Amiga de Anne Frank que resistiu ao Holocausto transmite horrores do nazismo para estudantes brasileiros
A holandesa Nanette Blitz Konig, 90 anos, teve a família destruída na Segunda Guerra Mundial. Oito décadas após início do confronto, a National Geographic resgata as memórias de sobreviventes que residem no Brasil.
Nanette Blitz Konig ministrava, há alguns anos, mais uma palestra sobre o Holocausto em uma escola bilíngue de São Paulo, fundada por imigrantes de origem alemã. Judia nascida na Holanda, Nanette é ela própria uma sobrevivente de um campo de concentração nazista, onde esteve presa entre 1944 e 1945, quando tinha 15 anos. Ao fim da conversa com os estudantes, uma garota veio abraçá-la e, chorando, pediu-lhe desculpas pela tragédia que “seu povo havia causado aos judeus”.
A passagem marcou profundamente Nanette, radicada em São Paulo há mais de seis décadas, mas são as memórias da fome, do frio, da imundície e do extermínio de sua família que fazem a senhora de 90 anos ter pesadelos ainda hoje. Na casa em que vive ao lado do marido, John Frederick Konig, Nanette recebeu a reportagem da National Geographic Brasil, em uma manhã fria de agosto, para reviver com palavras, silêncios e suspiros um dos períodos mais sombrios da história da humanidade, da qual ela foi vítima e é uma sobrevivente. “A mente não esquece os horrores que eu vivi”, disse ela, mirando o longe.
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Colega de classe de Anne Frank em Amsterdã, em 1941, onde nasceu, Nanette fita o passado sem medo. Nas duas últimas décadas, tem se dedicado a narrar os horrores do Holocausto para estudantes. “Os judeus sofreram à toa, e as pessoas precisam saber disso”, defendeu ela, sentada na sala de estar de sua ampla e florida residência, em uma rua tranquila e arborizada no bairro paulistano de Sumaré. Elegante, trajando um cardigã azul-marinho e um colar de pérolas, ela retirou de seu baú a Estrela de Davi amarela que era obrigada a usar nas ruas de Amsterdã para indicar a origem judia e, sem hesitar, sentenciou: “Israel e seu exército são muito fortes. Nada mais vai acontecer conosco”.
“Vou morrer lutando para que os seres humanos não sofram nem percam sua dignidade como aconteceu com os judeus naquela época”
Holocausto – que, em grego, significa “sacrifício por fogo” – é o nome dado ao genocídio de 6 milhões de judeus pelo regime nazista alemão e seus colaboradores durante a Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945. Os nazistas, liderados por Adolf Hitler e organizados sob o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, ascenderam ao poder em 1933, na Alemanha, e consideravam-se uma raça superior, vendo nos judeus um inimigo a ser exterminado. O marco simbólico do início da Segunda Guerra é a invasão da Polônia pela Alemanha, em 1º de setembro de 1939, há exatos 80 anos.
Dias de horror na parede da memória
Nanette teve uma infância leve e cheia de sorrisos em Amsterdã com os pais e dois irmãos – embora um deles tenha morrido de causas naturais ainda criança. As tropas de Hitler, buscando expandir os ideais nazistas e dominar o continente europeu, invadiram a Holanda em 10 de maio de 1940. Poucos dias depois, o país já estava sob o poder dos alemães. As famílias tiveram de declarar oficialmente se seguiam o judaísmo ou não. Logo, os judeus foram vendo seus direitos subtraídos e perderam cada vez mais espaço na sociedade holandesa, independentemente das posições que ocupavam.
Em seu livro de memórias, Eu Sobrevivi ao Holocausto (Universo dos Livros, 2015), Nanette descreve a mudança. “Eu não podia mais andar de bicicleta. Transporte público, parques públicos e cinemas também eram proibidos, e vários comércios tinham a placa que me angustiava: PROIBIDO PARA JUDEUS”, escreveu ela. Nanette lembra também que, a qualquer lugar que quisessem ir, os judeus tinham de usar uma Estrela de Davi amarela colada ao braço. Foi este símbolo religioso marcado em um pano amarelado que ela guardou até hoje, “nem sabe como”, e o revelou para a reportagem em sua residência, encarando-o como se não acreditasse no que aconteceu.
A segregação obrigou as crianças judias a estudarem em colégios separados dos demais. Foi assim, em 1941, aos 12 anos, que Nanette tornou-se colega de classe da também adolescente Anne Frank, no Liceu Judaico. O convívio entre as duas durou até julho de 1942, quando Anne, assim como acontecera a vários colegas, “simplesmente desapareceu”. Mas Nanette conta que participou do 13° aniversário da colega, naquele mês, e presenteou-a com um broche. Na comemoração, Anne também ganhou seu famoso diário.
