O indescritível horror de Hiroshima: 75 anos depois do bombardeio atômico

É difícil compreender o holocausto nuclear que devastou esta agora vibrante cidade japonesa nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, em 6 de agosto de 1945.

Por Lesley M.M. Blume
fotos de Hiroki Kobayashi
Publicado 6 de ago. de 2020, 12:08 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT

 

Pequeno monumento no centro de Hiroshima revela como a área ficou após a bomba reduzir a cidade a pedaços de concreto e escombros. Mas o renascimento foi rápido. Um sinal: o serviço limitado de bonde foi restaurado em menos de um ano.

Foto de Hiroki Kobayashi

Os planos oficiais eram grandiosos, e com razão: 11,5 mil participantes se reuniriam no Parque Memorial da Paz de Hiroshima para uma cerimônia respeitosa em homenagem ao 75º aniversário do bombardeio atômico da cidade pelos Estados Unidos em 6 de agosto de 1945. Mas a pandemia mudou tudo.

Assim como na maioria das cidades ao redor do mundo, o vírus que causa a covid-19 modificou ou cancelou grande parte da vida cotidiana de Hiroshima: concertos, maratonas, exposições em museus. A cerimônia de aniversário ainda ocorrerá em 6 de agosto, embora com 10 mil participantes a menos. Apenas os sobreviventes do bombardeio — ou hibakusha — e suas famílias poderão comparecer. A plateia ocupará assentos posicionados a dois metros de distância uns dos outros no parque. Líderes mundiais, que agora não poderão participar, foram solicitados a enviar mensagens de vídeo.

Infelizmente, Hiroshima já está acostumada a tragédias repentinas e incompreensíveis. Mas quando visitei a cidade no fim de 2018, fiquei impressionada com a aparência e atmosfera tão comuns do local. Lembro-me de estar sentada na estreita e elegante Ponte Motoyasu, observando uma manhã agitada. Pessoas em roupas formais, carregando suas pastas nas mãos, cruzavam a ponte a pé ou de bicicleta em direção ao trabalho. Alunos uniformizados passavam em pequenos grupos. Nas proximidades, uma cafeteria às margens do rio, com uma bonita barraca de frutas e outra de sorvete na frente, se preparava para abrir.

O calor gerado pela bomba foi tão intenso - milhões de graus no ponto de detonação - que derreteu objetos de metal, incluindo esta estátua de Buda de um templo próximo ao marco zero.

Foto de Hiroki Kobayashi

Poderia ter sido uma cena de qualquer cidade. Mas Hiroshima, é claro, não é uma cidade qualquer. Cerca de 500 metros ao norte da Ponte Motoyasu, fica outra ponte, a Aioi. A estrutura era o alvo original da equipe de bombardeio do Enola Gay, que lançou uma bomba de urânio de quase 4,5 mil quilos que detonou perto do local onde eu agora observava a cidade.

Fui a Hiroshima para fazer pesquisas e conduzir entrevistas para meu livro sobre o repórter da Segunda Guerra Mundial John Hersey — o primeiro jornalista a revelar as verdadeiras consequências da bomba, especialmente seu impacto radioativo nas pessoas. Estava especialmente interessada em conhecer Koko Tanimoto Kondo, uma importante ativista que luta pela paz e uma das últimas protagonistas sobreviventes da famosa matéria de Hersey, “Hiroshima”, publicada na edição de 31 de agosto de 1946 da revista New Yorker e que mais tarde se tornou um livro.

Um dos poucos prédios que resistiram perto do marco zero, denominado Exposição Comercial da Província de Hiroshima, é um lembrete gritante da devastação que a cidade sofreu. Agora parte do Parque Memorial da Paz, é o local mais emblemático e sagrado da cidade, visitado por peregrinos do mundo todo.

