Mudanças climáticas ameaçam ilha do Ártico — será que a comunidade local resistirá?
Do desaparecimento do gelo à redução no número de morsas, moradores de Little Diomede, no Alasca, presenciam a transformação de sua terra a um ritmo impressionante.
LITTLE DIOMEDE, ALASCA A casa de Ed Soolook fica em uma ilha localizada no ponto mais distante dos trópicos que se pode imaginar. No primeiro degrau da escada da frente, é possível ver peles de urso polar e, a alguns metros de distância, as águas geladas do Ártico banham a costa. As temperaturas aqui normalmente atingem 40ºC negativos no inverno. No verão, a média é de cerca de 10ºC. Nesse mundo, um grau a mais ou a menos faz diferença e, na opinião de Soolook, o lento aumento das temperaturas chega a ser cômico se não fosse trágico.
"A gente nunca sentia calor de verdade", disse ele, lembrando-se do último verão quando as temperaturas chegaram a 21ºC. "Nossa, a gente realmente foi afetado pelo calor... daqui a pouco vamos começar a plantar palmeiras".
Little Diomede, a terra natal de Soolook, é uma bela ilha—com menos de sete quilômetros quadrados—situada no meio do estreito de Bering, no noroeste do Alasca. Sua irmã maior, a ilha Big Diomede—cujo tamanho é cerca de quatro vezes maior—está localizada a um pouco mais de três quilômetros a oeste. Juntas, essas ilhas irmãs já testemunharam mais mudanças nos últimos cinquenta anos do que algumas comunidades já testemunharam durante séculos.
Historicamente, as comunidades Iñupiat das ilhas têm uma forte relação. No inverno, a água congela, formando uma ponte de gelo (que pode ter sido utilizada pelos primeiros humanos que chegaram à América do Norte) e os moradores podiam ir de uma ilha para a outra constantemente.
"O meu avô cruzava a ponte entre as ilhas a todo momento", disse Frances Ozenna, coordenadora da tribo em Little Diomede. Os moradores de Little e Big Diomede constituíam novas famílias, compartilhavam os mesmos costumes e tradições, e suas culturas se misturavam.
Até mesmo as diferenças políticas eram amplamente desconsideradas. Little Diomede faz parte do Alasca e Big Diomede faz parte da Rússia desde 1867. Embora haja uma fronteira e a linha internacional de data que passa entre os dois territórios (gerando uma diferença de 23 horas no fuso horário), elas são pouco perceptíveis. Porém, de acordo com Ozenna, "tudo isso mudou com a Guerra Fria".
Em 1948, conforme o mundo pós Segunda Guerra Mundial dava espaço a novas tensões, o governo russo decidiu evacuar Big Diomede forçosamente. A população nativa foi obrigada a se mudar para o continente e a ilha foi transformada em uma base militar. A divisão ficou conhecida como “Cortina de Gelo”.
"Do outro lado da fronteira, é um outro país, outro continente, um outro dia", contou Robert Soolook, irmão de Ed e presidente da tribo de Little Diomede. Robert estava no escritório da cidade onde, através da janela, conseguia ver Big Diomede perfeitamente.
A Guerra Fria separou não apenas os dois países e as duas ilhas, como também amigos e familiares. A comunicação se tornou esparsa, as conexões desapareceram e as visitas ficaram extremamente raras.
De acordo com Soolook, "acredito que a última vez que eles apareceram aqui foi em 1991".
Em Little Diomede, há tempos, os quase cem residentes têm esperança de que o cenário político volte a ser como antes. E, no último verão, após anos de preparação, aquelas rodas finalmente foram postas em movimento. O plano incluía a viajem para Little Diomede de cinco russos que moravam em Big Diomede. Em vez do percurso de três quilômetros, entretanto, eles precisariam pegar o caminho mais longo—um voo fretado da Rússia a Nome e então à cidade costeira de Wales, no Alasca, de avião. De lá, fariam um trajeto de helicóptero até a ilha, que, além de envolver travessias traiçoeiras sob o mar, constitui a única ligação real entre Little Diomede e o continente.
