Tradições do carnaval: heranças negras, multidões e música popular movem a maior festa do Brasil

Conheça as origens, as histórias e os mitos fundadores por trás das cidades que são símbolo da festividade – que volta às ruas em 2023, após mais de dois anos ausente devido à pandemia.

Por Redação National Geographic Brasil
Publicado 17 de fev. de 2023, 08:25 BRT
Blocos carnavalescos durante a abertura não oficial do Carnaval do Rio em 2018. As festividades aconteceram ...

Blocos carnavalescos durante a abertura não oficial do Carnaval do Rio em 2018. As festividades aconteceram um fim de semana antes do início tradicional da festa.

 

 


 

Foto de Fernando Frazão AGB

O carnaval é uma festa que vem evoluindo há séculos, mas hoje é sinônimo de Brasil. Suas origens remontam ao antigo Império Romano e a práticas cristãs, cujos devotos festejavam nos dias que antecediam a Quaresma (período em que os cristão se abstém de carne e outros prazeres considerados mundanos). 

Em território brasileiro, o carnaval passou por diversas fases antes de chegar no formato atual da festa, passando de algazarras e bailes de máscaras a desfiles disfarçados de procissões religiosas. 

Parte da tradição chegou com os colonos portugueses, que praticavam os entrudos (festas de entrada da Quaresma), em que as pessoas jogavam água, farinha, lama e até lixo uma nas outras, como conta o artigo A origem do carnaval, disponível no site da biblioteca do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB)

Entretanto, a festa recebeu influências de outros países da Europa e grandes contribuições da cultura negra, que transformaram o DNA do carnaval em algo claramente brasileiro. 

Segundo Micael Maiolino Herschmann, historiador e professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os ritmos carnavalescos, os instrumentos usados e as referências às culturas e religiões de origem africana, como o candomblé e a umbanda, são alguns pontos que podem ser colocados como “tradição”, do carnaval brasileiro. “São elementos que aparecem sempre ligados à festa de alguma forma", disse Herschmann em entrevista à reportagem. "Não importando a região do país.”

Apesar de ser comemorado por todo o território nacional, o carnaval é mais expressivo em algumas cidades, como Rio de Janeiro, Salvador e nas pernambucanas Recife e Olinda. Cada uma delas agrega os elementos tradicionais da festa à sua maneira, formando outros costumes locais. 

O carnaval do Rio atrai multidões para os blocos de rua

Bloco de rua Me Esquece reuniu milhares de foliões no Jardim Botânico no Rio de Janeiro (2016).

Foto de Alexandra Macieira Riotur

A Riotur, empresa de turismo do governo estadual do Rio de Janeiro, estima que o carnaval de rua do Rio atraia cinco milhões de pessoas em 2023. Os chamados blocos de rua são os principais atrativos para o público. “A grandeza do carnaval carioca atual são os blocos e desfiles de rua, que, para muitos, retomaram a tradição dos séculos 19 e 20”, diz Herschmann. 

Nessa época, mais especificamente entre o fim do século 19 e começo do 20, a festa era composta pelos entrudos, ranchos e cordões que utilizavam componentes estéticos das procissões religiosas e os combinavam com manifestações populares, segundo um artigo de autoria do professor da UFRJ intitulado Apontamentos sobre o crescimento do carnaval de rua no Rio de Janeiro no início do século 21

Eram grandes grupos de pessoas – na maioria negras ou de outras camadas populares de baixa renda –  que seguiam em bloco usando máscaras e fantasias, tocando instrumentos comuns aos batuques, jogando capoeira e outras atividades culturais de origem africana. Segundo Herschmann, as escolas de samba, que hoje desfilam pomposas na Marquês de Sapucaí, também se originam dos cordões e ranchos. 

“O que apontamos como tradições do carnaval são elementos que de alguma forma conseguiram construir uma sensação de continuidade, mesmo que novos costumes fossem introduzidos”, diz o professor. Um exemplo são os blocos Cordão do Bola Preta, fundado em 1918, e o Simpatia é Quase Amor, formado em 1985, que ainda desfilam todos os anos nas ruas do Rio. 

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    Bateria de um bloco de rua no Carnaval de 2018 no Rio de Janeiro.

    Foto de Fernando Frazão AGB

    O que não pode faltar nos blocos de rua cariocas

    Música, com certeza, é algo que não pode faltar”, diz Thiago Di Sabbato, gerente e diretor musical do Bangalafumenga, um dos blocos de rua mais tradicionais do carnaval do Rio de Janeiro

    O Bangalafumenga surgiu no fim dos anos 1990 – assim como o Sargento Pimenta e o Céu na Terra, blocos que fazem parte dessa retomada das festividades públicas no Rio de Janeiro. “O bloco apareceu em um momento de recuperação de uma forma popular de pular carnaval e, ao mesmo tempo, inaugurou novas tradições.”

