Populações indígenas defendem a biodiversidade do planeta, mas estão em perigo

Representando menos de 5% da população mundial, povos indígenas protegem 80% da biodiversidade global.

Por Gleb Raygorodetsky
Publicado 28 de nov. de 2018, 21:30 BRST, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Bromélias, samambaias e orquídeas cobrem uma mafumeira no Parque Nacional Yasuní, no Equador. A região é ...
Bromélias, samambaias e orquídeas cobrem uma mafumeira no Parque Nacional Yasuní, no Equador. A região é lar de uma incrível biodiversidade, muita da qual é protegida por povos indígenas.
Foto de Steve Winter, Nat Geo Image Collection

Empurrada por um ruidoso motor de popa, uma velha canoa nos conduz pelo Rio Conambo, um dos afluentes do Rio Amazonas, nas margens da região leste do Equador. Passamos o dia no rio, às vezes torrando ao sol, e outras sendo encharcados por grandes nuvens chuvosas.

Somos guiados por um pandemônio de berros de araracangas e araras azuis, seguidos por bandos de periquitos tagarelas, monitorados por jacus sorrateiros e observados pelo ocasional tucano. Um gavião-real sobrevoa nossa embarcação em busca de seu almoço, talvez um dos micos ou bugios que escutamos bradar e saltitar na copa das árvores.

Para os povos indígenas sáparas, do Equador, poder mover-se por seu território tradicional é essencial para sua adaptação às mudanças climáticas.
Foto de Gleb Raygorodetsky

De vez em quando, nosso comandante encosta o barco nas margens sombreadas para capturar um barbudo, um peixe de 30 centímetros, para o jantar. Sempre que consegue capturá-los, com suas barbelas agitadas como minhocas gigantes, ele habilmente pressiona o peixe contra a lateral do barco e corta suas afiadas nadadeiras dorsais e peitorais para evitar ser atingido por suas pontas afiadas.

À tarde, desembarcamos para explorar uma grande lagoa marginal, uma área que se torna isolada do canal principal do rio. Ao examinarmos as pegadas de uma anta deixadas nas margens que parecem as de um pássaro, uma grande raia de água doce nos ultrapassa pelas águas lamacentas. De volta ao barco, nosso guia compartilha conosco uma fava de 30 centímetros de comprimento e da grossura de um dedo de guaba, chamada de “sorvete de feijão” devido ao doce sabor de baunilha de sua polpa branca com aparência de algodão doce, que envolve suas grandes sementes pretas. Deliciando-me com a sua doce polpa, observo uma enorme borboleta azul cintilar por entre as profundas sombras de jade da floresta tropical.

Estamos em um dos lugares de maior biodiversidade da Terra, a floresta tropical da região do Napo, no nordeste do Equador, famosa por seu Parque Nacional Yasuní. De acordo com Kelly Swing, diretora da Estação de Biodiversidade Tiputini, há aproximadamente 600 espécies de aves, 200 espécies de mamíferos, 100 espécies de peixes e 150 espécies de sapos no parque. “Um hectare da floresta do Yasuní pode conter até 600 espécies de árvores e mais de 100 mil espécies de insetos” diz Swing. “A diversidade microbiana é espantosa”.

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    Periquitos-de-asa-azul agrupam-se em um lago para alimentarem-se de argila no Parque Nacional Yasuní.
    Foto de Tim Lamán, Nat Geo Image Collection

    Estima-se que um milhão de espécies, muitas ainda não descobertas, vivam na floresta do Yasuní, fazendo dela um ícone da biodiversidade. Para comparação, apenas 1,5 milhão das espécies que habitam nosso planeta foram documentadas pela ciência.

    Mas não estamos no Yasuní. Estamos a aproximadamente 130 quilômetros de seus limites, no território da tradicional população dos sáparas ou, como chamam a si mesmos, filhos de Aritiaku, o bugio vermelho. “Tanto o parque Yasuní quanto o território dos sáparas estão localizados no cruzamento entre as terras altas andinas e as planícies amazônicas, e esta zona de transição cria uma abundância estonteante de diferentes formas de vida”, explica Swing.

