONE, não é conclusivo. “Deixa uma dúvida grande, porque nós não sabemos o quanto os peixes do Caribe já estão entrando nos Estados Unidos para o comércio de aquário”, afirma o professor da UFF. Por outro lado, a possibilidade de que os exemplares tenham chegado de maneira natural persiste.

    O estudo sobre a pluma do Amazonas e Orinoco já mostrava que essa barreira é porosa, ou seja, pode ser atravessada. Essa porosidade varia conforme o nível do mar. Em épocas glaciais, com oceanos baixos, a pluma torna-se mais densa e fica intransponível. Mas, com o aquecimento global, o cenário é o oposto.

    “Quem conhece o mínimo de peixe sabe identificar um peixe-leão. Mas a maioria das pessoas não conhece: vê um coió e já fala em peixe-leão.”

    por Carlos Eduardo Ferreira
    Coordenador do Laboratório de Ecologia e Conservação de Ambientes Recifais

    Ainda assim, um fator importante que contribui para proteger a costa brasileira da espécie invasiva é a direção das correntes marítimas na região. Elas são mais fortes na direção Norte, o que torna mais provável que animais endêmicos do Brasil migrem rumo ao Caribe do que o contrário.

    Por outro lado, uma descoberta do começo desta década facilita a vinda dos peixes-leão para o Brasil: uma longa barreira de corais que se estende da Guiana Francesa até o Maranhão e abrange grande parte do litoral da Amazônia — a foz do Amazonas inclusive. “É um corredor ecológico. Com certeza eles conseguiriam passar pelo fundo, se reproduzir ali, continuar e colonizar o restante da costa”, afirma Pedro Henrique, da UFPE.

    Porta de entrada

    Os episódios em Arraial do Cabo também levantaram outra interrogação: como os dois peixes invasores teriam chegado ao Sudeste brasileiro sem antes terem sido vistos uma única vez na Norte e Nordeste?

    Na verdade, são nessas regiões que pesquisadores têm estabelecido uma linha de defesa contra a espécie. O Projeto Conservação Recifal, coordenado por Pedro Henrique, tem iniciativas de educação ambiental nesse sentido na Costa de Corais, uma Área de Proteção Ambiental que engloba uma longa barreira de corais de Tamandaré, em Pernambuco, até Ipioca, em Alagoas.

    São palestras em escolas, comunidades de pescadores e operadores de mergulho, entre outros, para informar essas populações sobre o perigo do peixe-leão. “A ideia é trabalhar a informação e fazer com que tenhamos mais olhos e ouvidos no mar”, explica Pedro. “Se caso alguém observar algum peixe, podemos tentar controlar a invasão mais rápido”.

    Além disso, o Projeto prepara modelos matemáticos para identificar quais áreas são mais propensas para o aparecimento do peixe em Fernando de Noronha. Noronha, assim como o Atol da Rocas e o arquipélago de São Pedro e São Paulo, são as ilhas oceânicas brasileiras mais ao Norte e as prováveis portas de entrada da espécie no Brasil.

    Isso é preocupante. Além de terem espécies endêmicas, ou seja, que só vivem naquele local, o isolamento das ilhas oceânicas faz com que suas populações de animais sejam mais vulneráveis a espécies invasivas. “Elas são mais sensíveis a invasões, que podem causar um dano bastante grande”, afirma Carlos Eduardo, da UFF.

    O professor ressalta, porém, que um fator importante é deixado de lado quando se discute a chegada do peixe-leão às Américas. A pesca desregulada dizimou espécies de peixes maiores que poderiam predá-lo no Caribe — e no Brasil. “Mesmo os predadores de médio porte, como o peixe-leão, a gente também já comeu tudo. Ou seja, a maioria dos nossos recifes onde ele poderia invadir, assim como onde já invadiu, as cadeiras trópicas já estão depauperadas”, explica.

    O peixe-leão é um perigo. Mas enquanto ele ainda é um fantasma que ronda o litoral brasileiro à distância, os ecossistemas locais já têm o suficiente com o que se preocupar.

    Mesmo assim, os casos de Arraial do Cabo foram o suficiente para animar imaginações mais suscetíveis. Desde então, volta e meia surgem relatos não comprovados de aparições. Em teoria, seria difícil confundir um animal tão peculiar. Em teoria.

    “Quem conhece o mínimo de peixe sabe identificar um peixe-leão. Mas a maioria das pessoas não conhece. Vê um coió [uma espécie bastante comum na costa brasileira] e já fala em peixe-leão”, diz Carlos Eduardo.

    Paulo Henrique, o responsável pela captura do primeiro exemplar em Arraial do Cabo, concorda. “É igual a ver um disco voador. Basta alguém dizer que viu, e aparece um monte de gente para dizer que viu também”.

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