Em busca de pinguins, expedição encontra show de baleias em Ilhabela

Reportagem acompanhou monitoramento de animais marinhos no litoral de São Paulo depois que um número recorde de pinguins-de-magalhães mortos ou debilitados apareceram em praias brasileiras.  

Por João Paulo Vicente
fotos de Ethel Braga
Publicado 14 de ago. de 2020, 12:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
A bióloga Dominique Gallo fotografa o salto de uma jubarte no mar de Ilhabela, litoral de São Paulo.

A bióloga Dominique Gallo fotografa o salto de uma jubarte no mar de Ilhabela, litoral de São Paulo. 

Foto de Ethel Braga

“Baleia! Baleia!”

Quem via a empolgação de Dominique Gallo poderia imaginar que era a primeira vez que ela avistava o mamífero. De um pulo em pé na proa da Stenella, uma lancha de 35 pés utilizada pelo Instituto Argonauta para fazer monitoramento de praias de difícil acesso no Litoral Norte de São Paulo, a bióloga apontava a nadadeira dorsal quase imperceptível – notada primeiro pelo biólogo Manuel da Cruz Albaladejo – algumas centenas de metros à frente do barco. 

Nos últimos dois anos, Dominique trabalhou com turismo de avistamento de cetáceos – baleias e golfinhos – na Ilha da Madeira, em Portugal. Por lá, 28 espécies desses animais podem ser observadas com bem mais facilidade que na costa brasileira. Mesmo assim, conta ela, os encontros nunca são banais. “Não cansa, cada vez elas têm um comportamento diferente”, diz. “Eu sempre tenho a mesma emoção, fico toda arrepiada.”

Não fosse a pandemia da covid-19, Dominique estaria bem longe. O plano para 2020 era trabalhar durante o verão do hemisfério norte nos Açores, outro arquipélago em Portugal, ou na Islândia. Mas com as fronteiras fechadas, ela ficou em Campinas. Os meses longe do mar, porém, deixavam Dominique inquieta. No começo de julho, juntou-se ao Instituto Argonauta como voluntária. E ainda que as baleias sejam uma surpresa agradável, o grosso do trabalho era outro: cuidar e entender como e por que morreram tantos pinguins nas praias brasileiras neste inverno – um número recorde.

De janeiro a junho deste ano, 2.567 pinguins foram encontrados mortos ou debilitados entre Laguna, no litoral de Santa Catarina, e Saquarema, no Rio de Janeiro – a área monitorada pelo Projeto de Monitoramento de Praias da Bacia de Santos (PMP-BS) –, quase 30 vezes a mais do que no mesmo período de 2019. No litoral de Santa Catarina, 1.153 foram resgatados somente no mês de junho. No de São Paulo, 1.161.

Volta em Ilhabela

O PMP-BS foi criado em 2015, como condicionante do Ibama para que a Petrobrás pudesse explorar a camada do pré-sal na Bacia de Santos. A área de monitoramento é divida em 15 trechos, que ficam a cargo de 11 institutos diferentes. O Argonauta é responsável pelas praias dos municípios do litoral norte de São Paulo – Ubatuba, Caraguatatuba, Ilhabela e São Sebastião. Por lá, o primeiro pinguim-de-magalhães foi encontrado em 9 de junho, na praia de Itaguaçu, em Ilhabela. A partir daí, eles passaram a aparecer às dezenas. Até o fim de julho, 567 pinguins haviam sido recolhidos, 423 deles mortos e 144 vivos.

O monitoramento é feito a pé em centenas de praias de fácil acesso quase diariamente e, de barco, em outras mais remotas uma vez por semana. A reportagem acompanhou uma dessas saídas de barco, contornando Ilhabela em busca de animais marinhos.

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    Beleia-jubarte no mar de Ilhabela. Com o aumento da população de jubartes na costa brasileira, avistamentos de baleias são cada vez mais comuns no litoral de São Paulo.

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    “Entre pinguins mortos e vivos, só eu encontrei 40”, diz Manuel da Cruz Albaladejo, biólogo da instituição que trabalha na equipe embarcada na Stenella junto ao marinheiro Willian Moreira. “Mas teve gente que pegou, em um só dia na praia, 100 animais”, conta ele. Em 27 de junho, por exemplo, foram encontrados 194 pinguins mortos.

