Esses animais se sacrificam a favor da espécie
Das cabeçadas dos bois-almiscarados ao auto sacrifício das abelhas, a evolução favorece populações, não indivíduos.
Cabeçada de boi-almiscarado masculino no Centro de Conservação da Vida Selvagem do Alasca, em Anchorage. Os touros competem pelo acesso às fêmeas durante a época de reprodução.
Um boi-almiscarado macho pode pesar até 360 kg e chegar a velocidades acima de 50 quilômetros por hora. Durante a época de reprodução, esses gigantes peludos do Círculo Ártico colidem um com o outro e depois apunhalam seus oponentes com seus enormes e afiados chifres.
Além disso, durante o seu período de vida – de 10 a 12 anos – um boi-almiscarado macho pode acumular até 2.100 golpes na cabeça. Tudo isso levanta a seguinte pergunta: como os bois-almiscarados sobrevivem a esses ataques sem transformar seus cérebros em mingau?
“As pessoas sempre acreditaram que animais que dão cabeçadas, como bois-almiscarados e carneiros selvagens, são de alguma forma imunes a lesões na cabeça”, diz Nicole Ackermans, neurocientista da Escola de Medicina Icahn, no Monte Sinai, em Nova York. “É como se eles tivessem chifres mágicos, ou algo assim.”
Mas quando Ackermans começou a ler a literatura científica, descobriu que ninguém havia estudado se esses herbívoros norte-americanos sofrem danos cerebrais por causa deste hábito de bater as cabeças. Portanto, ela e outros colegas adquiriram cérebros de bois-almiscarados e carneiros selvagens provenientes de expedições de campo, doações de caçadores de subsistência e rebanhos de pesquisa em cativeiro.
“Encontramos um padrão específico em todos nossos exemplares que parecia ser muito semelhante ao trauma cerebral crônico humano”, diz Ackermans, que liderou um artigo recente sobre as descobertas, publicado na revista Acta Neuropatholgica.
A nova pesquisa pode ser fundamental para obter uma melhor compreensão das lesões cerebrais em humanos, diz Ackermans, porque os bovídeos (animais como bois e ovelhas) têm cérebros dobrados e enrugados que são mais parecidos com o nosso do que, digamos, camundongos, cujos cérebros são lisos.
Também é evidência de que a evolução pode levar uma espécie a caminhos surpreendentemente autodestrutivos. E no que respeita a isto, os bois-almiscarados estão longe de estar sozinhos.
Não Morrer
Para sua pesquisa, Ackermans e seus colegas mancharam os cérebros de três bois-almiscarados e quatro carneiros selvagens com biomarcadores. Esses produtos químicos podem iluminar padrões de trauma cerebral comumente associado a condições humanas, como doença de Alzheimer e encefalopatia traumática crônica, ou CTE. Nesse caso, os cientistas estavam procurando especificamente por algo conhecido como proteína tau.
“Quando seus neurônios são danificados, seja por envelhecimento, problemas genéticos ou impacto mecânico, eles são rasgados e a proteína se decompõe e se forma em grupos”, explica Ackermans. “E se você os observa em padrões específicos, é assim que você pode detectar se é apenas um cérebro normal, ou envelhecimento, ou Alzheimer, ou um possível trauma.”
Infelizmente, o método do biomarcador não funcionou tão bem nos cérebros das ovelhas, embora mostrassem sinais de acúmulo de tau. No entanto, os cérebros dos bois almiscarados se iluminaram com tau como uma árvore de Natal.
À primeira vista, pode não fazer sentido que um comportamento natural, como dar cabeçadas, possa ser tão prejudicial. Mas o importante é o longo prazo, diz Ackermans.
“A cada ano, um boi-almiscarado dá várias cabeçadas, mas se eles se reproduzirem com sucesso pelo menos uma vez, isso é tudo o que você precisa”, explica. “O que fomentamos, evolutivamente, é simplesmente não morrer.”
Provavelmente ajude o fato de os bois-almiscarados machos viverem menos de 15 anos e as fêmeas entre 15 e 23 anos, diz ela. Portanto, mesmo que as proteínas tau estejam se acumulando ao longo da vida dos animais, elas podem nunca chegar ao ponto de causar doenças como Alzheimer ou outras demências.
“Suas vidas não são tão complicadas”, destaca Ackermans. “Então, potencialmente, eles sobrevivem o suficiente para fazer o que precisam fazer.”
E mesmo que desenvolvessem essas condições, quem saberia? “Não há escala comportamental para o boi-almiscarado. Portanto, não podemos dizer que eles não estejam se sentindo um pouco perdidos”, esclarece.
