Vírus do Nilo Ocidental ainda existe e matou milhões de aves nos EUA

Também mortal para os humanos, o vírus se intensificou com as mudanças climáticas e continua se propagando entre as aves como tetrazes-de-colar, corvos e corujas.

Por Jason Bittel
Publicado 16 de jun. de 2020, 17:18 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Um tetraz-de-colar macho exibe seu colar em um ritual de acasalamento em Fairbanks, no Alasca. Os ...

Um tetraz-de-colar macho exibe seu colar em um ritual de acasalamento em Fairbanks, no Alasca. Os cientistas dizem que a ocorrência da espécie está diminuindo rapidamente devido a uma combinação que envolve o vírus do Nilo Ocidental, mudanças climáticas e perda de habitat.

Foto de DESIGN PICS INC, Nat Geo Image Collection

SCOTIA BARRENS, PENSILVÂNIA, EUA Chief, um cão de pelagem alaranjada e branca da raça setter inglês, atravessa uma floresta de álamos tão espessa em alguns lugares que as árvores parecem engoli-lo, sendo o tintilar de sua coleira a única pista de seu paradeiro.

Nesses matagais impenetráveis no centro da Pensilvânia, conhecidos como Scotia Barrens, as caminhadas são difíceis. Mas esses locais são o habitat ideal dos tetrazes-de-colar — aves do tamanho de um corvo cuja coloração castanho-avermelhada e manchada se mistura às folhas caídas que Chief fareja com entusiasmo. Se ele retirar um tetraz-de-colar de seu esconderijo nesta tarde de novembro, receberá um carinho extra de sua proprietária, Lisa Williams. Isso porque a ave oficial do estado da Pensilvânia está ficando cada vez mais difícil de encontrar.

“Dependendo da pessoa com quem você conversa, o tetraz-de-colar é o rei das aves na caça ou é um frango silvestre”, diz Williams, bióloga especializada em tetrazes da Comissão de Caça da Pensilvânia, agência estatal cuja missão é proteger aves e mamíferos para as gerações presente e futura. Os caçadores valorizam o tetraz-de-colar porque são astutos — esquivos no chão e alvos difíceis no ar.

São nativos das Montanhas Apalaches e Rochosas, na região dos Grandes Lagos, e de grandes áreas do Canadá. Na temporada de acasalamento da primavera, os machos pulam em um tronco e batem suas asas rápida e ritmicamente em um crescente ploc ploc plocuma “batida” que percorre mais de 40 metros, e atravessa até uma cobertura espessa como a que estamos caminhando, seguindo Chief.

Mas, após algumas horas de busca, o setter não encontra nada.

Um tetraz-de-colar empoleira-se em um galho na reserva Sax-Zim Bog, em Minnesota. Em 2005, um biólogo encontrou anticorpos do vírus do Nilo Ocidental em aves mortas na Caçada Nacional Anual de Tetrazes e Galinholas, no centro-norte de Minnesota. Corvos, gaios-azuis e corujas são algumas das 300 espécies mais afetadas pela doença transmitida por mosquitos.

Foto de Benjamin Olson, Minden Pictures

Entre 1978 e 2000, as taxas de detecção de tetrazes-de-colar registradas por caçadores na Pensilvânia caíram 2%, refletindo o envelhecimento das florestas jovens e densas de que as aves precisam para encontrar alimento e abrigo, explica Williams. Mas, entre 2001 e o fim de 2018, as taxas de detecção caíram 54%.

O culpado?

O vírus do Nilo Ocidental: um patógeno transmitido por mosquitos que dominou os noticiários quando foi detectado pela primeira vez em Nova York, no verão de 1999. Muitos esperavam que o vírus atingisse a população humana como uma pandemia, mas a doença teve seu pico quatro anos depois, com pouco menos de 10 mil casos em todo o país. O medo se dissipou.

Contudo o vírus permaneceu na floresta, sendo transmitido entre aves — não apenas entre tetrazes-de-colar, mas entre mais de 300 espécies, causando lesões cerebrais e matando milhões de aves. “Algumas de nossas aves mais queridas estão desaparecidas”, diz Williams. Corvos, corujas e gaios-azuis estão entre as aves que sofreram perdas significativas devido ao vírus do Nilo Ocidental. A população de tetrazes-de-colar reduziu nos estados de Minnesota e Michigan a Carolina do Norte e Nova Jersey, um problema agravado pelas mudanças climáticas.