Foto de Hiroki Kobayashi

Quando Hersey chegou a Hiroshima em 1946, oito meses após o bombardeio, encontrou uma cidade arrasada, um cenário pós-apocalíptico. Atualmente, a província de Hiroshima abriga quase três milhões de pessoas e é um importante destino turístico. Há um museu renomado que documenta o evento, além de diversos monumentos. Entre eles está a Cúpula Genbaku, uma das poucas estruturas no centro da cidade que permaneceu de pé após o bombardeio e é agora considerada Patrimônio Mundial da Unesco.

Os líderes de Hiroshima dizem que querem que a cidade seja vista pelo mundo de duas maneiras: como um conto que traz um ensinamento — um aviso sobre as atrocidades da guerra nuclear — e como uma fênix que ressurgiu após tanta destruição, um triunfo do espírito humano.

Quando conheci a Sra. Kondo, ela se mostrou solene e ousada ao mesmo tempo, com um humor perspicaz. Ela tinha 74 anos na época, mas eu mal conseguia acompanhá-la quando fomos caminhar pela cidade. A Sra. Kondo me contou que ela e sua mãe, Chisa Tanimoto — também sobrevivente da explosão e que viveu por muitos anos — costumavam brincar que a radiação da bomba havia as conservado de alguma forma.

As vítimas da bomba descansam em paz em um cemitério na colina de um terreno arborizado do templo Mitaki, do século 9. O nome deriva de três cachoeiras próximas, cuja água é oferecida na cerimônia anual do Memorial da Paz de Hiroshima.

Foto de Hiroki Kobayashi

Enquanto caminhávamos por uma avenida larga e arborizada naquela manhã ensolarada, tive dificuldade para compreender que aquele havia sido o local do primeiro ataque nuclear da história e que a Sra. Kondo era uma das poucas pessoas na Terra a ter testemunhado e sobrevivido ao evento.

Incêndios e turbilhões infernais

Quando os Estados Unidos lançaram a bomba em Hiroshima, — apelidada de “Little Boy” e rabiscada com mensagens obscenas dirigidas ao imperador japonês — dezenas de milhares de pessoas foram queimadas até a morte, enterradas vivas pelos escombros ou atingidas por escombros lançados no ar. As pessoas que estavam no ponto de detonação da bomba, ou hipocentro, foram incineradas e sua existência eliminada instantaneamente. O verdadeiro número de mortos — as estimativas variaram de 100 mil a 280 mil — nunca será conhecido.

“Basta cavar um pouco mais de meio metro e ainda é possível encontrar ossos”, contou-me Hidehiko Yuzaki, governador da província de Hiroshima. “Nós vivemos sobre esses esqueletos. E isso não ocorre apenas perto do epicentro, mas em toda a cidade.”

No momento do bombardeio, a Sra. Kondo — na época com pouco mais de oito meses de idade — estava nos braços de sua mãe na casa onde moravam perto do centro da cidade. A casa desabou em cima delas, mas sua mãe conseguiu libertá-las dos escombros e escapar antes que uma parede de chamas consumisse a área.

Shinichi Tetsutani, de 3 anos, estava andando neste triciclo quando a bomba foi lançada. Naquela noite, ele morreu em decorrência das queimaduras excruciantes, e ele e seu triciclo foram enterrados juntos. Décadas depois, quando o corpo de Shinichi foi levado para o túmulo da família, seu pai, Nobuo Tetsutani, doou o brinquedo precioso para o Memorial da Paz de Hiroshima.

Foto de Hiroki Kobayashi, National Geographic

Naquele dia e naquela noite, enquanto incêndios e turbilhões infernais assolavam uma cidade já em ruínas, e os sobreviventes da explosão tentavam encontrar abrigo nos poucos parques ainda restantes da cidade, o governo japonês em Tóquio tentava entender o que havia acontecido. A cidade havia sido atacada por uma força descomunal lançada por bombardeiros B-29? Um novo tipo de arma havia sido utilizado? Como explicar uma destruição dessa magnitude?

