Dente de hominídeo misterioso adiciona novo capítulo à história humana

Descoberto milhares de quilômetros ao sul dos únicos outros fósseis denisovanos conhecidos, o molar fornece novas evidências da enigmática disseminação dos humanos pela Ásia antiga.

Por Maya Wei-Haas, Michael Greshko
Publicado 6 de jun. de 2022, 11:47 BRT, Atualizado 6 de jun. de 2022, 13:11 BRT

O dente foi recém-descoberto no Laos, na Caverna da Cobra — uma cavidade estreita, embutida em uma ribanceira. Os cientistas acessam a caverna usando um sistema de cordas.

Foto de Fabrice Demeter

Depois de escalar um declive rochoso íngreme nas Montanhas Annamite, no Laos, Laura Shackelford ficou inicialmente desapontada. A paleoantropóloga da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, nos Estados Unidos, estava em uma cavidade apertada conhecida como Caverna da Cobra procurando por ossos que um menino da etnia hmong havia mencionado ter visto. Ela ligou sua lanterna e apontou o feixe de luz de uma parede para outra.

Depois olhou para cima.

“Eu não via nada além de ossos”, diz Shackelford, que também é uma Exploradora da National Geographic. Embutidos no teto, espalhados “quase como estrelas”, estavam fósseis de animais há muito tempo desaparecidos.

Durante anos, Shackelford e sua equipe trabalharam nos labirintos do sistema de cavernas do Laos em busca de restos humanos antigos, e ela sabia que essa passagem estreita era especial. Pouco antes de sua primeira viagem à caverna, uma colega de Shackelford havia encontrado no teto do local um molar com mais de 130 mil anos de idade.

Como Shackelford e seus colegas relatam em um novo estudo, parcialmente financiado pela National Geographic Society, o dente encontrado provavelmente é de uma jovem que fazia parte de um misterioso grupo de humanos antigos, conhecidos como denisovanos. Este pode ser o fóssil mais meridional encontrado até hoje deste grupo enigmático.

A forma geral e as estruturas internas do grande molar lembram os dentes denisovanos previamente identificados em uma mandíbula encontrada no planalto tibetano. Os fósseis dos  hominídeos de Denisova são raros, o que torna difícil identificar quaisquer ossos ou dentes recém-descobertos.

Foto de Fabrice Demeter and Clément Zanolli

Os hominídeos de Denisova se separaram de seu grupo irmão, os neandertais, cerca de 400 mil anos atrás, quando os neandertais se espalharam pela Europa e os denisovanos se mudaram para o leste na Ásia. Apesar de os cientistas descobrirem muitos restos de neandertais, os fósseis denisovanos provaram ser indescritíveis. 

Todos os ossos e dentes denisovanos previamente confirmados poderiam caber facilmente em um saco plástico do tamanho de um sanduíche, e todos eles vêm de apenas dois locais: um na Sibéria e outro no Tibete.

Mas os cientistas há muito suspeitam que os denisovanos vagavam muito mais ao sul. Sempre que os denisovanos cruzaram o caminho dos primeiros humanos, deixaram rastros genéticos na maioria dos povos modernos de ascendência asiática.

A última descoberta no Laos, publicada esta semana na Nature Communications, revela a trajetória incrivelmente variada dos denisovanos: das montanhas geladas e planaltos altos até as planícies úmidas do Sudeste Asiático. “Isso me faz pensar em como eles são semelhantes a nós”, diz Shackelford. “Somos incrivelmente flexíveis. Essa é uma marca registrada dos humanos modernos.”

O provável dente denisovano é um dos muitos novos achados que sugerem o quanto mais há para ser descoberto na região. “Devo dizer que estamos muito orgulhosos”, diz o coautor do estudo Souliphane Boualaphane, arqueólogo do Ministério da Informação, Cultura e Turismo do Laos.

Desenterrando um antigo zoológico

O dente é o último fóssil encontrado nas Montanhas Annamite, que se estendem por cerca de 1,1 mil km ao longo da fronteira entre o Laos e o Vietnã. Durante milênios, os rios esculpiram o calcário local – remanescentes de um antigo fundo do mar – em um sistema de cavernas.

