Rosto de mulher de 7,5 mil anos revela os primeiros humanos de Gibraltar

Análise de um crânio do Neolítico define a aparência e a origem de um povo que viveu do outro lado do Mediterrâneo.

Por Manuel Jaén
Publicado 16 de jun. de 2020, 07:30 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Reconstrução do rosto de Calpeia, no Museu Nacional de Gibraltar.

Reconstrução do rosto de Calpeia, no Museu Nacional de Gibraltar.

Foto de Manuel Jaén

EM 1996, ARQUEÓLOGOS se aventuraram em uma caverna em Gibraltar, onde encontraram um sepultamento contendo ossos humanos. Entre os ossos, havia um crânio.

Os arqueólogos sabiam que o local de sepultamento era muito antigo. Foi descoberto sob camadas de sedimentos contendo ossos de peixes, aves e mamíferos e objetos de pedra esculpidos. O crânio foi danificado após o sepultamento, mas ainda assim foi incorporado à coleção do Museu Nacional de Gibraltar.

Crânio humano encontrado em uma caverna na Ponta da Europa, em Gibraltar, em 1996.

 

Foto de Manuel Jaén

A idade do crânio permaneceu desconhecida por muitos anos. Em 2019, os resultados de um estudo histórico revelaram, por meio de análise de DNA, que o crânio pertenceu a uma mulher que viveu há 7,5 mil anos, tornando-se o mais antigo resto mortal de uma mulher moderna encontrada em Gibraltar até hoje.

A análise também revelou que os ancestrais genéticos do crânio provinham do extremo leste da Península Ibérica. A presença de genes do outro lado do Mediterrâneo forneceu aos arqueólogos novos indícios sobre a circulação dos humanos antigos na época da expansão da agricultura pela Europa.

O farol da Ponta da Europa marca a ponta mais ao sul da península de Gibraltar. O crânio de Calpeia foi descoberto em uma caverna nas proximidades em 1996.

Foto de Jacek Sopotnick, AGE Fotostock

A equipe do Museu Nacional de Gibraltar fez uma reconstrução anatômica forense do rosto da mulher. Seus ossos quebrados foram digitalizados e programas de clonagem e reconstituição 3D recriaram as partes desaparecidas e danificadas, como o maxilar inferior. Combinando os dados das digitalizações com a análise genética, uma equipe do museu recriou o rosto impressionante e realista em seis meses. A modelo foi chamada de Calpeia pelos pesquisadores, inspirados pelo nome clássico original de Gibraltar, conhecido nos tempos antigos como Mons Calpe.

Rocha da humanidade

Localizado na ponta sul da Península Ibérica, é comum em Gibraltar a presença de restos mortais de hominídeos primitivos. Diversas descobertas emocionantes de Gibraltar esclareceram os primórdios da história humana. Gibraltar, território britânico desde o século 18, pode ser visto de Marrocos do outro lado do Estreito de Gibraltar, na porta de entrada do Mar Mediterrâneo.

Com pouco menos de 430 metros de altitude, o afloramento de calcário está repleto de uma extensa rede de cavernas que ofereceu abrigo aos humanos e a seus primos hominídeos durante dezenas de milhares de anos.

O sepultamento de Calpeia foi encontrado em uma caverna na Ponta da Europa, localizada no extremo sul da península. Nas proximidades fica o Complexo de Cavernas de Gorham, Patrimônio Mundial da UNESCO que abrigou a população neandertal de Gibraltar, local de especial interesse dos arqueólogos. Uma forma extinta de humanos, os neandertais viveram nessas cavernas há apenas 32 mil anos

História do crânio

Quando o crânio de Calpeia foi encontrado em 1996, era impossível obter muitas informações a respeito dele. O clima úmido de Gibraltar provoca uma rápida deterioração do DNA e as chances de extrair material genético aproveitável pareciam remotas na época. A análise de DNA estava em seus primórdios e os danos no crânio dificultaram seu estudo.