Um professor chamado Yoshio Nishina, principal físico nuclear do Japão e líder dos esforços nucleares do país, foi enviado a Hiroshima. Em 8 de agosto, ele reportou ao governo japonês o que tinha encontrado. Ele contou que a cidade havia sido “completamente destruída”. Disse que não tinha palavras para descrever o que havia visto.

“Lamento muito informar isso”, escreveu ele. “A tal da nova bomba é, na verdade, uma bomba atômica.”

A bomba explodiu um pouco a noroeste do centro da cidade. Um relatório japonês estimou que cerca de 66,5 mil edifícios haviam sido destruídos ou danificados. Um relatório posterior dos Estados Unidos comentou que Hiroshima havia sido “devastada de maneira uniforme e extensiva” e observou que uma “tempestade de fogo” produzida pela bomba havia contribuído para a destruição.

Algumas semanas depois, correspondentes estrangeiros começaram a tentar entrar em Hiroshima. O primeiro, Leslie Nakashima — que antes da guerra já possuía cidadania norte-americana e japonesa e havia sido impedido de sair do Japão durante o conflito — confirmou, em um trabalho para a United Press, que a cidade de 300 mil habitantes havia sido aniquilada. “Fiquei pasmo com a destruição diante de mim”, escreveu ele. No centro da cidade, perto de onde a bomba havia explodido, apenas os esqueletos de três edifícios de concreto ainda estavam de pé. Ele contou que as pessoas diziam que Hiroshima poderia permanecer inabitável por 75 anos.

No entanto, dentro de 24 horas, os sobreviventes já estavam retornando à cidade para procurar parentes e amigos nos escombros e tentar achar as ruínas de suas casas. A família da Sra. Kondo estava entre aqueles que retornariam e reconstruiriam suas vidas sobre as cinzas.

Jiro Mitsuda, 12 anos, estava a caminho da escola naquela manhã de agosto. Com a pele queimada pendurada de seu corpo e vestindo apenas essas calças, ele chegou em casa e encontrou sua mãe desmaiada na entrada, coberta de sangue. Ele implorou a um vizinho: "Eu não ligo para o que acontece comigo. Apenas, por favor, ajude minha mãe!" De alguma forma, ele apagou um incêndio no segundo andar da casa deles. Sua mãe foi salva, mas Jiro morreu em 11 de agosto.

Foto de Hiroki Kobayashi

As consequências

Em seguida, dezenas de milhares de tropas de ocupação chegaram a Hiroshima e também a Nagasaki, cidade destruída por uma segunda bomba atômica três dias após Hiroshima. Embora as cidades arrasadas tenham praticamente se transformado em cemitérios, alguns dos “ocupantes”, como eles mesmos se denominavam, não foram respeitosos.

Em Nagasaki, os fuzileiros navais dos Estados Unidos removeram os destroços causados pela bomba para jogar futebol americano, que eles chamaram de Atom Bowl (jogo atômico). No ano seguinte, vários soldados foram ao marco zero de Hiroshima para tirar fotos e colher “recordações da bomba”. Era uma “área preciosa” com curiosidades enterradas e relíquias de família, recorda um médico norte-americano visitante, que pegou algumas xícaras de porcelana quebradas para usar como cinzeiro. Mas o medo de uma possível radiação residual manteve ocupantes mais cautelosos longe do hipocentro.

Quando Hersey chegou a Hiroshima em maio de 1946, os sobreviventes que haviam retornado para a cidade viviam em condições precárias e estavam passando fome. A vegetação estava crescendo em meio aos escombros — incluindo espécies de grama e matricária.

Quando a matéria de Hersey foi publicada na revista New Yorker, houve uma comoção internacional. Um de seus editores pediu que ele considerasse retornar à cidade para realizar mais matérias, mas Hersey somente retornou 40 anos depois. Quando ele finalmente visitou Hiroshima em 1985, descobriu que “uma linda fênix havia ressurgido do deserto repleto de ruínas de 1945”. A população da cidade havia aumentado para mais de um milhão e árvores retificavam avenidas novas e amplas. Ele viu centenas de livrarias e milhares de bares.