Embora o local tenha se mostrado fértil para descobertas, o trabalho dos paleontólogos na região não é fácil. O clima quente e úmido da área faz com que os ossos se quebrem rapidamente, e o terreno acidentado também é um desafio. Apesar disso, descobertas recentes no Laos documentaram dezenas de milhares de anos de atividade humana na região, incluindo alguns dos mais antigos restos humanos modernos do Sudeste Asiático.

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    Grande parte do interesse da pesquisa moderna no Laos remonta a Thongsa Sayavongkhamdy, um influente arqueólogo laosiano que meticulosamente mapeou locais que haviam sido estudados e abandonados na década de 1930, incluindo a área onde é localizada a Caverna da Cobra. Sayavongkhamdy, coautor do novo estudo, morreu em abril – o trabalho é dedicado à sua memória. “É realmente graças a ele que nossa equipe conseguiu trabalhar no Laos”, diz Fabrice Demeter, co-autor principal do estudo e paleoantropólogo do Centro de Geogenética da Fundação Lundbeck, em Copenhague, Dinamarca.

    Demeter e Shackelford passaram mais de uma década trabalhando no Laos, e recentemente se uniram a espeleólogos para navegar por íngremes ribanceiras. Em 2018, eles descobriram a Caverna da Cobra, cuja entrada fica no topo de uma rocha a mais de 33 metros acima da planície. A caverna é tão apertada que uma pessoa de estatura média pode tocar as paredes e o teto dela simultaneamente.

    Recuperar os fósseis da caverna também é complicado, pois eles estão embutidos em brecha, um tipo de rocha semelhante a um bolo de frutas, que se forma a partir de fragmentos pedregosos. Recortar “é como tentar escavar em concreto”, diz Shackelford.

    No entanto, a Caverna da Cobra produziu descobertas incríveis desde que foi mapeada. Em 3 de dezembro de 2018, o geólogo e espeleólogo Eric Suzzoni dirigiu-se ao vale em uma viagem de reconhecimento, antes da primeira visita de Shackelford ao interior da caverna, e coletou pedaços de rocha e osso para mostrar à equipe. Ele desceu à cavidade pouco antes do almoço. “Em algum momento, Eric disse: Ah, mas eu tenho algo aqui”. Suzzoni havia encontrado um molar incomum.

    “Quase imediatamente sabíamos que era algum tipo de hominídeo”, diz Shackelford. “Mas não era humano moderno."

    Uma caixa-preta da vida

    Por quase uma década, os únicos restos conhecidos dos denisovanos eram alguns dentes, um osso pequeno e um fragmento de crânio descoberto na caverna de Denisova, no sul da Sibéria. Então, em 2019, um anúncio de grande sucesso revelou uma mandíbula denisovana – conhecida como mandíbula Xiahe – na caverna Baishiya, no planalto tibetano.

    O recém-descoberto molar do Laos pode ser apenas um dente, mas ajuda muito os cientistas a compreender os denisovanos. “Os dentes são como uma pequena caixa-preta da vida do indivíduo”, diz Clément Zanolli, coautor do estudo e paleoantropólogo da Universidade de Bordeaux, na França. Em sua forma, estrutura interna, química e padrões de desgaste, os dentes podem preservar indícios da idade de um animal, dieta e até mesmo o clima de seu habitat.

    As formas dos dentes também podem ajudar os cientistas a identificar espécies entre os humanos e seus primos extintos. A superfície de mastigação do molar da Caverna da Cobra é muito mais enrugada do que a dos molares humanos modernos, e tem uma crista que é comum entre os dentes dos neandertais. Mas a forma geral e a estrutura interna do dente se assemelham aos dentes denisovanos na mandíbula de Xiahe.

    A falta de raízes ou desgaste da superfície do dente sugere que ele pertencia a uma criança que morreu antes que a dentição definitiva estivesse completamente formada, provavelmente entre três e oito anos de idade. O molar provavelmente entrou na caverna com restos de outros grandes animais, incluindo antigos rinocerontes, porcos, macacos e vacas. Com base na idade desses restos animais, o molar provavelmente tem entre 131 mil e 164 mil anos.