Na Pensilvânia, afirma Williams, o tetraz-de-colar apresentou um declínio de 23% entre 2017 e 2018 — “um péssimo ano”. O vírus do Nilo Ocidental, ela acrescenta, é “uma doença clássica das mudanças climáticas”. A chegada precoce da primavera nas florestas dá aos mosquitos mais tempo para que suas larvas se desenvolvam, e o aumento das chuvas, também estimulado pelas mudanças climáticas, permite o acúmulo de mais água estagnada onde os insetos se reproduzem.

Apesar de toda a seriedade da situação, a população de tetrazes-de-colar ainda não atingiu um nível crítico que permitisse proteções da Lei de Espécies Ameaçadas. Essa é mais uma razão para agir agora, diz Williams. “É necessário intervir antes que se transforme em uma situação de emergência. É preciso fazer alguma coisa enquanto ainda temos animais suficientes para reagir e intervir.”

Seguindo um palpite

Williams passou quase duas décadas trabalhando como especialista em morcegos na Comissão de Caça da Pensilvânia antes de passar a estudar o tetraz-de-colar em 2011. Ela havia testemunhado em primeira mão como a síndrome do nariz branco, um fungo que infecta os rostos e as asas dos morcegos, devastou as populações locais desse mamífero, e quanto mais ela analisava informações sobre a população de tetrazes-de-colar, mais suspeitava que algo semelhante estivesse acontecendo com as aves. Mas ninguém poderia afirmar com certeza, pois nos primeiros anos após o surgimento do vírus, a maioria das pesquisas se concentrava na saúde humana.

Em 2004, por exemplo, o maior criador de tetrazes em cativeiro da Pensilvânia relatou que 24 de 30 aves morreram durante um período de duas semanas. Isso o levou a enviar uma das aves mortas para teste em laboratório, que identificou o vírus do Nilo Ocidental como a causa da morte. Em 2005, um biólogo encontrou anticorpos do vírus do Nilo Ocidental em aves mortas na Caçada Nacional Anual de Tetrazes e Galinholas, no centro-norte de Minnesota. Em 2006, experimentos demonstraram que o vírus do Nilo Ocidental poderia ser especialmente letal para o tetraz-cauda-de-faisão, um parente do tetraz-de-colar nativo do oeste americano.

“Consegui juntar muitas peças conforme seguia esse palpite”, conta Williams.

Para obter uma ideia melhor do que estava acontecendo, Williams analisou as informações fornecidas pelos caçadores — um tesouro “incrível” que remonta a 1965. Na Pensilvânia, é permitido caçar tetrazes-de-colar a partir de meados de outubro até o fim de novembro, bem como por mais 10 dias na segunda quinzena de dezembro. Cada caçador pode levar até dois tetrazes por dia, mas não pode ter mais de seis armazenados no freezer de uma só vez para evitar a exploração excessiva das aves.

Em novembro de 2019, me juntei a Duane Diefenbach, ecologista da vida selvagem do Serviço Geológico dos Estados Unidos e sua cadela Chelsea da raça setter inglês, na Floresta Estadual de Susquehannock, na região centro-norte da Pensilvânia. Diefenbach é um dos centenas de caçadores que relatam tudo à comissão, desde o número de horas que passam procurando tetrazes e onde fazem as buscas até quantas vezes seus cães conseguiram retirar as aves de seus esconderijos.

Quando encurralado, o tetraz-de-colar salta da vegetação rasteira batendo suas asas ferozmente. Então, quando Chelsea para, sinalizando que farejou um tetraz, Diefenbach se aproxima, com a espingarda pronta. Mas nenhuma ave aparece. “Provavelmente o tetraz esteve aqui há 10 minutos”, lamenta ele.

Contudo até o fim do nosso passeio, Chelsea e um setter mais jovem chamado Parker haviam detectado oito tetrazes. Diefenbach não mata nenhum deles. “É assim que acontece na caça aos tetrazes”, conta ele com um sorriso.

Oito tetrazes pode parecer um bom número, mas 30 anos atrás, um dia nessa floresta provavelmente teria rendido 20 aves ou mais, de acordo com Diefenbach. “Todos que eu conheço concordam que há menos tetrazes e isso ocorre porque o habitat foi reduzido... mas se você é um caçador de tetraz dedicado, sabe que as mudanças nos últimos 10 anos não têm nada a ver com habitat.”

