Ditadura militar quase dizimou os waimiri atroari – e índígenas temem novo massacre

De 1974 a 1983, grandes obras na Amazônia serviram de pretexto para genocídio cometido pelo regime, por meio de bombardeios, chacinas e destruição de locais sagrados. Aldeia vive, ainda hoje, sob nova ameaça do governo.

Por Kevin Damasio
Publicado 1 de abr. de 2019, 12:57 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Em 1972, a população de waimiris atroaris era de 3 mil pessoas, de acordo com a ...
Em 1972, a população de waimiris atroaris era de 3 mil pessoas, de acordo com a Funai. Ao término das obras do Plano de Integração Nacional imposto pelo regime militar, em 1983, restavam 350 sobreviventes. Na foto, a aldeia recebe comitiva do programa Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) e da Vara da Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR) em fevereiro de 2018.
Foto de Raphael Alves, TJAM

Na segunda metade de 1974, o povo kinja se reunia na aldeia Kramna Mudî para uma celebração típica dos índios waimiri atroari, na margem do rio Alalaú. “Já tinham chegado os visitantes de Camanaú e do Baixo Alalaú. O pessoal das aldeias do Norte ainda estava a caminho. A festa já estava começando com muita gente reunida”, escreve o indigenista Egydio Schwade, um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário, a partir dos relatos de seus alunos no curso de alfabetização na aldeia. “Pelo meio-dia, um ronco de avião ou de helicóptero se aproximou. O pessoal saiu da maloca para ver. A criançada estava toda no pátio para ver. O avião derramou como que um pó. Todos menos um foram atingidos e morreram.” Quando os aldeados do Norte chegaram à aldeia, depararam-se com ao menos 33 mortos.

Esse massacre também foi contado, no idioma karib, pelo sobrevivente durante uma audiência judicial do Ministério Público Federal (MPF) realizada na terra indígena (TI), em 28 de fevereiro deste ano. Na época, esse kinja – como se autodenominam os waimiri atroari –, ainda era adolescente e lembra de ouvir apenas o barulho da aeronave. De repente, os índios atingidos pelo veneno começaram a sentir bastante calor pelo corpo. Ficaram paralisados, impossibilitados de andar, “muito doentes”. Enquanto os parentes vinham a óbito, homens brancos invadiram a aldeia por terra, munidos de facas e revólveres.

Bombardeios em ataques aéreos, chacinas a tiros, esfaqueamentos, decapitações e destruição de locais sagrados eram outras formas de massacre por parte dos militares naquela reserva a partir de 1974. Tudo isso em nome do Plano de Integração Nacional (PIN) decretado pelo general Emílio Garrastazu Médici, que previa uma ocupação de 2 milhões de km2 na Amazônia. O genocídio dos waimiri atroari pela ditadura militar estendeu-se entre os anos 1960 e 1980, durante três grandes projetos dentro desta terra indígena (TI): a abertura da BR-174, a Manaus-Boa Vista; a construção da hidrelétrica de Balbina; e a atuação de mineradoras e garimpeiros interessados em explorar as jazidas em seu território.

“Acredito que o caso dos waimiri atroari é o mais emblemático por ser o mais documentado e pelas diversas formas de violência”, conta o indigenista Tiago Maiká Schwade. Ele é colaborador do relatório O genocídio do povo waimiri atroari, do Comitê Estadual da Verdade do Amazonas, que o pai dele, Egydio, coordenou. “Um poderio bélico militar foi usado contra um grupo de indígenas praticamente indefesos, além de casos de negligência em relação ao contato. Os depoimentos comprovam que foram utilizadas armas químicas ou biológicas para pôr em prática uma política de extermínio para desocupação do território, pelo interesse mineral. Presidente Figueiredo, hoje, é o município com a maior arrecadação de todo o estado do Amazonas, por conta da instalação de uma mineradora que aconteceu em meio a esse processo genocida.”