    Após exames de raios-x do fóssil para estudar sua forma, os pesquisadores coletaram amostras do esmalte do dente em busca de proteínas preservadas. Ao contrário dos delicados filamentos de DNA, as proteínas têm maior chance de sobreviver ao clima quente e úmido do Laos. Os blocos de construção de aminoácidos dessas proteínas podem, então, dar dicas para o código genético subjacente, ajudando os cientistas a desvendar a identidade de uma espécie.

    Esta análise revelou que o dente pertencia a um indivíduo do gênero Homo, em vez de um orangotango ou outro grande macaco. As proteínas também mostram que o dente pertencia a uma menina. No entanto, os pesquisadores não encontraram as proteínas necessárias para colocar o dente dentro de um ramo específico da árvore genealógica dos hominídeos.

    Embora a análise não possa confirmar a identidade denisovana, “não há nada que nos impeça de procurar outras proteínas presentes no esmalte”, diz o coautor do estudo Frido Welker, paleogeneticista do Instituto Globe, da Universidade de Copenhague. À medida que os métodos de extração e análise de DNA e proteínas associadas melhoram, Welker e seus colegas esperam que o dente forneça mais detalhes.

    Apesar da pequena quantidade de dados que eles coletaram do dente, a equipe do estudo deixou a porta aberta para pesquisas futuras que ainda não foram imaginadas. “As pessoas que estiverem trabalhando neste campo em 30, 40, 50 anos, com tecnologias totalmente novas, vão apreciar isso”, diz a exploradora da National Geographic Kendra Sirak , pesquisadora associada da Escola de Medicina de Harvard, nos EUA, e especialista em DNA antigo, que não esteve envolvida com o novo estudo.

    A próxima montanha

    Por enquanto, os laços denisovanos mais fortes encontrados no dente vêm de sua localização e semelhança com o molar da mandíbula Xiahe. Embora o molar do Laos seja um pouco parecido ao dos neandertais, essa espécie nunca foi encontrada no leste do Laos, e os dados genéticos mostram que os denisovanos provavelmente visitaram o sudeste da Ásia.

    “Tudo se encaixa com o que esperaríamos de um molar inferior denisovano”, diz Bence Viola, paleoantropólogo da Universidade de Toronto, no Canadá, que não esteve envolvido no estudo.

    Juntar as peças da anatomia dos misteriosos hominídeos tem sido um desafio persistente porque, pelo menos por enquanto, os fósseis denisovanos são muito escassos. O fato de o dente recém-descoberto ser um molar inferior torna a confirmação ainda mais difícil, pois apenas a mandíbula de Xiahe contém molares inferiores firmemente identificados como denisovanos. Sem o apoio do DNA ou proteínas adicionais, “é muito difícil dizer algo conclusivo”, diz Aida Gomez-Robles, paleoantropóloga da University College London, que não fez parte da equipe do estudo.

    No entanto, muitos mais denisovanos podem estar escondidos debaixo do nariz dos cientistas – ou nos tetos das cavernas acima de suas cabeças. Uma variedade de fósseis de hominídeos foi encontrada em toda a Ásia, muitos dos quais foram atribuídos a um vago grupo abrangente conhecido como “Homo arcaico”. Nos últimos anos, estudos sugeriram que alguns desses hominídeos poderiam ser denisovanos, ou pelo menos parentes próximos.

    “Provavelmente, há muito tempo, estamos vendo denisovanos em museus e em instituições de fósseis, mas não sabemos como chamá-los”, diz Shackelford.

    Os pesquisadores também têm mais estudos planejados. De acordo com Zanolli, a equipe está analisando a química do oxigênio e do carbono do esmalte do dente. Tais estudos poderiam sugerir o clima em que a garota denisovana vivia, bem como o que ela estava comendo enquanto o molar se formava.

    Para Shackelford, uma das implicações mais empolgantes do estudo é o grande número de descobertas que estão à espreita entre os picos crivados de cavernas do Laos. “Trabalhamos lá há mais de dez anos, e ainda não conseguimos sair da primeira montanha”, diz.

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