Expedição resgata subfósseis de tamanduás em caverna de Bonito

Pesquisadores mergulharam no lago do Abismo Anhumas para resgatar ossadas e tentar entender a história dos xenartras – subordem que inclui tamanduás, tatus e preguiças.

Equipe de pesquisadores mergulhou 18 metros no lago da caverna Abismo Anhumas, em Bonito (MS), para resgatar ossadas de tamanduás que viveram há milhares de anos.

Foto de André Bittar
Por Paulina Chamorro
Publicado 12 de dez. de 2021, 11:37 BRT

Criar uma linha do tempo na conservação de espécies é tão importante para planejar estratégias de conservação quanto conhecer o presente. Esse caminho evolutivo ajuda a criar cenários hipotéticos para entender a realidade atual. Mas como, na prática, a história da vida no planeta contribuiu para a conservação de espécies e seus ambientes naturais?

É isso que uma expedição de pesquisa realizada em junho de 2021, em Bonito, Mato Grosso do Sul, tenta responder. Trata-se da primeira expedição exploratória de cavernas úmidas da região. Sua missão: juntar as peças e datar os esqueletos de tamanduás que repousam nas profundezas do Abismo Anhumas, um conhecido ponto turístico no meio da Serra da Bodoquena.

O trabalho é emblemático para quem pesquisa os xenartras, subordem de mamíferos que inclui tamanduás, tatus e preguiças. “O explorador busca resolver, registrar elos perdidos que possam contar a história evolutiva da fauna e flora, e todos os processos de evolução de forma”, explica Flávia Miranda, pesquisadora da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), em Ilhéus, na Bahia, que conduziu a expedição, em entrevista à reportagem. “É um quebra-cabeças, e a gente precisa de peças para montar essa história.”

O objetivo é construir o passado do tamanduá, que, apesar de ser um dos mamíferos mais antigos da América do Sul, possui pouquíssimos registros antigos. O tamanduá-bandeira, por exemplo, é uma espécie ameaçada de extinção, por isso, correr para revelar seu passado pode ser determinante para traçar o futuro frente às mudanças climáticas e à deterioração dos ambientes.

“É maravilhoso o que vai acontecer”, me conta Flávia em outubro, logo depois de receber os resultados de datação dos fragmentos. Os ossos recolhidos pela equipe são subfósseis (restos com menos de 11 mil anos) – um de 1.496 anos atrás e outro em torno de 2 mil anos, segundo datações da Universidade de Geórgia, nos EUA.

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    Antes de recolher fragmentos de tamanduá do fundo da caverna, a equipe de pesquisadores fez uma primeira expedição de reconhecimento. para fazer medições. Vídeo de Eduardo Rocha de Oliveira.

    “Este local de estudo está sendo explorado porque é uma área muito rica no Pleistoceno. Já foram encontrados fósseis pleistocênicos com mais ou menos de 1,6 milhões de anos, onde a gente tinha uma diversidade de espécies de xenartras muito grande”, diz Flávia. “Por isso a área foi escolhida.”

    Mesmo que o mergulho em si tenha durado apenas um dia, a equipe levou meses planejando métodos e estratégias para retirar todo o material do fundo da caverna com o mínimo de perturbação do ambiente, além de coletar material genético de animais vivos no Centro de Reabilitação de Animais Silvestres de Campo Grande e em campo, na região de Aquidauana, em Mato Grosso do Sul. A viagem contou com apoio da Universidade Estadual de Santa Cruz e da empresa mantenedora do Abismo Anhumas, e foi registrada pelo pelo fotógrafo André Bittar.

    A região é alvo de outras pesquisas lideradas por Flávia Miranda. Em setembro de 2020, durante os incêndios que consumiram o Pantanal, Flávia correu para coletar material genético de espécies ameaçadas para criar um banco de germoplasma e preservar, para a posteridade, informações sobre a biodiversidade pantaneira.

