No Dia da Mulher, travestis e mulheres trans destacam luta por autonomia

Um projeto fotográfico retrata o cotidiano de mulheres transexuais, transgênero e travestis em São Paulo – e chama a atenção para o reconhecimento urgente dos direitos dessa parcela da população brasileira.

Por Redação National Geographic Brasil
fotos de Dan Agostini em colaboração com Uma Reis Sorrequia
Publicado 8 de mar. de 2023, 10:26 BRT
Uma mulher faz um movimento com o cabelo para a direita. Ela é retratada de baixo ...

Jamilly, uma das mulheres acompanhadas pelo Projeto Palomas, durante uma caminhada na praia de Santos, litoral de São Paulo. Jamilly vive na Casa Florescer II, onde divide espaço com outras 30 mulheres transgêneros. Jamilly está em busca de trabalho e projetos sociais para poder sair da casa e viver com seu namorado.

Foto de Dan Agostini

Dia da Mulher é usado para celebrar a luta de mulheres por mais igualdade e espaço na sociedade, bem como enfatizar e concretizar o que foi conquistado. Entretanto, a data também escancara lacunas nesses avanços. Afinal, estariam todas as mulheres experienciando mais igualdade e reconhecimento nos últimos anos? 

A resposta não é das melhores. Além das mulheres cisgênero (que se identificam com o gênero atribuído ao nascer), há uma parcela de mulheres que também segue à margem: as transexuais e transgênero (que se identificam como mulheres e reivindicam ser reconhecidas como tal pela sociedade) e as travestis (identidades femininas que reivindicam ser reconhecidas enquanto travestis e/ou mulheres travestis). 

“A sociedade e a política institucional ainda não olham para nós como gente. Somos as últimas convidadas na festa da humanidade”, diz Uma Reis Sorrequia, travesti, articuladora social no Museu da Língua Portuguesa e pesquisadora de gênero, em entrevista para a National Geographic por ocasião do Dia da Mulher. 

Para Sorrequia, a sociedade avançou – sim – em relação aos Direitos Humanos, mas a parcela da população trans, em especial mulheres trans e travestis, sobretudo negras, ficou décadas para trás. “Isso se reflete na alta taxa de mortalidade dessas pessoas, por exemplo. Nossa expectativa de vida é a metade de uma pessoa cisgênero (aquela que se identifica com o gênero atribuído ao nascer)”, diz ela.

Mobilizadas pelo mesmo desejo, Uma Sorrequia se uniu a Dan Agostini, especialista em fotografia documental com foco em estudos de gênero, para dar maior visibilidade a uma causa que acompanham de perto: a vida de travestis e mulheres trans no país em que a expectativa de vida de pessoas trans e travestis é de apenas 35 anos (segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a Antra). 

Para se ter uma ideia do risco de violência que a população trans enfrenta, a expectativa de vida dos brasileiros, no geral, é de 77 anos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja, cerca de 42 anos a mais de quem se identifica como trans. 

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    Peruca em ambiente externo da Casa de acolhimento Florescer. A casa Florescer é uma casa de apoio exclusiva para pessoas transexuais em São Paulo mantida com recursos do governo municipal.

    Foto de Dan Agostini

    Por isso, Uma e Dan pretendem jogar luz – quase que literalmente – nas problemáticas enfrentadas por mulheres trans e travestis no Brasil através do projeto fotográfico “Palomas”, que acompanha desde 2020 as mulheres que residem nas Casas Florescer, abrigo exclusivo para travestis e transexuais de São Paulo, que conta com dois endereços, um na região central e o outro na região Norte da cidade. A capital paulista ainda conta com mais quatro centros de acolhida para a população trans e jovens LGBTQIA+: o Casarão Brasil, a Casa 1, a Casa Fúria e a Casa João Nery.