    Desde 1998, o Bangalafumenga atrai multidões para a parte do Aterro do Flamengo, na baía do Guanabara, que brincam ao som da bateria composta por centenas de músicos que tocam instrumentos introduzidos pelo povo negro na música brasileira – como os atabaques, o tambor, o repique e o agogô, hoje característicos dos ritmos carnavalescos,. 

    “Nossa bateria tem músicas próprias, que já viraram obrigatórias no repertório”, diz Di Sabatto. “Mas também trazem sucessos do samba, do axé, tem maracatu e o funk, que vem ganhando cada vez mais espaço como música de carnaval.”

    Segundo Herschmann, o carnaval do Rio é marcado por um movimento de música de rua que envolve desde cantores e instrumentistas amadores até profissionais. “É um sistema que se retroalimenta. O carnaval é um grande palco para novas canções e muitos hits são pensados particularmente para a festa”, diz ele.

    Herschmann ressalta que as festividades no Rio de Janeiro já extrapolam os dias oficiais da festa (de sábado até a terça-feira de carnaval). “Hoje, o carnaval dura praticamente o verão inteiro, com blocos levando milhares de pessoas para a rua todos os fins de semana.”

    Salvador: o carnaval dos afoxés e dos blocos afro

    Não há lugar no Brasil em que as heranças negras aparecem tanto nos costumes de carnaval quanto em Salvador, a começar pelos afoxés e os blocos afro. 

    Milton Araújo Moura, professor de história na Universidade Federal da Bahia e pesquisador na área de história das festas, sobretudo o carnaval de Salvador, explica que um afoxé é um bloco de rua formado por ou associado a um terreiro de candomblé. 

    Já os blocos afro são aqueles formados pela comunidade negra e seus desfiles tradicionalmente fazem referências à luta contra o racismo e a valorização da identidade negra. “O repertório, a indumentária, o figurino, todos os elementos dos desfiles desses blocos trazem a herança africana”, diz Moura. “Desde alusões a cultura dos orixás à tradição histórica do povo negro.” 

    Os primeiros afoxés registrados como tal foram os clubes Embaixada Africana e Pândegos da África, que datam de 1895, poucos anos depois da abolição da escravidão no Brasil, que ocorreu em 1888. Moura conta que os afoxés começaram a ir para as ruas como forma de levar a alegria e as festividades negras para desfilar nos carnavais, em um cenário em que os negros ainda tinham seus direitos restringidos pelo Estado e pelas elites. 

    Atualmente, Salvador abriga dezenas de blocos afoxés. O maior deles é o Filhos de Gandhy (também um dos mais antigos, fundado em 1949), que tem mais de 5 mil associados, segundo a organização do bloco. Em um desfile que dura três dias, o repertório do clube é ritmado pelo agogô, acompanhado por cânticos de ijexá (ritmo africano originário da Nigéria) cantados na língua Iorubá (língua africana também da região da Nigéria). 

    Bloco Afoxé Filhos de Gandhy desfila no centro histórico de Salvador com mensagens de paz e de resistência.

    Foto de Sayonara Moreno Agência Brasil

    Entre os blocos afros, os maiores e mais tradicionais são o Ilê Aiyê, o Muzenza e o Olodum, conhecido por fazer parte do clipe da música They Don’t Care About Us, de Michael Jackson. 

    Trios elétricos completam a tradição do carnaval baiano

    Para Moura, não dá para falar de carnaval em Salvador sem mencionar os trios elétricos. 

    Trios elétricos agitam foliões em Salvador.

    Foto de Valter Pontes SECOM

    Também chamados de blocos de trio, eles são desfiles em que os foliões seguem um caminhão equipado com caixas de som, sistemas de sonorização e espaço para um cantor e a banda (bateria). “Eles surgiram em Salvador nas décadas de 1970 e 1980 e hoje são entidades carnavalescas da Bahia, assim como de outras cidades do Brasil”, afirma Moura. Muitos blocos de rua do Rio de Janeiro, de São Paulo e de outras cidades usam trios elétricos nos desfiles. 

    Segundo Moura, o maior sucesso dos trios se deve também à associação com artistas do axé music, tipo de música brasileira que surgiu na Bahia nos anos 1980 e mistura ritmos brasileiros, como o samba e o forró, com ritmos africanos e elementos musicais do pop-rock. 

    “Foram os trios elétricos que apresentaram e alavancaram a carreira de muitas estrelas da música brasileira, como Ivete Sangalo, Daniela Mercury e Claudia Leitte”, diz Moura. 

    No carnaval de 2023, mais de 140 desfiles de trio elétrico acontecem em Salvador até o fim de fevereiro, segundo a programação oficial divulgada pela prefeitura. “Eu particularmente gosto muito do trio elétrico. Acho maravilhoso ver todo aquele pessoal pulando, é uma energia muito forte”, diz Moura que, no auge dos seus 65 anos, ainda encontra formas de pular o carnaval. “Não tenho mais o preparo físico para ficar no meio da muvuca, mas sempre assisto. É irresistível.”