Para entender mais os efeitos do vírus do Nilo Ocidental no tetraz-de-colar, em 2014 Williams começou a pedir aos caçadores que enviassem amostras de penas e sangue, que ela testou na tentativa de detectar a doença. Ao contrário do que se pensava, afirma ela, em um ano de intensa atividade do vírus do Nilo Ocidental, apenas cerca de 4% das aves caçadas apresentam  anticorpos que indicam infecção prévia pelo vírus do Nilo Ocidental. Porém, nos anos em que o vírus do Nilo Ocidental diminui, até um quarto das aves caçadas pode apresentar resultados positivos para anticorpos. Isso ocorre porque, quando o vírus está em seu auge, o tetraz-de-colar não sobrevive tempo suficiente para ser capturado por caçadores no outono.

Williams diz que isso sugere que o verdadeiro número de vítimas do vírus provavelmente é ainda maior porque não há como estimar quantos tetrazes-de-colar morrem antes do início da temporada de caça.

Resistindo

Desde 2014, os estados de Minnesota a Maine e Carolina do Norte seguem o exemplo da Pensilvânia e coletam amostras de sangue do tetraz-de-colar. A maioria dos lugares registra declínios semelhantes aos da Pensilvânia, mas o Maine, inexplicavelmente, parece não ser afetado. Isso ocorre porque a maioria das caçadas — e 98% dos testes — ocorre na parte norte do estado, onde o clima geralmente é mais frio, explica Kelsey Sullivan, biólogo de aves migratórias do Departamento Interior de Pesca e Vida Selvagem do Maine. Ou, ele acrescenta, pode ser “que habitats de qualidade reduzam a ocorrência e aumentem a capacidade do tetraz-de-colar de resistir ao vírus e conter a propagação”. E os bosques do norte do Maine são como o paraíso para os tetrazes-de-colar.

Lisa Williams tem pressionado quanto à importância do habitat há um tempo. E, em 2019, ela se uniu a Bob Blystone e Jeremy Diehl, analistas de sistemas de informações geográficas da Comissão de Caça da Pensilvânia para desenvolver um modelo computadorizado capaz de avaliar a qualidade do habitat. O modelo é denominado Ferramenta de Localização de Áreas Prioritárias do Tetraz-de-colar (G-PAST) e pode ajudar agentes ambientais a identificar as melhores e piores áreas para a conservação dos tetrazes-de-colar.

O G-PAST prevê, por exemplo, que o Scotia Barrens — anteriormente um dos melhores habitats dos tetrazes-de-colar no estado — dificilmente recuperará esse status em toda a região devido à sua baixa elevação (onde os mosquitos tendem a se propagar), seu terreno plano (propício para acumular água parada onde os mosquitos se reproduzem) e sua falta de proximidade com as populações existentes de tetrazes (que têm potencial para repovoar a área). Por outro lado, o G-PAST considera que partes da Floresta Estadual de Susquehannock, onde o terreno é mais alto, podem servir como importantes santuários para os tetrazes-de-colar.

Com essas informações, a Comissão de Caça da Pensilvânia pode selecionar áreas florestais para estratégias de manejo, como cortar estacas de árvores mais antigas para incentivar o novo crescimento preferido pelos tetrazes, que também revigorará mais de 30 outras espécies, incluindo veados, ursos, perus e cascavéis.

Outra maneira de ajudar os tetrazes é ajustar as pressões que o humano exerce sobre as aves. Nova Jersey proibiu por tempo indeterminado a caça aos tetrazes-de-colar e está trabalhando com a Pensilvânia para criar sua própria versão do G-PAST. Tanto o estado da Pensilvânia quanto o de Wisconsin reduziram suas temporadas de caça, e Ohio está pensando em fazer o mesmo. Os caçadores apoiaram as medidas.

“Os caçadores de tetrazes são únicos”, diz Williams. “Eles admiram muito a espécie e estão dispostos a desistir de sua própria atividade recreativa para tentar ajudar.”

Enquanto isso, em coordenação com caçadores e outros estados dos Grandes Lagos, o Departamento de Recursos Naturais de Minnesota, com sede em Saint Paul, iniciou recentemente um estudo de dois anos sobre o vírus do Nilo Ocidental em tetrazes-de-colar. De acordo com Charlotte Roy, líder do projeto, o estado tem recebido chuvas extremas com mais frequência, o que pode levar ao aumento de mosquitos transmissores do vírus do Nilo Ocidental.

“Precisamos estar cientes dos impactos que exercemos nos processos naturais e realizar ações corretivas onde for possível”, diz ela. “O vírus do Nilo Ocidental continuará aqui, independentemente de prestarmos atenção a ele ou não.”

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