Em 2019, o estudo do DNA antigo havia feito grandes avanços. O periódico Science publicou a análise do genoma de 271 habitantes da Espanha, de Gibraltar e de Portugal, incluindo o crânio de 1996. Sob a coordenação da Escola de Medicina de Harvard, os pesquisadores conseguiram extrair amostras viáveis de DNA antigo.

Os resultados foram bastante reveladores aos pesquisadores: o crânio pertenceu a uma mulher que viveu por volta de 5,4 mil a.C.: milhares de anos após a extinção dos neandertais de Gibraltar. Ela era magra, de pele clara, com olhos e cabelos escuros. Ela também era intolerante à lactose (característica comum nesse período).

Datada de 7,5 mil anos atrás, Calpeia viveu no fim do Período Neolítico, uma época em que a agricultura e a criação agropecuária se espalhavam pela Península Ibérica, substituindo o antigo modelo de caçadores-coletores. Sua intolerância à lactose indica que a pecuária leiteira provavelmente não fazia parte de sua cultura.

A idade de Calpeia na ocasião de sua morte não pôde ser determinada com exatidão a partir do crânio. Suas suturas cranianas — as articulações fibrosas que ligam os ossos do crânio — sugerem que ela era adulta, com idade entre 25 e 40 anos.

Rumo ao Oeste

O que mais entusiasmou os pesquisadores foram as revelações do DNA sobre os ancestrais de Calpeia. Apenas 10% do genoma da Calpeia é descendente da população encontrada na Península Ibérica, ao passo que os 90% restantes têm origem em Anatólia, atual Turquia. Os agricultores da Anatólia durante o Período Neolítico tiveram um elevado percentual de alelos ligados a olhos escuros e pele clara. Por outro lado, os caçadores-coletores da Europa Central e Ocidental apresentam marcadores genéticos relativos a olhos claros e pele escura.

Vaso do Neolítico do tipo utilizado em Gibraltar na época de Calpeia.

Foto de Manuel Jaén

Os arqueólogos acreditam que a agricultura tenha se desenvolvido em várias regiões do mundo quase simultaneamente. Anatólia foi um dos centros globais da Revolução Neolítica. A partir de então, técnicas agropecuárias se disseminaram pouco a pouco para o oeste e por todo o mundo mediterrâneo e da Europa.

A alta proporção de componentes de Anatólia no DNA de Calpeia sugere que suas origens anatólias fossem recentes. É provável que Calpeia — ou seus pais ou ancestrais mais recentes — tenha viajado de Anatólia a Gibraltar pelo mar.

Se o povo de Calpeia tivesse viajado por terra, seu avanço ao oeste teria levado anos ou gerações. Seu DNA teria se misturado com populações locais ao longo do caminho, tornando o genoma resultante de Calpeia mais diversificado.

A análise dos genes de indivíduos da ilha mediterrânea da Sardenha também apresenta uma alta proporção de genes de Anatólia, reforçando a teoria de que os anatólios viajaram em direção ao oeste pelo Mediterrâneo.

As cavernas do Complexo de Cavernas de Gorham (Patrimônio Mundial da UNESCO) já foram povoadas pelos neandertais. Muitos milênios depois, aproximadamente em 5,4 mil a.C., o povo de Calpeia utilizaria cavernas próximas para seus sepultamentos.

Foto de Spl, AGE Fotostock

Ainda não foi determinado se os produtos agrícolas também eram transportados em viagens. Nenhuma evidência arqueológica indica atividade agrícola nesse período em Gibraltar. É provável que Calpeia e os membros de seu grupo caçassem e pescassem.

Ainda assim, arqueólogos descobriram resíduos de sementes de trigo datados da mesma época em que Calpeia viveu, a cerca de 200 quilômetros de distância. Ela viveu em Gibraltar em um momento de grandes mudanças nos costumes humanos, uma transformação que foi em parte introduzida e disseminada por ela — ou seus parentes de Anatólia.

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