    Carnaval de Olinda: os desfiles dos bonecos gigantes 

    Entre as tradições culturais do carnaval brasileiro, uma das mais características é a presença dos bonecos gigantes de Olinda nas festas da cidade pernambucana. 

    Durante o feriado, Olinda – localizada a 10 quilômetros de Recife, capital do estado – recebe milhares de foliões mascarados que seguem as agremiações guiadas por bonecos de até quatro metros de altura feitos de tecido, isopor, papel, madeira, fibra de vidro e alumínio. 

    À esquerda: No alto:

    Bonecos gigantes, tradição do carnaval pernambucano, desfilaram pelas ruas de Olinda.

    Foto de Sumaia Villela Agência Brasil
    À direita: Acima:

    Desfile do Homem da Meia-Noite no Carnaval do Olinda de 2020.

    Foto de Antonio Cruz Agência Brasil

    Segundo Karla Santos de Oliveira, mestre em antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e especialista em cultura pernambucana, o primeiro boneco que desfilou pelas ladeiras de Olinda foi o Homem da Meia-Noite, de 1932, que é retratado com paletó e cartola, e hoje guia um dos mais antigos blocos carnavalescos da cidade. 

    Para os foliões, no entanto, o Homem da Meia-Noite representa mais do que um simples boneco. “Ele é considerado uma Calunga, que é um ser místico que mistura elementos sagrados e profanos e tem vínculos com as religiões de matriz africana”, explica Oliveira. 

    O desfile do Homem da Meia-Noite acontece na noite do sábado de carnaval, conhecido como Sábado do Zé-Pereira em homenagem ao primeiro boneco gigante criado no Brasil. O Zé-Pereira surgiu em 1919, na cidade de Belém do São Francisco, em Pernambuco

    “O cortejo do Homem da Meia-Noite é um dos grandes acontecimentos do nosso carnaval e sempre arrasta uma multidão”, conta Oliveira. “Depois dele, diversos outros bonecos desfilam com suas agremiações nos demais dias de carnaval, muitas vezes representando figuras da cultura pernambucana e cidadãos ilustres de Olinda.”

    A figura dos bonecos faz parte da identidade da cidade. “É um dos elementos da construção do pertencimento das pessoas de Olinda”, diz Oliveira. “A imagem dos bonecos ganhou uma dimensão tão grande que é impossível pensar em Olinda sem eles.”

    Galo da Madrugada, o maior bloco de rua do mundo

    O carnaval de Pernambuco também conta com blocos de rua que atraem foliões de todos os cantos do Brasil. O mais famoso é o Galo da Madrugada, que desfila desde 1978 pelas ruas do bairro de São José, em Recife. Ele é o maior bloco da capital pernambucana, reunindo cerca de 2 milhões de pessoas todos os anos. Desde 1995, também é considerado o maior do mundo pelo Guinness Book

    Considerado o maior bloco carnavalesco do mundo, o Galo da Madrugada toma as ruas da cidade.

    Foto de Antonio Cruz Agência Brasil

    De acordo com Oliveira, seja no Galo ou nos demais blocos de rua, a principal característica tradicional do carnaval de Pernambuco é a grande diversidade de estilos – tanto musicais quanto de pessoas. 

    “O frevo é muito relacionado ao carnaval pernambucano, mas existem outras manifestações importantes. Temos o samba, o maracatu, o caboclinho (dança folclórica de origem indígena)”, diz ela. “Esse conjunto todo é que faz o carnaval ser interessante.”

    Outro ponto do carnaval de Recife e de Olinda destacado por Oliveira são as troças: agremiações carnavalescas que geralmente se apresentam nas ruas de manhã cedo e brincam até o meio-dia. Também conhecidas como troças de arrastão, elas são formadas com a intenção de brincar e zombar com os mais diversos temas e possuem muita criatividade e improviso. 

    “Uma troça pode ser uma galera que se juntou e resolveu levar um bloco para a rua”, conta Oliveira. “Eles saem de manhãzinha chamando as pessoas das casas e hotéis para se juntar ao bloco. É uma coisa inusitada, engraçada e divertida.”

    Em 2023, o Brasil retoma o carnaval de rua, que foi cancelado por dois anos seguidos devido à pandemia de Covid-19. Com isso, milhões de pessoas buscaram participar das festividades e matar a saudade das tradições carnavalescas. Oliveira, que é foliã de carteirinha, não via a hora de festejar novamente. “Passar dois anos sem carnaval foi muito difícil”, conta. “Quando fui à primeira troça, este ano, senti como se tivesse encontrado a peça que faltava em mim.” 

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