    Para esta nova expedição, Flávia contou com o apoio do biólogo Edmundo Dinelli, um dos maiores conhecedores das cavernas de Bonito. Por vídeo-chamada, ele me conta que tem mais de duas décadas de experiência como mergulhador e bioespelólogo, ou seja, biólogo especialista na vida dentro das cavernas, principalmente na Serra da Bodoquena.

    Edmundo, assim como Flávia, também tem uma vocação à exploração – ele já descobriu três novas espécies, dois peixes e um crustáceo. Um desses peixes, um bagre típico de caverna, foi descrito em um gênero completamente novo. A descoberta, em 1996, contribuiu para criar um novo olhar – com disponibilização de bolsas de estudo – para a ciência de cavernas, uma atividade até então com poucos especialistas.

    Com Edmundo e Flávia, formou-se então a dupla perfeita para começar a desvendar e a datar os vestígios de vida nas profundezas do Abismo Anhumas.

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        À esquerda: No alto:

        Pesquisadores começam a descer pela entrada do Abismo Anhumas – até a superfície do lago são 72 metros. 

        À direita: Acima:

        Equipe se reune na plataforma sobre o lago do Abismo Anhumas antes de entrar na água.

        fotos de André Bittar

        Explorada pela primeira vez em 1984 e aberta ao público em 1999, a caverna Abismo Anhumas é um dos passeios mais populares entre os aventureiros que visitam Bonito, em Mato Grosso do Sul. 

        Foto de André Bittar

        História das profundezas

        O Abismo foi descoberto na década de 1970. Após um incêndio que afetou o terreno, funcionários da fazenda Anhumas encontraram um buraco aparentemente fundo. Mas a primeira visita foi organizada somente em 1984, quando escaladores desceram de rapel 72 metros – a altura da boca do buraco até o lago interior – e desenharam os primeiros croquis.

        Com mais pessoas explorando e mergulhando em cavernas na região da Bodoquena, e mais especialista em técnicas verticais, em 1996, antes do local ser aberto para visitação pública, uma nova expedição foi organizada. Na época, buscava-se provar uma possível conexão entre a gruta da Lagoa Azul e o Abismo. Edmundo Dinelli foi a primeira pessoa a chegar no fundo da caverna, em um mergulho exploratório de 78 metros de profundidade. 

        Em 1998, ele foi convidado para fazer o plano de manejo do Abismo. Para isso, explorou o lago exaustivamente. “Eu investi muitas horas embaixo d'água, prospectando cada canto, cada dobrinha. Do ponto mais fundo ao mais raso. Nesse processo de pesquisa, apareceu esse esqueleto de tamanduá, já fundido em rocha”, conta Edmundo. “O tamanduá sempre chamou a atenção. Mas, até então, não tinha despertado o interesse de nenhum especialista.”

        Flávia Miranda conta que sabe da existência dos esqueletos desde que tinha 17 anos, quando era guia em Bonito, e desde 2012 trabalha para colocar a expedição em prática. Em 2021 conseguiu os apoios necessários. Como uma exploração dessas é muito custosa, pois envolve deslocamento de equipe, translado de equipamentos especiais e outros detalhes, Edmundo pediu a um mergulhador local, Eduardo Eduardo Rocha de Oliveira, que fizesse um trabalho inicial de reconhecimento. Ele produziu fotos do fóssil com uma escala e as enviou para Flávia.

        Depois, foi organizada mais uma leva de coleta de indícios. “Foto com escala, morfometria dos ossos, que são mais importantes”, explica Edmundo. “Caso a análise e datação revelem ser algo diferente, inédito, já há uma base de dados para dar robustez ao processo.”

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          Parte da ossada recolhida disposta na plataforma dentro da caverna. A expectativa dos pesquisadores era que a datação revelasse um fóssil, com mais de 11 mil anos. No entanto, mesmo estas peças datadas em mil a dois mil anos terão grande valor para o conhecimento da espécie.

          Foto de André Bittar
          À esquerda: No alto:

          De um bote, Flávia Miranda analisa um fragmento ósseo retirado do fundo do lago do Abismo Anhumas. 

