
O combate entre as cobras-rei: por dentro do “clube da luta” das serpentes mais mortais da Ásia
As cobras-rei (como esta Ophiophagus hannah no Vietnã) são conhecidas por lutarem por parceiros, mas a primeira análise científica de seu comportamento sugere que as lutas envolvem surpreendentemente pouco canibalismo ou veneno.
Os movimentos entrelaçados de duas cobras-rei macho (Ophiophagus hannah) se contorcendo uma ao redor da outra são tão hipnóticos que, se você não soubesse, poderia pensar que se trata de um ritual íntimo de acasalamento — e, de certa forma, é.
Os machos – que podem chegar a ter 3,6 metros de comprimento – se enrolam um no outro por até meia hora em uma luta altamente ritualizada para empurrar o rosto do oponente para a terra com um baque incontestável.
Presumivelmente, as cobras lutam pelo acesso às fêmeas. O mais surpreendente não é tanto o fato de elas lutarem, mas que essas conhecidas predadoras de outras serpentes e canibais ocasionais, carregadas de veneno tóxico, não escolham o caminho mais violento para a vitória. Em vez disso, essas serpentes se envolvem em uma disputa altamente ritualizada, cujas regras são implicitamente compreendidas pelos combatentes.
“As cobras-rei são venenosas — elas poderiam facilmente morder umas às outras e se matar se quisessem”, diz Max Jones, pesquisador científico em conservação da vida selvagem na Viginia Tech, como é conhecido o Instituto Politécnico e Universidade Estadual da Virgínia, nos Estados Unidos.
Vídeos de combates rituais entre essa espécie de cobras machos às vezes aparecem no YouTube ou em outras redes sociais. Mas pesquisadores apenas mencionavam esse comportamento de passagem até que Jones e seus colegas descreveram os detalhes de três desses combates entre cobras-rei do norte na Tailândia recentemente na revista científica “Ecology and Evolution”.
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Este caçador de cobras usa uma vara para capturar cobras-rei para vender em Hanói, no Vietnã.
Rastreando as cobras-rei na natureza: onde elas vivem?
As cobras-rei passaram por uma espécie de reavaliação — o que antes se pensava ser uma única espécie foi recentemente dividido em quatro espécies distintas. Como resultado, os pesquisadores estão tentando determinar quaisquer diferenças na ecologia e no comportamento destas várias espécies.
Como estudante da Universidade de Tecnologia de Suranaree, na Tailândia, Jones começou a estudar o que desde então foi classificado como a cobra-real-do-norte (Ophiophagus hannah) enquanto trabalhava em um projeto na Reserva da Biosfera de Sakaerat, no norte da Tailândia, em 2016.
O projeto monitorava as cobras por meio de dispositivos de rastreamento por radiotelemetria inseridos cirurgicamente para aprender mais sobre sua história natural. Em 2019, Jones testemunhou um combate ritual enquanto fazia trabalho de campo na reserva. “Foi um evento espetacular”, diz ele.
Mais tarde naquele mesmo ano, Jones adquiriu imagens de vídeo de outra luta filmadas em um acampamento no Parque Nacional Kaeng Krachan, a sudoeste de Bangcoc, capital da Tailândia. E, em um terceiro caso, a equipe encontrou evidências de uma luta ao seguir a trajetória dos dados do dispositivo de rastreamento das cobras; um macho havia deslocado outro na reserva Sakaerat, e conversas subsequentes com um agricultor sugeriram que provavelmente havia ocorrido uma luta entre cobras.
“É difícil observar [o comportamento de combate] na natureza”, afirma Alexandre Missassi, zoólogo do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, estado do Norte do Brasil, que estudou o combate ritual entre cobras machos, mas não participou do estudo recente de Jones. Missassi elogiou as novas observações como uma grande contribuição ao nosso conhecimento sobre a história natural das cobras.