    Manuel é cria de instituições de pesquisa e preservação marinha de Ubatuba. Em 1995, com 15 anos, conheceu a base do projeto Tamar na cidade, a primeira em uma área de alimentação – e não apenas de reprodução – de tartarugas-marinhas. “Eu fiquei encantado. Saía da escola e ia para lá todo dia, ficava vendo os estagiários explicando as tartarugas”, conta. “Uma hora, eu mesmo já estava dando as explicações.” Logo ele arrumou um estágio no local. Mas, no ano seguinte, quando o Aquário de Ubatuba foi inaugurado ao lado da base do Tamar, a paixão mudou de lugar e ele de emprego: virou bilheteiro do aquário.

    Depois de estudar Biologia, Manuel voltou à região, desta vez para trabalhar com o Instituto Argonauta, em 2015, no início do PMP. Desde então, já viu algumas cenas inusitadas no mar. Em junho, durante um dos monitoramentos embarcados, por exemplo, ele notou um comportamento estranho em um pequeno grupo de golfinhos-de-dentes-rugosos.

    “Eles estavam nadando em volta de uma rede de pesca, eram cinco ou seis que se revezavam em se aproximar. Eu achei estranho e fiquei preocupado com eles se enroscarem na rede”, diz. Para evitar que isso ocorresse, o biólogo se aproximou do local e puxou a rede – havia um pinguim-de-magalhães recém-morto preso ao instrumento. “Eu retirei o pinguim e rapidamente os golfinhos perderam o interesse.” Segundo Hugo Gallo, diretor-presidente do Instituto Argonauta, esse tipo de comportamento nunca havia sido registrado.

    O banquete dos golfinhos aconteceu em frente a Praia das Enchovas, no lado oceânico de Ilhabela. No mesmo local, outro caso curioso se deu em 2018. Em junho daquele ano, uma jubarte morta encalhou ali. A maré forte jogou o corpo da baleia por cima das pedras que recortam a areia da praia, o que impossibilitou a retirada. Estacionada na desembocadura de um riacho, a baleia ficou se decompondo a poucos metros de uma casa da praia, residência de um caiçara chamado Anacleto. Quem já sentiu, conta que o cheiro é insuportável.

     

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      A cauda de uma baleia-jubarte funciona como uma impressão digital – é por ela que os pesquisadores identificam cada indivíduo.

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      Céu claro em Ilhabela. Caçadas quase à extinção, as jubartes passaram anos sem serem vistas no litoral de São Paulo. Apenas recentemente elas voltaram a nadar por lá.

      Foto de Ethel Braga

      No verão, quando a fedentina já tinha abacado, um grupo de turistas que passava nas Enchovas a partir de uma trilha da praia do Bonete, mais ao sul, quis levar alguns ossos da baleia como souvenir. Anacleto proibiu. “Eu aguentei esse cheiro sozinho”, teria dito o caiçara. “Agora, quem vai ficar com os ossos sou eu.”

      O salto da jubarte

      A baleia encalhada em Enchovas não é um caso isolado. O número de encalhes de jubartes, especificamente, tem aumentado em todo o Brasil de maneira significativa. Não é necessariamente ruim. Na verdade, pode ser lido como um efeito colateral do aumento da população da espécie no Atlântico Sul graças aos esforços de conservação – um número que já esteve próximo a três mil por conta da caça ao animal e hoje supera 20 mil.

      Entre junho e julho até novembro, as jubartes saem das águas frias da Antártica para se reproduzirem e amamentarem na região do Banco de Abrolhos, na Bahia. O litoral de São Paulo, portanto, faz parte da rota. Nos últimos anos, no entanto, elas têm aparecido mais – e mais próximas à costa.

      “Antes, elas sempre passavam por aqui. Mas a impressão que temos é que elas estão ficando mais tempo”, diz Hugo Gallo, que é oceanógrafo e, além de liderar o Instituto Argonauta, também é diretor executivo do Aquário de Ubatuba. Não há explicação ou estudo científico que comprove isso, mas Gallo levanta uma possibilidade. Nos últimos cinco anos, meteorologistas têm registrado um aumento de 3ºC nas águas do litoral de São Paulo. “Vai ver a água está ficando em uma temperatura boa e elas estão parando por aqui e não seguindo até a Bahia”, sugere. “Pode ser uma causa, e isso já é uma alteração ambiental. O aquecimento global está aí, e esse deslocamento da biogeografia de diversas espécies já é uma coisa esperada.”