          À direita: Acima:

          O mergulhador Edmundo Dinelli conversa com Flávia Miranda depois de uma descida ao fundo da caverna.

          fotos de André Bittar

          O dia para descida e retirada de fragmentos, já com a presença de Flávia e Edmundo, foi marcada para junho de 2021. A equipe desceu o lance vertical de 72 metros em uma espécie de guincho e o mergulho atingiu 18 metros de profundidade, onde está o esqueleto mais completo. “Os outros dois esqueletos estão em áreas mais rasas. Um a 12 metros e o outro quase na superfície, a dois metros”, explica Edmundo.

          Todo o cuidado para retirar as ossadas sem comprometê-las ou ao ambiente aumenta o tempo de permanência embaixo d’água e cria outros desafios: o frio e o risco de hipotermia. Todo esse esforço, no entanto, é apenas a primeira etapa em um longo e contínuo trabalho de pesquisa. Da escuridão do fundo da caverna do Abismo, esses fragmentos de esqueleto de tamanduá vão jogar luz à história da espécie na América do Sul.

          Passos seguintes

          “Foram retiradas três amostras, de três animais. Dentre essas, um crânio, um úmero e uma vértebra”, conta Flávia Miranda. Apenas pedaços serviram para a datação, o resto está armazenado na Universidade Federal da Bahia (UFBA) – onde está disponível para novas pesquisas – ou foi deixado na caverna.

          “O que retiramos foi, primeiro, para o laboratório da UESC. Na UFBA, o paleontólogo Mário Dantas, especialista em megafauna do Pleistoceno e paleoecologia isotópica, fez uma triagem para a retirada de fragmentos. Apenas esse pequeno material foi enviado para datação à Universidade de Geórgia”, explica Flávia.

          Além da datação por carbono, cientistas da universidade americana também fizeram estudo de isótopos. “Agora conseguimos criar cenários hipotéticos, para avaliar como era a distribuição dessas espécies”, conta a pesquisadora. “Podemos criar mapas de mil, dois mil anos atrás, até a data presente. Com o isótopo, podemos ver como era a temperatura e fazer um cenário de paisagens.”

          A expectativa dos pesquisadores era de que a datação revelasse um fóssil – ou seja, vestígio de um ser que viveu há pelo menos 11 mil anos, antes do Holoceno. No entanto, mesmo estas peças ‘mais recentes’, de mil a dois mil anos, ajudarão a estabelecer mais uma etapa de conhecimento da espécie.

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            Havia três ossadas no fundo do lago do Abismo Anhumas. A mais profunda foi recolhida em um mergulho de 78 metros.

            Foto de André Bittar

            “Fizemos também a datação dos viventes, que é o projeto Arca Xenarthra. Pegamos todos os tamanduás-bandeira com amostra no Brasil e fizemos a análise genética para estudar as populações”, explica Flávia. “Agora vamos ter informações de populações mais antigas, onde veremos cenários e ligações com este subfóssil recente, de dois mil anos.”

            Segundo Edmundo, isso é fundamental para recontar muitas histórias. “Quanto mais se conhece a paleofauna, de todos os animais que já não estão vivos, mais temos uma ideia de distribuição dessas espécies”, diz o mergulhador. “Juntando os fragmentos de ocorrência, começamos a entender migrações. Quando juntamos dados de paleofauna e de paleoclima, aprendemos sobre o ambiente que esses animais viveram.”

            Janelas para o passado

            Com a ameaça constante das mudanças climáticas globais, entender como esses animais, hoje em risco de extinção, sobreviveram em outras épocas, outros climas, torna-se especialmente relevante. “Encontrar estes animais é ter mais duas ou três páginas de uma história que você está contando, e que não tem todos os elementos. Estamos acessando janelas do passado”, diz Edmundo.

            Todo esse investimento – em pesquisar, conhecer e datar esses esqueletos – se justifica porque “a gente precisa buscar as coisas que ninguém viu ainda”, diz Flávia. “A história evolutiva desses mamíferos é muito importante para a formação da história da América Latina e dos placentários.”

            Que essa janela aberta para o passado dos tamanduás contribua para sua conservação – e que sua história tenha ainda muitos capítulos.

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