Lama da barragem de Brumadinho já matou mais da metade do rio Paraopeba

Alta concentração de metais pesados, escassez de oxigênio e turbidez elevada dizimaram vida aquática em pelo menos 300 km de extensão de um dos principais afluentes do rio São Francisco, aponta SOS Mata Atlântica.

Por Kevin Damasio
Publicado 27 de fev. de 2019, 16:52 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Marta Marcondes, professora da Universidade de São Caetano do Sul, recolhe amostra de água no rio ...
Marta Marcondes, professora da Universidade de São Caetano do Sul, recolhe amostra de água no rio Paraopeba. Mais da metade da extensão total do afluente do São Francisco está morto, aponta relatório da SOS Mata Atlântica.
Foto de Victor Moriyama

Ao chegar ao Córrego do Feijão, na manhã de 29 de janeiro, a equipe especializada em água da SOS Mata Atlântica deparou-se com um cenário desolador. Situada na zona rural de Brumadinho (MG), a região envolvida por árvores nativas da Mata Atlântica fora devastada. O início do estreito curso d’água que as cortavam já não era mais visível. O rompimento da barragem 1 da Mina Córrego do Feijão, da Vale, em 25 de janeiro, liberou 14 toneladas de rejeitos de minério de ferro, que invadiram o ribeirão Ferro-Carvão e percorreram 9 km até alcançar o rio Paraopeba. Um dos principais afluentes do São Francisco, o rio serpenteia por 510 km desde a nascente no município de Cristiano Otoni até sua foz, na Usina Hidrelétrica Três Marias.

Após mapear a bacia hidrográfica e definir pontos estratégicos, Malu Ribeiro, Marcelo Naufal e Tiago Felix, da SOS Mata Atlântica, e Marta Marcondes, professora do Laboratório de Poluição Hídrica da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), partiram em uma expedição de 10 dias pelos 305 km do rio Paraopeba atingidos pela lama.

Eles passaram por 21 municípios ribeirinhos de Minas Gerais, do Córrego do Feijão, em Brumadinho, em 31 de janeiro, até o Reservatório de Retiro Baixo, em Felixlândia, em 9 de fevereiro. Dos 22 pontos analisados, 10 foram considerados ruins e 12 péssimos, conforme a classificação do Índice de Qualidade da Água (IQA).

Equipe do SOS Mata Atlântica faz testes em amostras de água do rio Paraopeba.
Foto de Victor Moriyama

O relatório final do programa da fundação, intitulado “Observando os Rios”, foi apresentado na manhã desta quarta-feira (27/02) na Câmara dos Deputados, durante evento que marcou o início das atividades da Frente Parlamentar Ambientalista, em Brasília.

Todas as áreas monitoradas apresentaram condições de água impróprias para consumo humano, irrigação de plantações e dessedentação de animais, devido às concentrações de metais pesados bem acima do nível permitido por lei (cobre, manganês, ferro e cromo). O governo de Minas Gerais proibiu o uso da água do Paraopeba para esses fins. Já a elevada turbidez, a escassez de oxigênio e as altas temperaturas da água impossibilitam a vida aquática ao longo da extensão percorrida, segundo a SOS Mata Atlântica.

Brumadinho está inserido na área de Mata Atlântica estabelecida por decreto em 21 de novembro de 2008, a partir da Lei 11.428/2006. O município abriga 15.490 hectares de matas bem preservadas – o equivalente a 830 campos de futebol, ou 24,22% do bioma remanescente na região, segundo o Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica. O MapBiomas identifica 7.058 hectares de vegetação natural, dos quais 112 hectares foram devastados pelo rompimento da barragem da Vale.

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    Para Malu Ribeiro, especialista em recursos hídricos da SOS Mata Atlântica, a recuperação da vegetação ciliar é fundamental na regeneração do rio Paraopeba.
    Foto de Victor Moriyama

    Medidas de contenção não funcionaram

    O relatório também aponta que as membranas de contenção – instaladas pela Vale em Pará de Minas na tentativa de parar os rejeitos e permitir a captação de água – não surtiram efeito. A medição na parte anterior à estrutura apontou 683,8 UNT (Unidade Nefelométrica de Turbidez). Já 500 metros após a barragem, o valor foi de 366 UNT. O limite máximo estabelecido por lei é de 100 UNT.

    Já as barragens da usina termelétrica de Ibirité e da Usina Hidrelétrica de Retiro Baixo, em Felixlândia, demonstraram maior potencial de contenção da lama de mineração, por conta da baixa vazão do rio. Entretanto, as chuvas constantes na região em fevereiro resultaram na passagem de rejeitos finos.

    Malu Ribeiro, especialista em recursos hídricos da SOS Mata Atlântica, ressalta que outros contaminantes físicos, químicos e biológicos não estão sendo retidos pelas membranas. “Este material em decomposição, formado por corpos, animais, peixes e plantas, gera bactérias e agrava a condição ambiental do rio”, ela me diz, enquanto observa o caudaloso rio Paraopeba do alto de um barranco, em Caetanópolis.