Porém, como normalmente acontece aqui, a mãe natureza tinha outros planos e o mau tempo ameaçou o encontro. "Nunca há uma época certa para vir para cá", disse Robert Soolook, explicando que a instabilidade envolvida na chegada à ilha já ensinou muitas pessoas a controlarem suas emoções.
Essa é a principal característica de Little Diomede—a vida é altamente dependente do clima. E isso tornou os impactos das mudanças climáticas ainda mais agudos e imediatos.
Uma ilha em constante aquecimento
As temperaturas na região ártica estão subindo duas vezes mais rápido comparado a latitudes mais baixas, e Little Diomede não foge dessa regra.
"Ao longo dos últimos anos, percebemos a influência do aquecimento global aqui e isso está nos afetando", disse Robert Soolook. Ed complementa dizendo que parte das mudanças estão se tornando permanentes. "O chão, o permafrost está derretendo e está descendo. Nós escorregamos cerca de dois a seis centímetros ao ano".
O derretimento do permafrost causou estragos em partes do Alasca—rachando fundações, estradas, encanamentos e até mesmo árvores por todo o estado. Mas, para Little Diomede, o maior problema está fora da costa, no gelo. Ou melhor, na falta dele.
"As mudanças climáticas estão realmente acontecendo", disse Orville Ahkinga, morador experiente da tribo Diomede, observando que o gelo chega mais tarde e parte mais cedo do que jamais visto (no último mês de fevereiro, uma onda de calor no Ártico resultou em mais um degelo recorde no estreito de Bering). E Robert Soolook observa que até mesmo o gelo existente não é tão espesso quanto costumava ser. "Ele fica mais fino a cada ano".
Uma das consequências dessas mudanças é que a ilha deixou de possuir uma pista de gelo no inverno, que fornecia acesso muito mais confiável e frequente ao continente do que voos ocasionais de helicóptero. Tempestades mais devastadoras também podem acontecer, diz Brenda Ekwurzel, diretora de ciência do clima da União dos Cientistas Preocupados. "As comunidades estão mais expostas", afirmou ela, explicando que o gelo ajuda a amenizar climas e mares turbulentos. À medida que ele desaparece, as proteções vão junto, comenta ela. "As tempestades que antes passavam sobre uma região congelada, agora vão atingir outros locais diretamente."
A nossa visita aconteceu no verão, quando o clima em Little Diomede é (relativamente) calmo. Ventos constantes e temperaturas próximas dos quatro graus Celsius são o melhor que podemos esperar de lá. E, no meio do verão, o dia no Ártico vai muito além da meia-noite. Para uma comunidade que depende da caça e da busca por alimentos, isso significa pouco descanso.
Ozenna trabalha com Robert Soolook nos escritórios da tribo durante o dia e, então, sai para colher vegetais frescos no lado remoto da ilha até tarde da noite. E ela não é a única. Alguns moradores exploram todos os cantos da ilha em busca de ovos de airo. Outros percorrem a encosta para caçar alcas-de-crista com redes feitas à mão. O maior dos prêmios, entretanto, é a morsa.
As morsas nadam (ou boiam, se estiverem dormindo) em bando em Little Diomede. Elas passam em grupos de mais de dez animais, procurando por pedras que sirvam de apoio para descansarem. Quando as primeiras morsas vêm, toda a comunidade se reúne e, em conjunto, tenta atraí-las em direção à praia. (Comunidades indígenas no Alasca têm autorização para caçar morsas para consumo próprio; tradicionalmente, todas as partes do animal são utilizadas—incluindo os tendões). Grunhidos altos produzem efeito e as morsas se movimentam em direção à plataforma de concreto no centro do vilarejo, onde o helicóptero pousa (os moradores locais chamam a plataforma de heliopad).
Quando os animais se aproximam, os homens posicionam as armas e miram. Quando eles atingem uma morsa, utilizam ganchos presos a longas cordas para laçar o animal—que pode pesar mais de 9 toneladas—e levá-lo à praia. Ed Soolook fica na linha de frente. Ao olhar através da mira da arma, ele atira primeiro. Ele erra—o bando se espalha.