Para acelerar o licenciamento ambiental da obra, o presidente Jair Bolsonaro decretou o Linhão de Tucuruí como uma questão de "segurança nacional". Traumatizados com o genocídio promovido pela ditadura militar, os indígenas temem novo massacre. Na foto, a aldeia recebe comitiva do programa Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) e da Vara da Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR) em fevereiro de 2018.
Foto de Raphael Alves, TJAM

Os números do genocídio

A Comissão Nacional da Verdade estima que ao menos 8.350 índios foram assassinados entre 1946 e 1988. As investigações apontam dois períodos distintos em se tratando de violações aos povos indígenas. Antes de dezembro de 1968, os massacres se davam mais pela omissão do Estado. Após o Ato Institucional 5 (AI-5), com a criação da Fundação Nacional do Índio (Funai), o maior responsável pelos homicídios foi o regime militar, que durou de 1º de abril de 1964 a 15 de março de 1985.

Os waimiri atroari representam ao menos 2.650, atrás apenas dos Cinta-Larga (3.500 mortes). De acordo com a Funai, a população dos waimiri atroari era de 3 mil pessoas em 1972. Em 1983, apenas 350 sobreviveram aos massacres. Em 1987, a população subiu para 420. Hoje, há aproximadamente 2 mil pessoas. O MPF, contudo, ressalta em um relatório da ação civil pública que o número de vítimas pode ser ainda maior, “considerando que as diferentes contagens do povo Kinja na ditadura atendiam determinados interesses governamentais pouco preocupados com a revelação da verdade.”

Em 1917, os Waimiri Atroari conseguiram a concessão do território situado na divisa entre os estados do Amazonas e de Roraima. Permaneceram com pouco contato de não índios até a instalação dos Postos Indígenas de Atração (PIA) próximos aos rios Camanaú (1969), Alalaú (1970) e Santo Antônio do Abanari (1972). Os PIA eram parte de um plano de ação entre a Funai, o Departamento Nacional de Estradas e Rodagem, o Instituto de Terras, o Ministério da Aeronáutica e o Grupamento Especial de Fronteiras do Exército. O objetivo principal, conforme o relatório da Comissão Nacional da Verdade, era acelerar o “processo de integração [dos Waimiri Atroari] na sociedade nacional, assim como realizar trabalhos de apoio aos serviços da estrada BR-174”.

Líder da equipe de atração na época da construção da BR-174, o sertanista Gilberto Figueiredo descreveu os índios como “muito desconfiados, sendo temerário qualquer passo em falso” e “em estágio dos mais primitivos”. As lideranças das aldeias do Norte e do Sul demonstravam resistência às obras e eram tratadas pelo Exército como entraves para o desenvolvimento do país.

“Há uma coisa que é certa: a decisão do governo, que é irreversível, de continuar a estrada.”

por General Ismarth de Araújo Oliveira
Presidente da Funai em 1975

O general de brigada, Gentil Paes, assinou o seguinte ofício em 1974: “Esse Comando, caso haja visitas dos índios, realiza pequenas demonstrações de força, mostrando aos mesmos os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso de dinamite”.

Já o coronel Arruda, comandante do 6º Batalhão de Engenharia e Construção, disse em 1975 que “a estrada é irreversível como é a integração da Amazônia ao país. A estrada é importante e tem que ser construída, custe o que custar. Não vamos mudar o seu traçado, que seria oneroso para o Batalhão apenas para pacificarmos primeiro os índios. […] Não vamos parar os trabalhos apenas para que a Funai complete a atração dos índios”.

A Funai foi criada para substituir o Serviço de Proteção ao Índio (denunciado por vários casos de omissão no Relatório Figueiredo, em 1967) e estava vinculada ao Ministério do Interior, responsável, por exemplo, pela abertura de estradas. O órgão indigenista possuía um discurso desenvolvimentista – diferentemente do que é hoje em dia. “Os Waimiri Atroari têm constituído problemas emocionais, não só no âmbito do nosso país como também no âmbito internacional”, disse o então presidente do órgão, o general Ismarth de Araújo Oliveira, durante a 81ª sessão do Conselho Indigenista da Funai (CIF), em 1975. “Há uma coisa que é certa: a decisão do governo, que é irreversível, de continuar a estrada.”

Raimundo Pereira da Silva era mateiro da Funai, trabalhou na abertura da BR-174 e presenciou a truculência do Batalhão de Infantaria da Selva (BIS). Ele relatou seu espanto aos pesquisadores do Comitê Estadual da Verdade do Amazonas, Egydio e Maiká Schwade: “Eu fiquei impressionado porque, antes do Exército entrar, a gente via muito, muito índio. […] Depois que o BIS entrou, nós não vimos mais índios […]. Antes cansou de chegar 300, 400 índios no barraco da gente”.

