Turismo nuclear – um legado surpreendente do desastre de Chernobyl
Depois de um acidente nuclear em 1986, a cidade de Pripyat, na Ucrânia, foi abandonada. Hoje, deserta, a cidade recebe turistas.
Esta reportagem está na edição de outubro de 2014 da revista National Geographic Brasil.
Dizem que 5 sieverts de radiação bastam para matar uma pessoa, por isso estou curioso para ver quanto marca o meu dosímetro de fabricação russa quando nossa van entra na zona de exclusão– a vastidão deserta ainda em quarentena ao redor de Chernobyl, a usina nuclear ucraniana. Densos bosques de pinheiros e bétulas margeiam a estrada, e a nossa guia recapitula as regras: não colham cogumelos, que concentram radionuclídeos, nem se arrisquem comendo ou fumando ao ar livre para que contaminantes não entrem em seu corpo. Alguns minutos depois, passamos pelo primeiro vilarejo abandonado e paramos para admirar uma pequena manada selvagem de cavalos-de-przewalski.
Vinte e oito anos depois da explosão de um reator nuclear em Chernobyl, essa zona quase despovoada foi ocupada pela vida selvagem. Nela há bisões, javalis, alces, lobos, castores, falcões. Na cidade fantasma de Pripyat, águias fazem ninho no topo de prédios de apartamentos agora desertos. Os cavalos – uma raça rara e ameaçada – foram soltos aqui uma década depois do acidente, quando a radiação era considerada tolerável, e assim ganharam mais de 2 500 quilômetros quadrados para perambular.
Dou uma olhada no meu medidor: 0,19 microsievert por hora – uma fração de um milionésimo de 1 sievert, a medida de exposição à radiação. Nada preocupante, por enquanto. Os níveis mais altos que vi até agora em minha viagem à Ucrânia foram no voo transatlântico saído de Chicago: picos de 3,5 microsieverts por hora quando sobrevoávamos a Groenlândia a 12 000 metros de altura e raios cósmicos penetravam o avião e os passageiros. Os cientistas que estudam Chernobyl continuam divididos quanto aos efeitos de longo prazo da radiação sobre a flora e a fauna. Até agora, esses efeitos têm sido sutis. Mais ameaçadores para os animais são os caçadores ilegais, que invadem a zona armados.
Poucos minutos depois chegamos a Zalesye, um antigo vilarejo rural, e andamos por entre as casas vazias, com janelas quebradas e pintura descascada. No piso de uma casa, um retrato descartado de Lênin fita sisudo o vazio, e pendurada por um barbante em um quarto vemos uma boneca suspensa pelo pescoço, como um enforcado. Lá fora, outra boneca se senta ao lado dos restos de um carrinho de bebê quebrado. Esses são os primeiros tributos macabros que veremos durante nossa estada de dois dias na zona. Bonecas semivestidas em berços, máscaras contra gases pendendo de árvores – cenários montados por visitantes, que entraram legalmente ou não, representando um horror silencioso e perplexo.
Mais à frente na estrada, somos surpreendidos por uma habitante. De echarpe, suéter vermelho e colete, Rosalia é um dos “retornados”, como as autoridades chamam os velhos, a maioria mulheres, que insistem em passar o que lhes resta da vida no lugar que consideram sua terra. Rosalia parece feliz por ter companhia. Incentivada por nossa guia, ela nos fala sobre tempos piores. As terras ao redor de Chernobyl (ou Chornobyl, como se diz na Ucrânia) são parte dos pântanos de Pripyat na frente oriental, onde aconteceram as mais sangrentas batalhas da Segunda Guerra Mundial. Ela relembra os soldados alemães e as privações sob Stálin.
“Não dá para ver a radiação”, ela diz em ucraniano. De qualquer modo, não pretende ter filhos e vive com cinco gatos. Antes de partirmos, ela nos mostra sua horta e diz que seu maior problema agora são os escaravelhos da batateira.
Alguma coisa profundamente arraigada na alma humana nos atrai para locais que sofreram desastres inimagináveis. Pompeia, Antietam, Auschwitz, Treblinka, todos silenciosos agora. Mas no século 21 nos impressionam sobretudo as consequências da destruição nuclear. A divisão do átomo, há quase 100 anos, prometia ser o mais importante avanço humano desde a descoberta do fogo. Libertar as forças atômicas traria ao mundo uma energia quase ilimitada. Depois de Hiroshima e Nagasaki teve início um monumental esforço para fornecer essa “eletricidade barata” e livrar
o mundo da dependência dos combustíveis fósseis.
Mais de meio século depois, o enovelado símbolo do átomo, outrora emblema do progresso e do triunfo da tecnologia, tornou-se uma sinistra caveira da morte, que as pessoas associam à destruição e aos temores da Guerra Fria. Toda primavera visitantes vão a Stallion Gate, no sul do Novo México, para conhecer o Trinity Site, onde foi detonada a primeira bomba atômica. As excursões mensais ao local de testes em Nevada, no Deserto de Mojave, onde mais de mil armas nucleares foram explodidas durante a Guerra Fria, não têm mais vagas até o fim de 2014. E agora Chernobyl, local da maior catástrofe do planeta em uma usina nuclear, em 2011 foi declarada atração turística.