    O projeto visa entender como o contexto social no qual elas estão inseridas pode impactar (e muitas vezes potencializar) o estado de vulnerabilidade de mulheres trans e travestis, além de se propor a compreender possibilidades e dificuldades encontradas durante os processos de autonomia e independência econômica deste grupo.

    Por que falar de mulheres trans no Dia da Mulher

    Para Uma Sorrequia, debater as problemáticas que envolvem as vivências transfemininas em uma data como o Dia da Mulher é simbólico e necessário, mas faltam ações que reconheçam as especificidades dessa população dentro da luta mais ampla de todas as mulheres. 

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      “É positivo e segue sendo importante para que as pessoas nos respeitem enquanto mulheres, enquanto uma identidade feminina, e nos tratem no feminino. Mas eu também quero ser reconhecida enquanto travesti.”

      por Uma Reis Sorrequia

      Segundo a pesquisadora, tratar dos direitos de mulheres trans e travestis pela perspectiva cisgênero pode apagar as necessidades específicas da população. Por exemplo, Sorrequia aponta que há uma enorme lacuna de informações sobre a população trans brasileira, dados que poderiam estar montando uma base para políticas públicas de inclusão direcionadas a essa população. 

      Essa base, segundo a pesquisadora, poderia ser construída com a inserção da categoria de identidade de gênero no censo do IBGE, assim como em outros levantamentos públicos, como em hospitais, escolas e polícias. Outro meio seria o reconhecimento dessas identidades na certidão de nascimento com o processo de retificação do nome civil, que atualmente está limitado a masculino e feminino “e ignorado, no caso de pessoas intersexuais”, complementa.

      “Há uma disputa política para sermos reconhecidas e compreendidas enquanto mulheres e identidades femininas sujeitas de direitos na luta feminista, mas também brigamos para que as travestis e mulheres trans tenham seus direitos atendidos enquanto pessoas humanas, enquanto cidadãs. Independente de sermos mulheres ou não”, afirma. 

      “A sensação é de sempre ser uma infiltrada, uma impostora, sempre uma mulher menor”, diz Sorrequia. “Ainda que, no final, eu ouça das pessoas ‘você é uma mulher maravilhosa, você é uma mulher linda’, eu também gostaria de ouvir que eu sou uma travesti maravilhosa, uma travesti linda.”

      “As pessoas parecem ter medo de dizer ‘travesti’, como se fosse uma ofensa. Eu entendo o porquê, logo, sou reconhecida como uma mulher e está tudo bem também, mas revolucionário mesmo seria ouvir as pessoas dizerem em alto e bom som – com gosto – a palavra ‘travesti’.”

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        Mirella posa para um retrato no colo de Bárbara durante um passeio no Praça Roosevelt, em São Paulo. Bárbara e Mirella iniciaram um relacionamento afetivo quando moraram na Casa Florescer I. Namoraram por 2 meses e se separaram quando Bárbara foi transferida para outra casa de apoio. Desde então, Mirella passou a viver entre a rua e diversos abrigos.

        Foto de Dan Agostini

        Mulheres trans enfrentam uma vida repleta de abandonos

        “Os problemas começam, muitas vezes, na base familiar. São inúmeros casos de meninas que saem de casa muito cedo, ainda na adolescência, porque a família virou as costas”, conta Agostini. “E, quando se sai de casa tão cedo, a rua acaba sendo o lugar que acolhe essas meninas, que encontram no próprio corpo um meio de trabalho e sobrevivência."

        Bárbara Garcia  – uma das mulheres acompanhadas pelo projeto Palomas – está nesta estatística. Quando tinha 14 anos, buscou sozinha acompanhamento no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (IPq-HCFM/USP), que atende crianças e adolescentes trans. 

        Para dar início à transição de gênero, no entanto, ela precisava da autorização e acompanhamento de sua mãe, que se recusou a fazê-lo, dizendo que “se ela havia nascido homem, deveria viver como um”, conta Bárbara. Sem a aceitação necessária, os conflitos familiares fizeram com que ela abandonasse de vez seu lar, aos 19 anos.