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As regras do combate ritual de uma das cobras mais venenosas do planeta
Embora Jones e seus colegas tenham documentado apenas um pequeno número de lutas, seu trabalho sugere alguns princípios básicos do combate ritual das cobras. Todas as três lutas ocorreram durante a época de reprodução, o que é consistente com o combate ritual estar ligado ao acasalamento. Embora nenhuma fêmea tenha sido vista, os pesquisadores suspeitam que elas estivessem por perto.
Os combates pareciam algo como uma “luta livre”, com cada macho tentando colocar o queixo na nuca do oponente e forçá-lo a cair de cara no chão. Isso acontecia repetidamente, aparentemente indo e voltando sem um vencedor claro, até que uma das cobras — geralmente a menor — se afasta.
Nos três episódios, nenhuma das cobras mordeu o oponente.
Nas duas observações diretas, as cobras nem sequer abriram seus capuzes (como é conhecida popularmente a parte que se expande e fica na região da cabeça e do “pescoço” da serpente). Jones diz que isso provavelmente ocorre porque tal exibição é desnecessária — os capuzes geralmente são uma forma de assustar criaturas que não estão cientes do veneno perigoso que elas carregam.
Mas no caso destas serpentes, uma reconhece a outra. “Nessas situações, elas não ganham nada em [abrir seu capuz]: não vão enganar uma à outra, não vão assustar a outra”, diz ele.
“Os combates pareciam algo como uma 'luta livre', com cada macho tentando colocar o queixo na nuca do oponente e forçá-lo a cair de cara no chão.”
Para as cobras-rei em disputa, o tamanho importa
Em todos esses casos, as cobras eram grandes — a menor tinha 3,5 metros de comprimento, enquanto a maior tinha mais de 4 metros. As cobras enrolaram seus longos corpos uma na outra e mantiveram as cabeças erguidas acima do solo. “Para quem olha de fora, fica parecendo uma massa única de cobras”, diz Jones.
O respeito pelo tamanho do oponente pode ser o que as impede de morder. As cobras — assim como outras da família elapidae, como as cobras-coral — são conhecidas por comerem outras serpentes, atacando espécies menores. Elas também são propensas ao canibalismo — os machos chegam a comer fêmeas menores fora da época de acasalamento.
Como resultado, quando não se trata de uma luta ritual por direitos de acasalamento, o combate tem riscos maiores quando a diferença de peso é grande, diz Vinícius Mendes, especialista em cobras do instituto TaxaMundi, no Brasil, que estudou lutas entre cobras-coral, mas não participou do estudo sobre cobras. Se houvesse uma diferença maior de tamanho, veríamos mais mordidas, diz ele.
Mas essas lutas rituais podem ter terminado sem derramamento de sangue porque as cobras eram bastante equilibradas — outra cobra macho grande seria demais para engolir, literalmente.
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Conservando o habitat da cobra-rei
Em um dos três casos relatados pela equipe de Jones, a luta durou pelo menos meia hora. O vencedor provavelmente ganhou o direito de tentar acasalar com uma fêmea próxima, escondida da vista dos pesquisadores. Mas ela talvez não esperasse muito dele imediatamente — a cobra provavelmente estava exausta após a luta maratona.
“Este é um evento extremamente intenso e, imagino, extremamente cansativo para duas cobras grandes terem que suportar”, diz Jones.
Jones diz que a luta destaca a importância de conservar o habitat de acasalamento das cobras, que podem ficar mais vulneráveis aos humanos enquanto se recuperam de disputas épicas pela atenção de uma fêmea próxima.
As pessoas costumam ter medo das cobras-rei, embora elas raramente mordam e normalmente tentem ameaçar primeiro. Mas as lutas em áreas abertas as tornam vulneráveis aos humanos, que podem aproveitar sua distração ritualística como uma oportunidade para se aproximar e cortar suas cabeças com um facão, diz Jones.
Aprender mais sobre os tipos de habitats que as cobras usam nessas lutas e para a reprodução em geral pode ajudar na conservação, observa Mendes. Com mais terras protegidas, as cobras que perdem as lutas podem estar mais propensas a explorar e, se a sorte e a força estiverem a seu favor, encontrar outra fêmea para acasalar.