Turismo nuclear. A ideia parece absurda, sobretudo por ter surgido mais ou menos na época do desastre de Fukushima. E foi isso que me atraiu, além do fascínio por ver povoações e uma cidade inteira – quase 50 mil pessoas viviam em Pripyat – que foram abandonadas às pressas e deixadas ao sabor da natureza.
A 100 quilômetros de Pripyat, em Kiev, a capital da Ucrânia, semanas de protestos sangrentos levaram à expulsão do presidente e à instalação de um novo governo. O país convulsionou. Em resposta, a Rússia ocupou a Crimeia, península que se projeta no Mar Negro ao sul da Ucrânia.
É estranho, mas Chernobyl me parece ser o lugar mais seguro para estar.
Os outros cultores do passado na van vieram cada qual por sua razão. John, um rapaz de Londres, é fã de “turismo radical”. Sua próxima aventura será uma excursão à Coreia do Norte. Gavin, da Austrália, e Georg, de Viena, estão trabalhando em uma peça teatral sobre o fenômeno da quarentena. É comum pôr doentes no isolamento para proteger o resto da população. Neste caso, a terra é que é contagiosa.
De todos os meus companheiros de viagem, a mais notável é Anna, uma jovem calada de Moscou. Veste-se toda de preto, e seus longos cabelos castanhos têm uma mecha magenta. Isso me lembra a radioatividade. É a terceira vez que ela vem a Chernobyl e já se inscreveu para outra excursão ainda neste ano. “Sinto atração pela vida selvagem, pelo silêncio e por lugares abandonados que decaíram e viraram ruínas”, diz. Sua camiseta tem a estampa de um lobo. “Lobos Radioativos?”, pergunto. É o título de um documentário sobre Chernobyl que vi no programa Nature, da PBS. “Meu filme favorito”, ela diz.
Na madrugada de 26 de abril de 1986, durante um desligamento para permitir uma manutenção de rotina, o pessoal do turno da noite no reator número 4 de Chernobyl foi incumbido de fazer um teste importante nos sistemas de segurança – que deveria ter sido feito no dia anterior, quando uma equipe completa e mais experiente estava disponível.
Em 40 segundos, uma oscilação de energia provocou um grave superaquecimento do reator, deixando escaparem elementos combustíveis e provocando duas explosões. Era o começo do caos. A laje superior de betume da usina entrou em combustão, e o mesmo aconteceu com os blocos de grafite do núcleo do reator. Uma pluma de fumaça e detritos radioativos subiu à atmosfera e começou a ser levada para o norte, na direção da Bielorrússia e da Escandinávia. Depois de alguns dias a assustadora precipitação radioativa se espalhara pela maior parte da Europa.
Durante toda a noite, bombeiros e equipes de salvamento combateram os perigos imediatos: chamas, fumaça, pedaços de grafite em combustão. O que não puderam ver nem sentir – até que horas ou dias se passassem e eles adoecessem – foram os venenos invisíveis. Isótopos de césio, iodo, estrôncio, plutônio. Sofreram exposições de até 16 sieverts – não micro ou milissieverts, mas sieverts inteiros. Muito mais radiação do que um organismo pode suportar. Dos prédios de Pripyat, a 3 quilômetros dali, empregados de Chernobyl e suas famílias contemplaram da sacada o fulgor do incêndio.
Pela manhã – era o fim de semana antes do feriado de 1o de maio – eles se ocuparam em suas atividades rotineiras: compras, aulas das manhãs de sábado, piquenique no parque. Só 36 horas depois do acidente começou a evacuação. Os residentes foram instruídos a levar suprimentos para três a cinco dias e deixar seus animais de estimação em casa. Isso indicava que, depois de uma rápida limpeza, retornariam. Não foi assim. Equipes de demolição começaram depressa a derrubar os prédios e enterrar a camada superficial do solo. Matilhas de cães foram fuziladas imediatamente. Quase 200 vilarejos foram evacuados.
O número dos que morreram de imediato foi surpreendentemente pequeno. Três trabalhadores perderam a vida na explosão e 28, dentro de um ano após o envenenamento por radiação. A maioria dos efeitos demorou para se fazer sentir. Até agora, cerca de 6 mil pessoas que foram expostas na infância a leite e outros alimentos irradiados têm câncer na tireoide. Com base nos dados de Hiroshima e Nagasaki, a taxa de mortalidade global por câncer pode elevar-se alguns pontos porcentuais entre os
600 mil trabalhadores e residentes que receberam as doses mais altas, com a possível consequência de milhares de mortes prematuras.