    “As populações indígenas da Amazônia provaram ser os melhores guardiões desses territórios tradicionais”, acrescenta Swing. “O fato de os ecossistemas da Amazônia serem tão ricos quanto são hoje é prova do sucesso obtido por essas culturas em viver em equilíbrio com o meio ambiente”.

    Por volta de 200 sáparas vivem no Equador, com aproximadamente a mesma quantidade vivendo do outro lado da fronteira, no Peru. Juntos, eles são tudo o que restou de uma próspera nação de aproximadamente 20 a 30 mil pessoas composta por mais de 200 tribos pacíficas de nomes diferentes, mas que compartilhavam um idioma em comum. Após a conquista espanhola no século 16, os sáparas, assim como outros grupos indígenas da região, foram dizimados por epidemias de sarampo, catapora e febre amarela, entre outros “presentes” europeus.

    Considerados extintos em certo momento, os sáparas foram reconhecidos oficialmente pelo governo do Equador na década de 1990. Tal reconhecimento incluiu a demarcação de mais de 320 mil hectares da sagrada Naku, ou floresta tropical, como Área de Demarcação Tradicional dos sáparas, equivalente a apenas 8% de sua extensão histórica. Em 2001, a UNESCO reconheceu o quase extinto idioma dos sáparas como uma “Herança Cultural Imaterial da Humanidade”.

    No entanto, a demarcação pouco fez para reconhecer o papel dos sáparas na conservação da biodiversidade e para reduzir as crescentes ameaças externas ao seu território ancestral, de acordo com Kevin Koeing, diretor de clima e energia da Amazon Watch, uma ONG ambiental que trabalha com populações indígenas para proteger a Amazônia. “O governo do Equador continua vendo essas populações como obstáculos para o crescimento econômico” diz Koeing.

    O céu brilha sobre o Yasuní devido à queima de gás em poços de petróleo. Este tipo de desenvolvimento em áreas de alta biodiversidade é bastante controverso, e muitas vezes também causa impactos às populações locais.
    Foto de Tim Lamán, Nat Geo Image Collection

    “Ele está pressionando a exploração do petróleo na região ao leiloar blocos da floresta dos sáparas considerados regiões selvagens subpovoadas e subutilizadas a serem domadas. Está na hora de mudar esta narrativa dominante e reconhecer o papel exercido pelos sáparas e por outras populações indígenas na atividade mais crítica a ser realizada contra a ameaça iminente da perda de biodiversidade e mudanças climáticas, e isso é cuidar de sua sagrada Naku”.

    A história dos sáparas não é inédita. Em todo o mundo, populações indígenas foram expulsas de seus territórios tradicionais em nome do ecoturismo, como os maasai na Tanzânia, e da conservação, como os Sengwer e os Ogiek no Quênia. Populações indígenas tiveram de abandonar seu meios de sustento e terras ancestrais devido a grandes projetos de desenvolvimento, como a barragem Gibe III, no Rio Omo, na Etiópia, e, mais recentemente, se tornaram refugiados climáticos, como a tribo de Louisiana Biloxi-Chitimacha-Choctaw ou a comunidade baleeira Inupiaq, de Kivalina.

    Contudo com a expansão de nosso entendimento coletivo sobre o estado de risco de nosso planeta, com a 6ª extinção em massa, crescentes mudanças climáticas e a superação de fronteiras planetárias, os debates e ações globais estão migrando na direção de um maior entendimento do papel das populações indígenas, comunidades locais e de seus territórios tradicionais na conservação da biodiversidade e superação das mudanças climáticas. Pesquisas recentes demonstram que, embora os 370 milhões de povoados indígenas representem menos de 5% da população total mundial, eles controlam ou têm posse de mais de 25% da superfície terrestre, protegendo aproximadamente 80% da biodiversidade global.