        Nascida na cidade de São Paulo, Bábara é uma travesti negra e lésbica. Já trabalhou como tatuadora, vendedora de doces e em cargos administrativos quando residia na Casa Florescer, onde ficou entre 2020 e 2022.

        Da casa de acolhimento, Bárbara finalmente conseguiu encaminhamento com um endocrinologista para acompanhamento e realização de terapia hormonal via processo transexualizador no Sistema Único de Saúde. Entretanto, hoje Bárbara vive em situação de rua, na região da Cracolândia, em São Paulo, devido a um problema com drogas. 

        Sua história, porém, repete a de diversas outras jovens e exemplifica uma das primeiras violências sofridas pelas travestis: a negativa do afeto, do cuidado e do acolhimento.

        Esse primeiro abandono inicia uma sequência de desamparos, que possuem como principal pilar a falta de trabalho digno. Segundo a Antra, estima-se que 90% da população trans no Brasil – cerca de 4 milhões de pessoas – tem a prostituição como fonte de renda e única possibilidade de subsistência.

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          Bárbara olha para fora do hotel onde passou a noite. Bárbara já trabalhou como tatuadora, vendedora de doces e assistente administrativa na Prefeitura de São Paulo em um programa social do governo. Por conta de problemas com drogas, atualmente Bárbara vive em situação de rua na Cracolândia.

          Foto de Dan Agostini

          Para Agostini, essa realidade joga mulheres trans à margem, quase como uma sina imposta pela sociedade, afetando também sua condição de saúde, moradia, alimentação e relacionamentos sociais.  “Não vemos mulheres trans no âmbito público, por exemplo, como atendentes em supermercados, na farmácia, como administradoras ou professoras. Não são lugares onde se espera encontrar uma pessoa trans”, enfatiza.

          Preconceito: como a sociedade cisgênero entende as identidades trans

          Para Sorrequia, as violações e violências que atingem a população trans podem ser reduzidas, em maior ou menor grau, às concepções de sexo enquanto prática sexual e/ou sexo biológico. Ainda hoje, diz ela, a população trans luta para legitimar suas existências e ressignificar o imaginário social de que todas travestis e mulheres trans são prostitutas.  

          Nesse sentido, historicamente as pessoas trans também estiveram visíveis socialmente por meio da arte.

          “A travesti esteve presente na casa das famílias brasileiras ao longo dos anos 1980 e 1990, além das grandes avenidas de prostituição, a partir dos programas de auditório e do carnaval. É recente e muito tímida a presença dessa população na área acadêmica, com aumento de pessoas trans no ensino superior e na pós-graduação, e mesmo na política”, afirma Sorrequia, que menciona as deputadas federais Erika Hilton (Psol-SP) e Duda Salabert (PDT-MG) como exemplos.

          Outro caso que exemplifica a fala de Sorrequia é o de Eloina dos Leopardos, travesti considerada a primeira rainha de bateria da história. Ela foi colocada no cargo, que até então não existia, pelo carnavalesco Joãosinho Trinta para desfilar pela escola de samba Beija-Flor, no Rio de Janeiro, em 1976. Em suas redes sociais, Eloina conta que foi o alvoroço da Sapucaí naquele ano, mas que ninguém soube que ela era travesti até depois do desfile. 

          Mulheres trans e travestis contra a violência

          Os ataques experienciados por mulheres trans e travestis no Brasil não se limitam à exclusão social. Essa população, principalmente a que depende da prostituição como meio de subsistência, também é marcada pela constante presença da morte. 

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            À esquerda: No alto:

            Faca utilizada por Mirella como defesa para situações de rua. A faca é chamada de obé-shirê, denominação que faz parte do dialeto Pajubá, criado pela comunidade LGBTQIA+ no Brasil. 