Depois do acidente, uma estrutura de concreto e aço – o chamado “sarcófago” – foi erguida às pressas para conter o reator danificado. O sarcófago começou a desmoronar e vazar, e teve início a obra do que, com otimismo, se chamou de Novo Confinamento Seguro: uma arca de 32 000 toneladas, construída sobre trilhos para que possa deslizar até ser posta no lugar assim que estiver pronta. Estimativa mais recente: 2017. Enquanto isso, a limpeza prossegue. Segundo planos do governo ucraniano, os reatores serão desmontados e o local estará limpo até 2065. Tudo nesse lugar lembra ficção científica. Será que ainda existirá uma Ucrânia?
O que ficou mais gravado em minha memória das horas que passamos em Pripyat são o som e a sensação de andar sobre vidro quebrado, nas dilapidadas enfermarias com camas e berços vazios e pelas salas de cirurgia juncadas de detritos do hospital. Nos corredores da escola, entre montes de livros de capas destroçadas e pendurado acima da porta de uma velha sala de ciências, um cartaz educativo ilustra o espectro da radiação eletromagnética, do calor para a luz visível, os raios X e os raios gama – aqueles que quebram as ligações moleculares e provocam mutação no DNA. Como isso deve ter parecido abstrato para os alunos antes de começar a evacuação!
Em outra sala, máscaras contra gases pendem do teto ou amontoam-se no chão. Provavelmente foram deixadas ali por stalkers (rastejadores), diz nossa guia – intrusos que entram furtivamente na zona. Na primeira vez vêm para rapinar, depois para beber a água do Rio Pripyat e nadar na Baía Pripyat, desafiando a radiação e os guardas a pegá-los. Um stalker que encontro depois em Kiev diz que já esteve em Chernobyl 100 vezes. “Eu imaginava que a zona fosse um lugar imenso todo queimado, vazio, horrível”, ele me conta. Em vez disso, encontrou florestas e rios, toda essa beleza contaminada.
Nosso grupo de excursionistas caminha pela beira de uma piscina pública ressequida, com seu cronômetro de mergulho e velocidade ainda intacto, e pelo piso apodrecido de um ginásio de esportes. Prédio após prédio, tudo se decompõe. Visitamos as ruínas do Palácio da Cultura e o imaginamos fervilhante de música e risadas, depois vemos o pequeno parque de diversões com sua roda-gigante amarela. Subimos 16 lances de escadas – moendo mais vidro sob os sapatos – até o topo de um dos prédios de apartamentos mais altos. Os corrimões de metal foram arrancados para ser reaproveitados. Portas arrombadas abrem-se para poços de elevador escancarados. Fico pensando como uma excursão desse tipo seria improvável nos Estados Unidos. É estimulante, devo dizer. Nem capacete de proteção estamos usando.
Do teto do prédio, contemplamos o que já foi grandioso, avenidas e parques ajardinados. Tudo está tomado pelo mato agora. Pripyat, outrora aclamada como uma cidade soviética moderna, um paraíso dos trabalhadores, está sendo lentamente reabsorvida pela terra.
Passamos a noite na cidade de Chernobyl. Oito séculos mais antiga do que Pripyat, Chernobyl agora lembra uma base militar da Guerra Fria. Meu quarto de hotel, com acomodações espartanas, parece artigo de museu dos sisudos tempos soviéticos. Mais tarde, um dos guias me diz que a mobília antiga foi na verdade recuperada de Pripyat. Não consigo confirmar oficialmente essa afirmação. Os níveis de radiação em meu quarto não são maiores do que os que medi na minha casa antes da viagem.
Em um game pós-apocalíptico chamado S.T.A.L.K.E.R.: Shadow of Chernobyl, visitantes virtuais da terra encantada radioativa podem identificar as áreas de maior radiação pelo brilho branco azulado. Conforme você se desloca pela zona de exclusão, o medidor de radiação de seu avatar aumenta constantemente. Você pode reduzir sua acumulação e evitar contrair a doença da radiação bebendo vodca russa virtual.
Antes fosse tão fácil! Na manhã seguinte, estamos ficando quase descuidados com o risco da exposição. Debaixo dos restos de uma torre de resfriamento, nossa guia apressa-nos e exclama: “Logo ali tem um local de alta radiação! Vamos ver!” Fala tão despreocupada que parece estar mostrando um novo item num museu de cera. Ela remove uma tábua que cobre o ponto de alta radiação. Empunhamos nossos medidores – que bipam freneticamente –, em uma competição amigável para ver quem detecta o maior nível. Meu aparelho registra 112 microssieverts por hora – 30 vezes mais do que eu tinha medido no avião. Permanecemos ali por apenas um minuto.
O ponto de maior radiação que medimos nesse dia foi na lâmina de uma escavadeira enferrujada usada para enterrar a camada superior de terra radioativa: 186 microssieverts por hora – alta demais para ficarmos ali, mas nada em comparação com o que os pobres bombeiros e demolidores receberam trabalhando.
Na viagem de volta a Kiev, nossa guia calcula a contagem acumulada:
10 microssieverts durante toda a visita de fim de semana. Não é um número que me preocupa. Provavelmente recebi mais do que isso no voo de volta para casa.