      De passagem ou não, às jubartes se somam principalmente baleias-de-bryde e baleias-franca. Em 2004, por exemplo, o Instituto Argonauta registrou quatro baleias no Litoral Norte entre avistamentos e encalhes. Em 2016, foram 32. No ano passado, 20. Em 2020, até julho, eram 25. Os números não incluem orcas – consideradas golfinhos –, mas elas também aparecem. Em um encontro no ano passado, Manuel e Willian contam que um filhote de orca chegou a apoiar a cabeça na plataforma de popa da lancha. Curioso, o bichinho observava os humanos dentro do barco. Até que a mãe o puxou pela barbatana com a boca e os dois animais se afastaram.

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        Baleia-jubarte fica com o corpo quase inteiro de fora d'água. O motivo pelo qual a espécie gosta tanto de saltar é incerto. Alguns pesquisadores acreditam que o movimento ajuda a remover cracas e parasitas que se formam na pele do animal.

        Foto de Ethel Braga

        Antes de "pousar", a jubarte ainda vira o corpo para cair de lado.

        Foto de Ethel Braga

        “Há esse aumento de avistagens de baleias na região”, diz Manuel. “Mas ainda não está claro se isso reflete um aumento no número de indivíduos. Este ano, especificamente, a fauna está mais à vontade, sem tanta gente na água, as avistagens estão mais tranquilas.”

        Numa segunda-feira de julho, a expectativa era alta entre a equipe do Argonauta em ver as jubartes próximas a Ilhabela. Depois de semanas de clima hostil, o mar estava colado, ou seja, tranquilo, nas palavras do marinheiro Willian. No domingo anterior, uma baleia fora vista no norte da parte externa da ilha, entre a Ponta Grossa e a Ilha da Serraria.

        E foi exatamente ali onde Manuel primeiro apontou a presença das baleia. Após a excitação inicial, uma surpresa. Enquanto uma jubarte estava à direita, uma baleia-de-bryde aparecia à esquerda. As brydes, que chegam a medir 17 metros e pesar 40 toneladas, costumam ser ariscas próximas a embarcações. Nadam em zigue-zague e mergulham por longos minutos. Depois que desaparecem debaixo d’água, é quase impossível prever onde vão emergir.

        Por isso, o foco ficou com a jubarte, de medidas máximas semelhantes às de uma bryde. A baleia nadava pela superfície tranquila e demorou alguns minutos até levantar a cauda para fora d’água. O momento era aguardado com ansiedade, já que a parte inferior da cauda de cada jubarte tem um padrão único de cores – em outras palavras, funciona como uma espécie de digital. A dessa era toda preta, o que confirmava que se tratava do mesmo animal visto no dia anterior.

        De repente, no horizonte, uma terceira baleia pulou com o corpo inteiro para fora do mar. Ainda que distante, o som da pancada seca do corpo do animal batendo na água impressiona. Era mais uma jubarte, menor do que a primeira. Logo, se aproximou, bem mais expansiva, e começou um comportamento repetitivo. Primeiro, ficava um pouco à superfície. Depois, levantava as grandes nadadeiras peitorais para cima e batia com força na água. A espécie tem as nadadeiras peitorais mais longas entre todas as baleias – podem chegar a cinco metros de comprimento. Em seguida, levantava a cauda – com a parte inferior toda branca – para um mergulho.

        Nesse momento, sobrava uma marca onde a baleia havia sumido, uma textura diferente no mar, chamada de footprint ou ressolho, seguido de alguns minutos de calmaria. Então, a jubarte voltava a saltar, num showzinho particular que durou pouco menos de meia hora. Os pulos eram rápidos e impressionantes, mas o que resta mais claro na memória são os sons: além da batida do corpo e das nadadeiras laterais contra água, o esguicho de respiração que indica em que lugar ao redor do barco a baleia apareceria.

        À bordo do Stenella, a equipe do Instituto Argonauta monitora o mar e praias remotas do litoral norte de São Paulo uma vez por semana. 