            À direita: Acima:

            Celina (à esquerda) e Bárbara (à direita) trabalham na Praça do Jaçanã, um local de prostituição próximo à Casa Florescer II, local que viveram juntas em 2020. Bárbara trabalha como profissional do sexo eventualmente, somente quando há emergências financeiras. Já Celina trabalha em tempo integral. Atualmente, Bárbara vive em situação de rua e Celina divide uma casa com outras mulheres na zona sul de São Paulo.

            fotos de Dan Agostini

            De acordo com o dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2022, publicado pela Antra, travestis e mulheres trans convivem diariamente com medo de serem violentadas em qualquer espaço. 

            “Pessoas transfemininas que vivenciam a transgeneridade no espaço público constituem um grupo com a mais alta vulnerabilidade à morte violenta e prematura no Brasil”, relata o documento. 

            Segundo a associação, só em 2022, 151 pessoas trans foram mortas, sendo 131 casos de assassinatos e 20 pessoas trans suicidadas (levadas ao suicídio pela violência transfóbica). Os números colocam o Brasil como o país que mais mata pessoas trans no mundo pelo 14º ano seguido. Além disso, o dossiê também aponta que assassinato de pessoas trans e travestis brasileiras corresponde, anualmente, a quase metade dos assassinatos dessa população globalmente. 

            “Desde que começamos o projeto de fotografia, duas meninas morreram. Uma faleceu de Covid-19 e a outra não sabemos exatamente o que aconteceu”, conta Dan Agostini. “Em casos assim, a suspeita – quase certeza – é de assassinato”, revela.

            O caso comentado por Agostini é o de Stefany Gregory, travesti de 29 anos que residia no bairro da Liberdade, em São Paulo. Ela sobrevivia com apoio financeiro do programa municipal Transcidadania, que visa o retorno de mulheres transexuais à escola, e complementava a renda se prostituindo e pedindo dinheiro na rua. 

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              Savannah (à esquerda) e Stefany (à direita) conversam no quarto da casa de Stefany, no centro de São Paulo. Após deixar a Florescer, Stefany viveu com ajuda financeira do governo, pedindo dinheiro nas ruas e trabalhando como profissional do sexo. Em outubro de 2021, ela foi assassinada. 
              Savannah passou um ano em situação de cárcere, recebeu liberdade em 2022 e hoje vive na Casa Fúria, centro cultural do Coletivo Cia dxs Terroristas.

              Foto de Dan Agostini

              Por volta de agosto de 2021, segundo conta Agostini, Stefany desapareceu. A mãe da garota foi chamada para reconhecer o corpo dois meses depois. “Buscamos dados em delegacias e hospitais, e não encontramos nada dela que explicasse o que aconteceu nesses dois meses. Ela quase foi enterrada como indigente”, relata. 

              No atestado de óbito, compartilhado com a reportagem da National Geographic por Agostini, consta que o corpo de Stefany foi encontrado em via pública, e a causa da morte como acúmulo de sangue no coração causado por trauma e ruptura da aorta. 

              Segundo Agostini, devido à natureza perigosa do trabalho na rua, histórias assim, infelizmente, são comuns. “Isso acontece o tempo inteiro. Quando uma garota desaparece já há uma assunção que ela foi assassinada”, diz. “O que nos dá uma dimensão do quanto a morte é factível na vida delas. É uma ameaça diária”.

              Projeto Palomas: um olhar para o cotidiano de pessoas trans e travestis

              De origem espanhola, a palavra paloma significa pomba, símbolo de liberdade e paz. Esse também é o nome de uma das travestis que emprestam suas vivências para o projeto. Veja abaixo mais fotos da iniciativa que busca narrar as histórias coletivas de uma população em busca de autonomia.

              Parte das fotos desta reportagem foi feita no âmbito do Fundo de Emergência Covid-19 para jornalistas, da National Geographic Society. 

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