    A tempestade perfeita

    A evolução do pensamento sobre o papel das populações indígenas como gestores da Terra é o culminar de diversas tendências. Entre elas, o aumento na sofisticação de ferramentas espaciais analíticas, como a Plataforma Global de Terras e Comunidades Indígenas ou o LandMark, o banco de dados da Protected Planet, e o Registro de Áreas e Comunidades Indígenas Conservadas, permitiu uma melhor documentação da extensão, assim como da biodiversidade e dos valores de armazenamento de carbono das terras indígenas.

    Os direitos dos povos indígenas de autodeterminação, bem-estar, culturas tradicionais e ambiente saudável, conforme articulados na Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas da ONU, também vêm sendo cada vez mais reconhecidos por governos nacionais e pela comunidade conservacionista. Organizações filantrópicas e de desenvolvimento também vêm apoiando cada vez mais projetos pela conservação dos indígenas, em parte porque são quase sempre vantajosos tanto para as pessoas quanto para o planeta.

    Na Austrália e na Namíbia, países que apresentam mecanismos legais para o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e das comunidades locais de gerirem os recursos naturais, a contribuição desses grupos para a conservação é considerada equivalente a outros tipos de áreas protegidas.

    Exemplos de sucesso em todo o mundo

    Patrick O’Leary, diretor executivo do Programa Outback to Oceans, da ONG Pew Charitable Trusts, enalteceu a recente decisão do governo australiano de estender seu apoio às Áreas de Proteção Indígenas (IPAs) e dos programas Indigenous Rangers, em 2023 e 2021, que permitirá aos aborígenes e aos ilhéus do Estreito de Torres continuarem a gerir as IPAs já existentes, além de criar novas áreas protegidas. Instituído em 1997, o Programa IPA contribuiu significativamente para os esforços de proteção e conservação da biodiversidade australiana, observa O’Leary. Atualmente, 75 IPAs abrangem aproximadamente 68 milhões de hectares, o que representa mais de 45% do Sistema de Reservas Nacionais da Austrália. Além disso, as IPAs australianas oferecem muitos benefícios culturais, sociais, de saúde e econômicos para as populações locais, diz O’Leary.

    Na Namíbia, o reconhecimento da gestão de recursos naturais baseada em comunidade sob a Emenda ao Ato pela Conservação da Natureza de 1996 resultou no estabelecimento de 82 áreas de conservação e de 32 florestas comunitárias. Hoje, áreas conservadas abrangem por volta de 20% da superfície do país. Algumas populações de animais foram recuperadas, outras estão em recuperação, enquanto as condições de vida das populações locais continuam a melhorar.

    No Canadá, o recente reconhecimento federal da Área de Proteção de Edéhzhíe, no noroeste do país, e o suporte ao Programa de Custódia Indígena, no qual as comunidades indígenas têm o poder de gerir seus territórios conforme suas leis tradicionais, são passos recentes em direção ao reconhecimento da intendência indígena. “Esses importantes desenvolvimentos fazem avançar os objetivos de conservação da biodiversidade nacional” diz Eli Enns, codiretor do Círculo de Especialistas Indígenas do Canadá. “Isso está baseado em quase três décadas de esforços liderados por indígenas visando assegurar seus direitos protegidos pela constituição de cuidar de seus territórios tradicionais, começando com o reconhecimento dos parques de Gwaii Haanas e Tla-o-qui-aht na década de 1980.”

    Na Europa, esta mudança levou ao reconhecimento da floresta Havukkavaara, na Carélia do Norte, Finlândia. Para Tero Mustonen, diretor do grupo ativista Snowchange Cooperative, Havukkavaara é um exemplo de “um novo estilo de conservação baseado em comunidade que inclui cultura, história e pessoas, visando ajudar a sustentar estilos de vida tradicionais e a conservar os últimos vestígios das antigas florestas ao sul do Círculo Polar Ártico, na Finlândia”.

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