        Foto de Ethel Braga

        A bióloga Dominique Gallo estava de malas prontas para a Europa, onde ia trabalhar com os cetáceos do Atlântico Norte. Com as fronteiras fechadas devido à pandemia, resolveu estudar os animais marinhos no litoral de São Paulo.

        Foto de Ethel Braga

        No meio de tanta animação, ainda teve tempo para um coadjuvante de luxo. Ao lado do Stenella, surgiu, por um breve intervalo, uma tartaruga-de-couro, a maior das tartarugas-marinhas, que pode ultrapassar dois metros de comprimento. É uma visão rara. Em geral, são registradas dez por ano no Litoral Norte, todas mortas. “Nós só havíamos visto uma viva uma outra vez”, conta Manuel. “E isso foi a 80 km da costa, quando estávamos soltando um pinguim recuperado.”

        Redes de pesca e lixo plástico

        O encontro com as baleias ocorreu ainda no início de um monitoramento, numa rota de 114 km ao redor de Ilhabela. O trajeto inclui dezessete praias cujo acesso a pé é impossível ou muito difícil. Começando pelo lado Norte, elas são Pacuíba, Jabaquara, Fome, Poço, Prainha, Ponta Grossa, Serraria, Caveira, Guanxuma, Eustáquio, Prainha do Eustáquio, Castelhanos, Mansa, Vermelha, Figueira, Indaiaúba, Enchovas e Bonete. Conforme se aproxima de cada uma delas, o barco precisa alcançar alguns pontos marcados via GPS, enquanto Manuel registra as condições meteorológicas. Um processo semelhante acontece nas praias de fácil acesso, no entanto, ele é feito a pé.

        Todo o trabalho faz parte do Programa de Monitoramento de Praias da Bacia de Santos e a ideia é monitorar a presença de resíduos da exploração do Pré-Sal, lixo relacionado, como bóias offshore, e aves, tartarugas e mamíferos marinhos feridos ou mortos. Do barco, Manuel e Willian buscam manchas brancas na areia que possam indicar algum animal. Outro indicativo claro são os urubus, que sobrevoam os corpos.

        Caso algum tetrápode seja encontrado, é levado de volta para necropsia, se morto, ou para reabilitação, quando vivo. Naquela segunda, nenhum foi visto pela equipe embarcada. Mas uma tartaruga-cabeçuda apareceu já bem decomposta em uma praia do lado de dentro de Ilhabela. “Entre as ocorrências que temos, as tartarugas são as que mais ocorrem”, conta Hugo. Desde 2012, o instituto já registrou mais de dez mil animais. Até agora, nenhum caso envolveu contaminação por petróleo. Mas isso não significa que os humanos possam lavar as mãos.

        “Fazer esse monitoramento é extremamente importante. Primeiro, porque demonstra a importância dessa região para a biodiversidade costeira, já que temos ocorrências de diversas espécies ameaçadas e vulneráveis”, explica Hugo. “Segundo, porque mostra quais são as principais ameaças a esses grupos de animais, principalmente a pesca incidental e poluição, que inclui lixo e outros poluentes.” Como o plástico.

        “A gente encontra bastante lixo no trato estomacal dos animais, nas tartarugas têm muito”, conta Dominique. Sobrinha de Hugo, a bióloga havia trabalhado no Argonauta entre 2015 e 2017 quando foi para a Europa estudar contaminação por plástico em animais. De volta ao Litoral Norte de São Paulo por conta da pandemia, o dia-a-dia dela incluía trabalhar na reabilitação de animais resgatados e auxiliar em necropsias e no monitoramento embarcado. Nas saídas de barco, tinha um sonho: ver uma jubarte.

        “Eu nunca havia visto, ela aparece na Ilha da Madeira, mas é mais rara do que aqui. Já estava perdendo as esperanças”, diz. “Ela é linda, acrobática, muito simpática.”

        Sonho realizado, o encanto permanecia. Enquanto a lancha se aproximava da marina para desembarcar em São Sebastião, Dominique e Manuel trocavam informações em um grupo de WhatsApp com membros do Baleia à Vista e do Viva Baleias, Golfinhos e Cia, outras instituições que monitoram os cetáceos na região.

        Do lado oceânico de Ilhabela, chegava a notícia de outra jubarte avistada. A foto da cauda rajada não deixava dúvida: era uma gigante diferente das que havíamos encontrado mais cedo.

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