Macacos-prego brasileiros estão em sua própria 'idade da pedra' há 3 mil anos

Embora os primatas não estejam nem perto de utilizarem ferramentas como nós, a espécie agora “possui seu próprio registro arqueológico individual”, afirmam os cientistas.

Por Michael Greshko
Publicado 29 de jul. de 2019, 19:45 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Os macacos-prego que vivem na natureza na Serra da Capivara, no Brasil, fazem ferramentas de pedra ...
Os macacos-prego que vivem na natureza na Serra da Capivara, no Brasil, fazem ferramentas de pedra há pelo menos 3 mil anos e sua tecnologia se alterou ao longo do tempo, afirmam os cientistas.
Foto de Tiago Falótico

Para os macacos-prego do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Brasil, o uso de ferramentas é uma tradição que remonta a milênios: um novo estudo descobriu que esses primatas utilizam ferramentas de pedras para processar alimentos há 3 mil anos, fazendo desse local o sítio arqueológico não-humano mais antigo do tipo fora da África.

O sítio arqueológico, descrito na revista científica Nature Ecology & Evolution, possui camadas de cascalhos arredondados que os macacos-prego da região produziram ao longo do tempo para abrir castanhas e nozes. Outros sítios de ferramentas não humanas foram documentados dentro e fora da África; o mais antigo conhecido, uma região de chimpanzés na Costa do Marfim, tem mais de 4 mil anos.

Mas apenas as ferramentas da Serra da Capivara apresentam uma variação em longo prazo, um marco arqueológico fora da linhagem humana. Lá, as ferramentas de pedras variam de tamanho de acordo com a época, sugerindo que os macacos-prego da região podem ter adaptado seu uso de ferramentas para consumir alimentos com diferentes graus de dureza.

“O mais interessante ao fazer escavações arqueológicas em sítios de uso de ferramentas de primatas é que nós, como espécie, não somos os únicos a ter um registro arqueológico bastante detalhado e profundo”, afirma Tomos Proffitt, coautor do estudo, bolsista de pós-doutorado da Universidade College de Londres. “A escavação dessa região de macacos-prego demonstra que essa espécie de primatas no Brasil tem seu próprio registro arqueológico individual; eles têm seu próprio histórico antigo de uso de ferramentas”.

Entender o uso de ferramentas pelos macacos-prego poderia ajudar a revelar as origens da prática em outros grupos de primatas, incluindo os primeiros membros da linhagem humana. As mais antigas ferramentas de pedras conhecidas — lâminas lascadas propositalmente — datam de 3,3 milhões de anos atrás e são atribuídas ao Australopithecus afarensis ou ao Kenyanthropus platyops, duas espécies primitivas de parentes humanos.

O sítio arqueológico dos macacos-prego fica na Serra da Capivara, um parque nacional no Brasil onde os macacos utilizam ainda hoje pedras para abrir castanhas-de-caju.
Foto de Tiago Falótico

Contudo, antes que os primeiros hominíneos começassem a lascar intencionalmente pedaços de pedra para utilizar como ferramentas, acreditava-se que eles utilizavam cascalhos de pedras inalterados para processar alimentos, bem parecido com o que ocorre hoje com os macacos-prego da Serra da Capivara. Ao estudar o uso de ferramentas pelos macacos-prego, os pesquisadores agora têm uma noção melhor do que procurar em outros locais mais antigos.

“Sempre me empolgo quando surgem novas evidências da complexidade do comportamento animal”, afirma Erin Marie Williams-Hatala, antropóloga evolucionista da Universidade Chatham, que estuda a biomecânica do uso de ferramentas primitivas de pedras. “Acredito que nos distraímos por anos — por décadas — ao criar falsas narrativas sobre o que nos distingue dos demais primatas”.

Golpes percussivos

Por muito tempo, o uso de ferramentas foi considerado uma atividade intrinsecamente humana, porém décadas de pesquisas simplesmente refutaram essa concepção. Diversas espécies de aves manipulam hastes e gravetos como ferramentas; os chimpanzés podem produzir “lanças” para caçar mamíferos. Os orangotangos encontraram acidentalmente uma solução engenhosa para se hidratarem: eles mastigam material vegetal para utilizá-lo como uma esponja, que é mergulhada na água, localizada a uma distância difícil de alcançar, e depois espremida na boca.

O mesmo ocorre com os macacos-prego da Serra da Capivara, que ainda hoje quebram a casca dura das castanhas-de-caju com cascalhos arredondados de quartzito de larguras variadas, desde cerca 2,5 centímetros até aproximadamente o tamanho de um punho humano. Quando eles batem nas castanhas-de-caju com as rochas — seja sobre as raízes dos cajueiros ou sobre “bigornas” de pedra — eles deixam marcas características da cor marrom proveniente das cascas das castanhas-de-caju, que são vestígios dos golpes dados.