Os waimiri atroari representam ao menos 2.650 dentre os 8.350 indígenas assassinados pelo estado entre 1946 e 1988, segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade. Na foto, o líder atroari Mário Parwé fala a comitiva do programa Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) e da Vara da Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR) em fevereiro de 2018.
Foto de Raphael Alves, TJAM

Em 1980, o Brasil foi denunciado no IV Tribunal Russell em Roterdã, Holanda, pelo genocídio dos waimiri atroari e de outras aldeias indígenas. A corte internacional concluiu que é evidente a “responsabilidade exclusiva do governo, que instalou um programa global, conscientemente genocida e etnocida na vida daqueles povos”.

A BR-174 foi concluída em 1979, mas as violações continuaram. Em 1981, o general João Figueiredo desapropriou, em decreto, 30 mil hectares da parte leste do território. A região foi inundada para a instalação da Usina Hidrelétrica de Balbina. “O desmembramento da terra indígena waimiri atroari visava também ceder vastas porções do território a companhias mineradores que, desde a década de 1970, pediram autorização para prospecção mineral na área”, conclui o volume II do relatório da Comissão Nacional da Verdade, assinado pela psicanalista Maria Rita Kehl. “Com o decreto de Figueiredo, as mineradoras Timbó/Paranapanema e Taboca puderam se estabelecer numa área de 526.800 hectares dentro da reserva.”

As margens da BR-174 foram invadidas por posseiros e fazendeiros. Segundo a Funai, o governo do Amazonas deu aval a 338 títulos de propriedade dentro da TI, até 1981. Segundo o relatório da CNV, o governo militar ainda financiou atividades agropecuárias por meio dos programas Polo Amazônia e Proálcool.

Em 9 de julho de 1982, a Funai assinou um contrato com a Paranapanema que permitiu a construção de uma estrada de 39 km de extensão, para ligar a Mina do Pitinga ao km 250 da BR-174. As obras contavam com a segurança de paramilitares do Sacopã – “400 homens equipados com cartucheiras 20 milímetros, rifle 38, revólveres de variado calibre e cães amestrados”, relata a CNV.

“O Linhão de Tucuruí foi considerado pelo Conselho de Defesa Nacional uma obra que está dentro do escopo da soberania e da integridade nacional”

por General Otávio do Rêgo Barros, porta-voz da presidência, em 2019

Ação civil pública

“Depois que a estrada ficou pronta, a doença conhecida por sarampo quase matou toda a aldeia. Muitos kinjas morreram. Dawna foi o primeiro que adoeceu. Foi levado para Manaus para tratamento”, relataram os líderes Dawna e Wanaby ao Ministério Público Federal. “A construção da estrada trouxe sofrimento, doenças e perseguição. Há um local onde enterramos nossos mortos que morreram pela doença do homem branco. A morte de nosso povo surgia com frequência e reduziu o nosso povo.”

Dawna e Wanaby contam também que “a perseguição sempre ocorria à noite”, quando “escutávamos o barulho alto de espingarda ou bomba. Não sabíamos o que era. Sentíamos muito medo”.

O MPF no Amazonas instaurou um inquérito civil público em 2012. Os procuradores trabalharam cinco anos com coletas de documentos e realizaram oitivas com as testemunhas do genocídio contra os Waimiri Atraori. As lideranças indígenas concordaram em torná-la uma ação civil pública, movida em agosto de 2017.

O processo tem o objetivo de responsabilizar e cobrar do Estado brasileiro indenizações no valor de R$ 50 milhões pelos massacres que ocorreram durante a construção da BR-174. Além disso, o MPF cobra a reparação por meio de pedido oficial de desculpas e “inclusão do estudo das violações sofridas pelos indígenas nos conteúdos programáticos escolares”, assim como garantias de que não haja mais situações similares. Outras demandas são “a abertura dos arquivos militares e a reunião e sistematização, no Arquivo Nacional, de toda a documentação” relacionada ao genocídio dos kinjas.

A ação de 2017 também demandou a consulta prévia da comunidade indígena, em caso de medidas “legislativa ou administrativa com impacto sobre o território”, seguindo a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), “de forma livre e informada, com base em regras a serem definidas pelo próprio povo Kinja”.