Em breve, Ackermans quer estudar várias espécies de pica-paus para ver se eles apresentam trauma cerebral por seus comportamentos de bater a cabeça. O único outro estudo que analisou o cérebro das aves encontrou alguma evidência de tau, mas “não estava realmente em nenhum padrão específico”, conta.
Acasalamento mortal
De certa forma, os bois-almiscarados são um paralelo interessante com certos marsupiais, diz Diana Fisher, ecologista de mamíferos da Escola de Ciências Biológicas da Universidade de Queensland, na Austrália.
Pequenos e carnívoros, os Antechinus são um gênero nativo da Austrália continental e da Tasmânia. Nos últimos anos, eles foram notícia pela maneira como os machos praticam a semelparidade – ou um único evento reprodutivo, seguido da morte. As fêmeas Antechinus podem viver de dois a três anos ou mais. Mas os machos raramente duram mais de 11 meses.
“Eles têm uma temporada de reprodução muito frenética”, conta Fisher. Os períodos de acasalamento podem durar de 12 a 14 horas e, depois disso, cada macho tentará copular com quantas outras fêmeas puder – o que leva à sua morte.
“O colágeno em sua pele se desintegra, seu intestino se desintegra e eles têm sangramento interno”, esclarece Fisher. “Eles se tornam muito suscetíveis a parasitas e doenças, e seu sistema imunológico falha.” Eles morrem em questão de semanas.
“Isso é muito raro para os mamíferos, que tendem a sobreviver tempo suficiente para experimentar várias estações de acasalamento”, comenta Fisher.
A reprodução suicida é mais comum em insetos, peixes, plantas e aracnídeos: como a aranha redback, nativa da Austrália, que quando acasala, o macho se coloca na boca da fêmea.
“Isso dissuade a fêmea de acasalar novamente”, destaca Fisher, “porque ela está ocupada comendo”.
Insetos autodestrutivos
Em grandes colônias de insetos, ocorre uma dinâmica semelhante, mas ligeiramente diferente.
Quando uma Abelha Europeia pica um agressor de pele macia, como um urso, ela morre quando seu ferrão se aloja na pele da vítima. Uma formiga-explosiva pode rasgar seu abdômen em dois enquanto defende seu ninho de atacantes. E em algumas espécies de cupins, os membros mais velhos da colônia podem se transformar em terroristas suicidas.
Mas qual é o sentido de se matar, evolutivamente falando?
“Fácil”, diz Thomas Seeley, biólogo da Cornell University e autor de A Vida Das Abelhas. “Os operários alcançam o sucesso genético (evolutivo) não se reproduzindo, mas ajudando à reprodução de sua mãe, a rainha da colônia.”
“Uma forma de ajudar é defender a colônia”, explica.
"Alguns pesquisadores chamam isso de 'superorganismo'", diz a etimologista Alice Laciny, que trabalha com formigas-explosivas no Museu de História Natural de Viena. “Desta forma, uma colônia de formigas ou colmeia de abelhas é mais como um grande animal, sendo a rainha os órgãos reprodutivos. As operárias menores são numerosas e precisam apenas de pequenas quantidades de recursos para serem criadas. Então, de certa forma, elas são semelhantes às células do corpo.”
Tal como acontece com os bois-almiscarados, o que para nós pode ser um comportamento violento e autodestrutivo das formigas operárias parece valer a pena, desde que leve à reprodução.
“Neste sistema, proteger sua rainha e irmãs, se necessário até por auto sacrifício, é a maneira como uma formiga operária pode proteger e transmitir seus genes”, explica Laciny.
Veja como essas baratas lutam por amor:
O maior sacrifício materno
Outra forma de sacrifício no reino animal é o que as mães são capazes de fazer para salvar seus filhotes.
Após nascer, algumas espécies de anfíbios sem membros, conhecidas como cecílias, começam a se alimentar literalmente da camada mais externa da pele da mãe. E as aranhas sociais africanas vão ainda além, já que algumas fêmeas permitem que seus filhotes pratiquem matrifagia – isto é, matar e comer sua própria mãe.
Os polvos gigantes do Pacífico podem ser as mães mais sacrificadas. Incrivelmente as fêmeas podem vigiar seus ovos por até quatro anos – durante os quais nem comem.
“Inevitavelmente, as fêmeas esgotam todas as suas reservas corporais e morrem enquanto guardam os ovos”, diz Fisher.
“Você sente pena deles, mas é assim que muitas espécies obtêm o melhor sucesso de prole na seguinte geração.”