Então com 12 anos, Nanette, os pais e o irmão foram capturados em casa em setembro de 1942 e levados para o campo de transição de Westerbork, na Holanda. Em fevereiro de 1944, a família foi deportada para o campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha. Eles ficaram alojados em um subcampo chamado Campo Estrela, onde tiveram o “privilégio” de manter suas roupas, não terem os cabelos raspados, nem serem forçados a trabalhar. Devido à posição social do pai, diretor do Banco de Amsterdã, a família foi relativamente poupada. O campo era administrado pela SS (sigla para Schutzstaffel), o temido exército de elite nazista então comandado por Heinrich Himmler.
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Apesar de não ser oficialmente um campo de extermínio, Nanette descreve Bergen-Belsen como um cenário “deprimente e desesperador”, com pouco espaço para a sobrevivência. “Convivíamos lado a lado com a morte”, escreveu ela. Dentre as medonhas lembranças, estão banhos frios em grupo, o pesadelo interminável da contagem diária de prisioneiros, vasos sanitários imundos, trabalho exaustivo, piolho e doenças como tifo, fome e desnutrição proveniente de uma insignificante refeição diária. “Eles queriam nos matar de fome”, diz ela, contando que pesava cerca de 30 quilos quando foi libertada, em maio de 1945.
O pai morreu em Bergen-Belsen. O irmão foi enviado para o campo de concentração de Sachsenhausen, em Oranienburg, próximo a Berlim; e a mãe para Magdeburgo, ambos na Alemanha. Nanette ficou sozinha a partir de dezembro 1944.
Soldados britânicos libertaram o campo em abril de 1945, ainda antes do fim da guerra. Nanette conta que a maioria dos prisioneiros não tinha disposição física nem para entender o que estava acontecendo. Os ingleses encontraram um cenário tenebroso, com corpos espalhados por todos os lugares e um odor insuportável, o que deu ao campo o nome de “o campo do horror”. Havia 10 mil mortos, e esse número continuou a aumentar nos dias seguintes, já que muitos dos “sobreviventes” estavam mais mortos do que vivos. Ao todo, mais de 50 mil pessoas morreram em Bergen-Belsen.
Nanette não conseguiu sair sozinha do local – de tão fraca e debilitada, teve de ser carregada. “Fiz de tudo para sobreviver e sobrevivi”, diz ela, lembrando dos familiares e amigos que não tiveram o mesmo destino.
Ela contraiu tifo, doença transmitida por parasitas devido a condições precárias de higiene, mas conseguiu se recuperar, ao contrário de tantos outros prisioneiros de Bergen-Belsen. Sem notícias da mãe nem do irmão e sem casa, Nanette retornou à Holanda em julho de 1945 e, durante os três anos seguintes, ficou internada em um sanatório para sobreviventes da guerra. Ela foi noticiada da morte da mãe, mas nunca conseguiu confirmar o que ocorrera ao irmão em Oranienburg. A sobrevivente mudou-se para a Inglaterra em 1948, aos 20 anos. “Minha mãe era inglesa e eu tinha familiares lá”, conta. Em Londres, conheceu John, o futuro companheiro.
Minha amiga Anne Frank
Entre as fotografias esparramadas pelos móveis da sala de estar da casa de Nanette, nota-se um retrato da adolescente de origem judia Anne Frank, nascida na Alemanha mas criada em Amsterdã. Anne tornou-se uma das mais emblemáticas vítimas do Holocausto por conta de um diário que escreveu entre junho de 1942 e agosto de 1944, enquanto ela e a família se escondiam dos nazistas no armazém do pai, em Amsterdã. Os relatos da garota, entre os 13 e 15 anos de idade, mostram a mudança brusca sofrida no dia a dia dos judeus holandeses após a ocupação do país.
“Não lhe posso descrever como é opressivo não poder sair nunca. Vivo também morta de medo de sermos descobertos e fuzilados”, narrou a garota em seu diário. “Hoje só tenho notícias tristes e deprimentes. Nossos amigos judeus estão sendo levados embora às dúzias. Essa gente está sendo tratada pela Gestapo (nome da polícia secreta alemã) sem um mínimo de decência. São amontoados em vagões de gado e enviados para Westerbork”, anotou ela em 11 de julho de 1942. O último relato da adolescente no diário, então com 15 anos, é de 1º de agosto de 1944.
Anne e sua família foram descobertos no dia 4 de agosto e levados presos por oficiais nazistas alemães e holandeses. Após uma breve passagem por Westerbork, foram enviados para o temido campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia. Mais de 100 mil judeus holandeses foram deportados para Auschwitz. Lá, morreu a mãe de Anne, Edith. As irmãs adolescentes foram, então, mandadas para Bergen-Belsen, onde Nanette viu a antiga colega de classe pela última vez.