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    Para abrir as castanhas-de-caju, os macacos-prego manuseiam cascalhos arredondados com larguras variadas, desde cerca 2,5 centímetros até aproximadamente o tamanho de um punho humano. Eles utilizam o corpo inteiro nessa tarefa, parecido com o que fazem lançadores de beisebol.
    Foto de Tiago Falótico

    Por séculos, moradores e visitantes do Brasil relataram o uso de ferramentas por macacos-prego e, por décadas, os cientistas tinham conhecimento de que os macacos-prego eram capazes de manusear ferramentas em testes de laboratório e cativeiro. No entanto, só foram documentar formalmente o comportamento na natureza em 2004.

    “A população local já estava ciente há bastante tempo”, afirma Tiago Falótico, autor principal do estudo, primatólogo da Universidade de São Paulo.

    Os macacos-prego batem as castanhas-de-caju contra “bigornas” de pedra com até vinte centímetros aproximadamente ou contra as raízes de cajueiros.
    Foto de Tiago Falótico

    Aproximadamente uma década atrás, a equipe de pesquisa que participou do novo estudo iniciou as escavações na Serra da Capivara em uma tentativa de identificar há quanto tempo existia esse uso de ferramentas. Em 2016, os pesquisadores revelaram que, em um local, havia prova inequívoca de que as ferramentas de pedras dos macacos-prego datavam de aproximadamente 700 anos atrás. Contudo não havia razão para não existirem materiais ainda mais remotos, então a equipe começou as buscas.

    Alteração na dieta?

    Após quatro etapas de escavações, a equipe desenterrou cerca de 3 mil anos de sedimentos, como indica a datação por radiocarbono no carvão das camadas de solo — e eles ainda estão encontrando ferramentas de pedras típicas de macacos-prego. Curiosamente, a equipe de Proffitt e Falótico também percebeu mudanças no uso de ferramentas. Até aproximadamente 560 anos atrás, os macacos-prego da região empregavam cascalhos pequenos que produziam danos de alto impacto: um sinal de que geralmente erravam o alvo. Os pesquisadores acreditam que, na época, os macacos-prego consumiam alimentos menores.

    A partir desse período, os macacos-prego da Serra da Capivara passaram a manusear pedras bem maiores, o que implica que passaram a buscar alimentos mais duros. E, aproximadamente nos últimos 300 anos, como indicam as escavações de Falótico, os macacos-prego decidiram-se pelo tamanho de ferramenta dos dias de hoje, condizente com a estratégia atual para quebrar cascas duras de castanhas-de-caju.

    Por que os macacos-prego da região alteraram a alimentação? Proffitt e Falótico não sabem ao certo. Talvez diferentes grupos de macacos-prego, cada um com seu próprio paladar distinto, tenham vivido nesse trecho da Serra da Capivara durante milênios. É possível ainda que as alterações simplesmente reflitam mudanças na flora da região.

    Williams-Hatala, que não participou do estudo, destaca que ainda não sabemos ao certo do que os antigos macacos-prego se alimentavam. As ferramentas mais primitivas não possuem resíduos característicos de castanha-de-caju, o que poderia significar que esses macacos-prego não consumiam castanhas-de-caju ou que os resíduos de castanha-de-caju simplesmente se degradaram ao longo do tempo. Ela ainda acrescenta que a estratégia principal de uso de ferramentas pelos macacos-prego — a percussão — não se alterou muito ao longo do tempo, então ela é comedida ao interpretar as mudanças no local.

    “O objeto usado para golpear muda ao longo do tempo, mas eu diria que isso não implica uma modificação na função das ferramentas, tampouco uma variação comportamental”, afirma ela.

    Proffitt e Falótico têm mais pesquisas planejadas, incluindo um estudo mais amplo sobre como distinguir os diferentes tipos de ferramentas de pedras não humanas. Dessa maneira, os pesquisadores seriam capazes de associar com maior facilidade as ferramentas de pedras de diferentes locais a seus usuários — e compreender as bases evolutivas do uso de ferramentas pelos primatas. Afinal de contas, nem todos os grupos de macacos-prego utilizam ferramentas de pedra — então por que os da Serra da Capivara e de regiões do Panamá utilizam?

    “Que aspectos da história evolutiva, da ecologia, dos sistemas sociais dessas populações de macacos-prego os afastaram 38 milhões de anos (os impediram de compartilhar ancestrais comuns com o homem moderno)?”, indaga Brendan Barrett, pesquisador de pós-doutorado do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva. “É provavelmente uma evolução independente”.

    Acima de tudo, os pesquisadores destacam a extrema variedade no uso de ferramentas pelos primatas — e como seria possível aos macacos-prego evoluir assim como evoluíram os ancestrais do homem. Por exemplo, às vezes, os macacos-prego criam lascas de pedras acidentalmente ao bater nas castanhas-de-caju, porém eles nunca foram observados na natureza utilizando essas lascas como ferramentas de corte, uma etapa crucial na evolução humana.

    “Se você definir ‘Idade da Pedra’ como um período em que os indivíduos utilizavam pedras como ferramentas, então os macacos-prego estão vivendo sua própria Idade da Pedra, é inquestionável”, afirma Proffitt. “Agora se essa Idade da Pedra evoluirá para algo bem mais complexo, não faço a menor ideia”.

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