“A tentativa de passar por cima dos direitos indígenas para implantar projetos de infraestrutura, como linhas de transmissão e estradas ou para assegurar a exploração de recursos minerais, gerou consequências muito graves, e a reparação nunca será plena”, disse, à época, o procurador da República Julio José Araújo Junior, coordenador do Grupo de Trabalho Povos Indígenas e Regime Militar. “Não repetir os mesmos erros, ainda mais em tempos democráticos, é o mínimo que se espera para que não ocorram novas violações.”

Linhão do Tucuruí

Roraima é o único estado que ainda não integra o Sistema Nacional de Energia Elétrica. Atualmente, a energia vem da vizinha Venezuela, cuja rede de energia tem apresentado seguidos apagões. O presidente Jair Bolsonaro, então, decidiu acelerar o licenciamento ambiental do Linhão do Tucuruí, ao decretar a obra como questão de “segurança nacional”. A extensão desta linha de transmissão de energia iria de Manaus (AM) a Boa Vista (RR), seguindo em paralelo à BR-174. A estrutura de 715 km já atravessa 120 km da TI Waimiri Atroari.

Em 27 de fevereiro, o porta-voz da presidência, general Otávio do Rêgo Barros disse: “O Linhão de Tucuruí foi considerado pelo Conselho de Defesa Nacional uma obra que está dentro do escopo da soberania e da integridade nacional. O que significa isso? Que o processo de construção será acelerado”.

No dia seguinte, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, garantiu que o governo manteria o diálogo com a população indígena, por meio da Funai, e que o processo de licenciamento “que vem se arrastando desde 2011” continuará com “um tratamento jurídico próprio” por ser uma questão de “interesse nacional”.

Em nota, o MPF contestou a decisão e recomendou que a Funai e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) “se abstenham de promover qualquer espécie de fracionamento no processo de licenciamento ambiental”. Para o MPF, o fracionamento desconsideraria “o trecho que incide sobre a terra indígena” e a “a ausência de consulta prévia ao povo waimiri atroari podem configurar ato de improbidade administrativa, sendo passíveis de ação judicial”.

o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, comunicou à Câmara dos Deputados, em 27 de março, que pretende concluir a fase de discussões e planejamentos até o próximo mês de julho, para iniciar as obras já no segundo semestre deste ano. Segundo o ministro, o governo tem seguido preceitos legais e mantido “contato permanente com dezenas de comunidades indígenas que precisam participar e precisam, sim, ser escutadas neste processo”.

Albuquerque ainda retomou o assunto de explorar recursos minerais de terras indígenas e faixas de fronteira. “As restrições aplicadas a estas áreas não têm favorecido o desenvolvimento. Ao contrário, se tornaram focos de conflitos e atividades ilegais”, ele disse. Em seguida, citou o artigo 231 da Constituição Federal: “O aproveitamento de recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.

Nos últimos três meses, o líder atroari Mário Parwé dialogou com técnicos do consórcio que fará a obra e disse que estão dispostos a autorizá-la se o processo for bem planejado. Entretanto, a postura apressada do governo tem gerado críticas. “Estão querendo repetir o conflito, passar o linhão na marra? A palavra na marra é o ponto de guerra, não é bom. Não queremos mais isso”, disse Parwé ao jornalista Rubens Valente, repórter da Folha de S.Paulo e autor do livro Os Fuzis e as Flechas.

Para Sarah Shenker, da Survival International – ONG criada a partir das denúncias do genocídio do regime militar contra a população indígena, nos anos 1960 –, as ações e os projetos do governo para enfraquecer os direitos indígenas, sobretudo territoriais, “são como uma declaração de guerra contra os povos do Brasil”. Shenker ressalta os atos de resistência de povos indígenas neste ano, que lideraram a maior manifestação mundial em janeiro e impediram que o Ministério da Saúde extinguisse o Sistema Especial de Saúde Indígena (Sesai).

“Isso mostrou que a pressão dos povos indígenas e da opinião pública pode trazer mudanças reais duradouras”, ela me diz. “Então, só há uma solução: demarcação e proteção das terras indígenas – algo que já está escrito claramente na Constituição e na Convenção da OIT, que o país ratificou em 2002. É dever do Brasil proteger as terras indígenas.”

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