Quando Nanette as reconheceu, as irmãs Frank estavam muito debilitadas. Em seu livro, ela relatou o reencontro, no começo de 1945. “Anne estava envolta em um cobertor, pois não aguentava mais os piolhos em sua roupa, e tremia de frio. Corremos para nos abraçar, e lágrimas caíam dos nossos rostos”, escreveu. Mesmo extremamente enfraquecida, Anne contou à amiga sobre o tempo no esconderijo e o diário que escrevera. As irmãs padeceram vítimas de tifo, fome e exaustão.
“Não lhe posso descrever como é opressivo não poder sair nunca. Vivo também morta de medo de sermos descobertos e fuzilados.”
O diário de Anne foi encontrado no esconderijo e entregue a amigas da família Frank, e depois passado ao pai, Otto Frank, quando a guerra terminou e este voltou vivo. Ele foi libertado de um campo-hospital por forças soviéticas em janeiro de 1945. Otto visitou Nanette no sanatório e contou-lhe que pretendia publicar o diário da filha, o que ocorreu em 1947. Ele se mudou para a Suíça e morreu em 1980.
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O esconderijo da família Frank, chamado de Anexo Secreto, é hoje um museu em Amsterdã. Segundo Joëlke Offringa, presidente do Instituto Plataforma Brasil, que representa a Casa de Anne Frank no Brasil, além de Nanette, estão vivas apenas outras duas amigas de Anne: Jacqueline e Hanelie.
Passagem de ida para uma vida nova
Estima-se que 102 mil judeus holandeses tenham sido dizimados pelo Holocausto. Apesar da brutalidade dos fatos, Nanette dedicou-se nos últimos 20 anos a palestrar sobre o tema. Rodou o Brasil, passou por Argentina, Bolívia, Estados Unidos e Canadá, mas concentrou-se sobretudo na cidade de São Paulo. Usando uma calculadora de celular, o esposo, John, de 92 anos, estima que tenham sido cerca de mil palestras nas últimas duas décadas, que rarearam ultimamente por conta da idade avançada e da memória de Nanette. “Ela também conversa com estudantes por Skype”, observa John. “Na nossa idade, não dá mais para ficar viajando.”
Casados há 66 anos, Nanette recorre repetidas vezes a John para reavivar os detalhes de algumas das passagens de sua trajetória. Enquanto Nanette se arrumava para a reportagem, foi ele quem nos recebeu na sala de tevê da casa, onde exibiu, orgulhoso, sobre uma mesa, condecorações dedicadas à esposa ao longo da vida, além de dezenas de cartas enviadas a ela por estudantes das escolas onde palestrou. Os dois fazem exercícios físicos três vezes por semana e vivem com um casal de empregados, que toma conta da espaçosa casa.
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John é húngaro, mas mudou-se para Inglaterra com os pais aos 8 anos de idade. Engenheiro, ele e Nanette estabeleceram-se no Brasil em 1959, após breve passagem pelo país – e nos Estados Unidos e Argentina – anos antes. Desde então, vivem na mesma casa em que receberam a National Geographic Brasil, onde estão espalhados porta-retratos com imagens antigas do casal e uma porção de fotos dos três filhos, netos e bisnetos.
Em Londres, Nanette trabalhou como secretária bilíngue, e, em terras brasileiras, dedicou-se à criação dos filhos. Depois que eles saíram de casa, estudou economia, mas não exerceu o ofício. O casal, ainda hoje, comunica-se em inglês. Durante a entrevista, contudo, Nanette respondeu em bom português. “Além do holandês, minha língua nativa, falo inglês, alemão e francês muito bem”, observou, orgulhosa. “Mas admito que o português não foi tão fácil – demorei um pouco para aprender depois que cheguei ao Brasil.”
Nanette conta que só começou a dar entrevistas e palestras aos 70 anos porque, antes, nunca haviam lhe pedido. “É impressionante, admirável, como os jovens se interessam por este assunto. Muita gente não tem ideia de que isso ocorreu”, comenta. “Vou morrer lutando para que os seres humanos não sofram nem percam sua dignidade como aconteceu com os judeus naquela época, como aconteceu comigo”, escreveu a sobrevivente em seu livro.
Uma das entidades em que Nanette deu seu testemunho com mais frequência foi o Instituto Plataforma Brasil. “Quando Nanette chega para participar dos eventos, os jovens sentem como se a própria Anne Frank estivesse lá”, comenta a presidente do instituto, Joëlke Offringa, por telefone. Segundo ela, o testemunho de Nanette é uma lição contra a violência, a discriminação e a intolerância, que também fazem parte da vida de muitos brasileiros.
Ao fim da conversa, Nanette pergunta ao repórter: “Você acredita em Deus?”. Segundos de silêncio. Antes de qualquer resposta, ela diz: “Eu não!”. A sobrevivente diz conhecer a religião judaica porque foi obrigada a estudá-la, mas que não é religiosa, nem vai à sinagoga. “Não acredito em Deus, não, é invenção humana.”