Outra protagonista de Hersey, Toshiko Sasaki — jovem que trabalhava na East Asia Tin Works no momento do bombardeio e já falecida — também ficou surpresa com a rápida reconstrução. “Eu não diria que a cidade está sendo reconstruída”, ela comentou uma vez, “pois é uma cidade completamente nova”.

Crianças em idade escolar passam por um imponente eucalipto que sobreviveu ao bombardeio atômico — uma das 170 hibakujumoku (árvores sobreviventes) que restaram em Hiroshima. Sementes e mudas das árvores são compartilhadas em todo o mundo para espalhar a mensagem de paz da cidade.

Foto de Hiroki Kobayashi

Marco Zero

Quando entrevistei a Sra. Kondo no saguão de um hotel moderno na Peace Boulevard, ela me contou sobre 6 de agosto de 1945. Embora ela fosse pequenina demais para se recordar dos acontecimentos, sua mãe havia lhe contado sobre aquele dia — mas apenas quando Kondo já estava bem mais velha.

“Eu nem conseguia perguntar aos meus pais como sobrevivi”, ela me contou. “Sabia que se eu perguntasse, eles teriam que lembrar do pior dia de suas vidas. Quando eu tinha 40 anos, ela me contou o que aconteceu. A casa inteira caiu em cima da minha mãe e ela me protegeu com o seu corpo. Ela ficou inconsciente e, quando despertou, estava escuro. Não havia luz entrando pelos escombros. Ela ouviu o choro de um bebê — meu choro. Era o bebê dela chorando. Ela achava que era outro bebê. Minha mãe suplicava: ‘Por favor, me ajude!’ — mas ninguém veio. Então ela viu uma pequena luz atravessando os escombros. Se movimentou devagar, fez um buraco e saiu comigo”. Tudo o que viram quando saíram dos escombros foi fogo engolindo o bairro.

A Sra. Kondo também me mostrou um álbum de fotos de família dos anos posteriores. Então ela abriu uma sacola plástica e tirou o pequeno vestido cor-de-rosa de algodão que estava usando naquele dia. Extraordinariamente intacta, a peça deu vida à catástrofe para mim. O Museu Memorial da Paz de Hiroshima está repleto de artefatos que lembram a vida cotidiana: um relógio quebrado que parou exatamente às 8h15, um triciclo destroçado desenterrado das ruínas.

Depois da entrevista, fomos almoçar em um pequeno restaurante italiano perto do museu. Notei que diversas empresas norte-americanas haviam se instalado na cidade; franquias do McDonalds e Starbucks contornavam o Parque Memorial da Paz. Após o almoço, visitamos os memoriais e monumentos do parque. Visitantes faziam fila diante do Cenotáfio em homenagem às vítimas da bomba atômica, vários deles se curvavam silenciosamente diante do monumento. Voltamos para a Ponte Aioi, o alvo do Enola Gay. Quando o bombardeiro lançou a Little Boy, ela flutuou no ar e detonou ligeiramente fora do alvo. Perguntei à Sra. Kondo onde era o suposto hipocentro.

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Ela me levou a uma rua vazia de três quarteirões próxima dali e parou em frente a uma clínica médica, um prédio baixo revestido por ladrilhos na cor cinza. Ao lado havia uma loja de conveniência 7-Eleven. É aqui, ela disse apontando para uma pequena placa em frente à clínica.

“A primeira bomba atômica utilizada na história da humanidade explodiu cerca de 600 metros acima deste local”, dizia a placa. “A cidade abaixo foi atingida por raios de calor de cerca de 3 a 4 mil graus Celsius, juntamente com uma onda de deslocamento de ar e radiação. A maioria das pessoas que estava nessa região perdeu a vida instantaneamente.”

Eu me peguei olhando irracionalmente para cima, como que esperando ver algo lá também, algum vestígio ou marcação impossível. Mas tudo o que vi foi o céu azul — banhado pelo sol exatamente como na manhã de 6 de agosto de 1945.

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