Esse ciclo de subsistência se repete em Little Diomede, normalmente com um dia se diluindo no outro. Contudo após semanas e meses, as mudanças aqui não passam despercebidas, dizem os moradores. As morsas vêm mais esporadicamente do que antes, a temporada de caça às focas é mais curta e os ursos polares são relativamente escassos. Como um todo—o ecossistema—e, consequentemente, a vida—lá, e ao redor do Ártico, parece ter assumido uma forma fluída.
"Muitas das comunidades [do Ártico] dependem cultural, nutricional e economicamente de um sistema de subsistência realmente sólido e estável", disse Todd Brinkman, ecologista da Universidade de Alaska Fairbanks. “[Contudo] os sinais tradicionais estão desaparecendo. O ambiente está se tornando muito mais imprevisível".
Isso significa "que o conhecimento de décadas atrás sobre a época e a forma como as estações mudam não pode ser mais utilizado com confiança", disse Ekwurzel. E isso pode prejudicar bastante as comunidades tradicionais.
Um encontro emocionante
Em 29 de julho, acontece um descanso, muito bem-vindo, na rotina quando os russos chegam de helicóptero—com cinco dias de atraso—para se juntarem aos seus parentes. Enfrentando o vento das hélices, os Soolooks abraçam seus primos e dizem coisas inaudíveis. Os próximos cinco dias serão preenchidos por uma cacofonia de músicas e refeições. Ensopados de morsa fermentada, focas, bolos—tudo o que têm direito. Duas vezes, a cidade se reúne no ginásio da escola para danças tradicionais, um costume que sobreviveu à separação.
Ahkinga, o mais velho da tribo, atualmente mora em Nome, mas voltou porque não queria perder as festividades históricas. "A cada vez que visitamos, ficamos um pouco mais fortes", disse ele. "Os nativos ficam um pouco mais fortes".
Contudo também há sinais de que, de forma geral, as lacunas na tradição estejam, na verdade, aumentando e não diminuindo.
Crescer em Little Diomede nos dias de hoje ainda provavelmente envolve secar peles de animais ou ir pescar no gelo. E a "vigia do urso polar" para ajudar a manter a comunidade segura continua acontecendo no inverno todos os anos. Além disso, atualmente, viver a juventude aqui também envolve videogames, computadores e DVDs. Todas as tardes, a escola liga sua rede de Wi-Fi por algumas horas e as crianças da cidade se reúnem no deque localizado na entrada. Protegidos por cobertores, eles captam o único sinal no local.
Os desafios só aumentam quando as crianças ficam mais velhas. Além do escasso acesso à Internet, viver aqui também significa poucas oportunidades de emprego e alto custo de vida. Um sabão líquido para roupas custa US$ 44,15 na loja da ilha. Em uma outra prateleira, há um saco de um pouco mais de dois quilos de sal rosa do Himalaia, que um antigo gerente da loja havia comprado aparentemente em preparação para o apocalipse. O produto está lá há anos, pois ninguém está disposto a pagar os US$32,59 da etiqueta. Little Diomede, como muitas comunidades da América do Norte moderna, também luta contra o alcoolismo e o abuso sexual.
Porém, as mudanças climáticas apresentam um desafio inédito e desconhecido, que talvez seja o mais grave. "Muitas das comunidades rurais sofrem mudanças há milhares de anos", disse Brinkman da Universidade do Alasca. "O que não sabemos é se algumas dessas mudanças estão pressionando essas comunidades além do que elas são capazes de aguentar".
O remanejamento já foi uma realidade que outras comunidades do Alasca precisaram enfrentar. E Robert Soolook diz que Little Diomede pode, em algum momento, precisar considerar a mesma questão. "Tenho certeza que eles votariam [a favor] de se mudarem", disse Soolook, sobre a possível reação da geração mais nova a uma mudança mais radical no clima. "Mas como todos os animais, ou qualquer ser humano que habita a Terra, [nós] nos adaptamos".