    “Esses rejeitos finos passam pelas barragens e vêm matando o rio”, continua Malu. “A luz do sol teria que entrar na água em um raio linear. Mas, quando encontra os fragmentos de sedimento, ela se espalha. Então, a fauna não realiza a fotossíntese, o que diminui o oxigênio e acaba com a vida aquática. Não tem vida nenhuma.”

    Os maiores níveis de turbidez da água foram detectados em 2 de fevereiro, na altura do Instituto Inhotim (9.680 UNT); no ponto de Mario Campos (6.890 UNT); em São Joaquim de Bicas, próximo a Aldeia Pataxó hã-hã-hãe (6.170 UNT) e na Usina de Ibirité (5.510 UNT). 

    A quantidade de bactérias no rio também está bem acima do limite máximo permitido, que é de 100 unidades formadoras de colônia (UFC). O número mais baixo foi identificado na Ilha do Cabo Elói, em Caetanópolis (8.000 UFC). Os mais altos, por sua vez, encontram-se em São Joaquim de Bicas (550.000 UFC), Pará de Minas (235.000 UFC) e no reservatório da Hidrelétrica de Retiro Baixo (222.000 UFC).

    Os resultados do IQA foram obtidos a partir de 16 parâmetros físicos, químicos e biológicos encontrados nas amostras de água coletadas, conforme a legislação vigente. Nas medições em campo, entre os aspectos analisados estão as temperaturas da água e do ambiente, a turbidez, o oxigênio dissolvido (OD), a demanda bioquímica de oxigênio (DBO), potencial hidrogeniônico (pH) e níveis de fosfato e nitrato.

    O Paraopeba é um rio de classe 2 segundo a Resolução Conama 357/2005, utilizado para abastecimento de água para consumo humano e para irrigação. Para tais fins, é necessário que haja ao menos 5 mg/L de oxigênio dissolvido e 5 mg/L de DBO, e no máximo 10 ppm (partes por milhão) de nitrato, 0,025 ppm de fosfato e 100 UNT de turbidez.

    A National Geographic acompanhou a equipe da SOS Mata Atlântica nas coletas em Caetanópolis, logo após Pará de Minas. No trecho de rio sob a ponte JK, o 15º ponto de medição, a qualidade da água estava péssima, com 2.828 UNT e 1,55 mg/L de OD.

    No fim da tarde, o tempo ensolarado dera lugar a uma forte chuva enquanto a equipe da ONG realizava a coleta no ponto seguinte, situado nas margens de uma propriedade privada chamada Ilha do Cabo Elói, a 30 km de distância da coleta anterior.

    Com a tempestade, a água amarronzada ganhara mais velocidade e, em sua superfície, desciam também espumas de material em decomposição e rejeitos de minério que estavam parados na barragem, observa Malu.

    A qualidade da água naquele ponto estava ruim, com turbidez em 290 UNT e 3,56 mg/L de OD. Segundo a equipe, a temperatura de 29,1ºC (a segunda maior identificada entre os 22 pontos avaliados) inviabilizava a vida aquática naquele trecho.

    “Quando há rejeitos de minério, carvão ou outro elemento químico na água, pode ocorrer uma reação química”, explica Tiago Felix, biólogo da SOS Mata Atlântica. “Então, em reações dessa amplitude percebemos temperaturas mais elevadas.”

    Já nas análises em laboratório foram avaliados indicadores microbiológicos, condutividade elétrica do meio aquático, total de sólidos dissolvidos, dureza e níveis cobre, alumínio, magnésio, manganês e ferro.

    Os testes apontaram metais pesados “nos sedimentos, no material particulado em suspensão e na água” em todos os pontos de coleta. O excesso de ferro, misturado ao magnésio, é visível na coloração avermelhada do rio. O limite permitido é de 0,3 mg/L, mas as amostras indicaram quantidades que vão de 4,5 a 7,2 mg/L.

    Perigos para a saúde

    O consumo de pouca quantidade de água com mais de 0,009 mg/L de cobre provoca ao ser humano náuseas e vômitos. Em maior volume, pode lesionar os rins, inibir a produção de urina e causar anemia decorrente da destruição de glóbulos vermelhos. A SOS Mata Atlântica identificou mais de 2,5 mg/L de cobre em 20 pontos monitorados, sendo a maior quantidade (5,4 mg/L) no trecho que margeia o município de Fortuna de Minas.

    A contaminação da ingestão do manganês, por sua vez, tem como sintomas a rigidez muscular, tremores das mãos, fraqueza e, nos casos mais críticos, alterações no sistema nervoso central e impotência. O limite máximo permitido é de 0,1 mg/L, enquanto o menor nível encontrado foi de 1,5 mg/L e o maior, 3,4 mg/L.

    Já o cromo é um grande poluente e tem potencial de dano aos organismos, como interferência no metabolismo, doenças, efeitos mutagênicos e até morte. Se a lei determina 0,05 mg/L como quantidade máxima, os níveis de cromo constatados variam de 0,7 a 2,1 mg/L.

    “O estrago no rio Doce aconteceu como um câncer que matou rápido. Aqui no Paraopeba, é uma doença silenciosa como o diabetes, que mata lentamente e só é percebida quando começamos a medir”, compara Marta Marcondes, especialista em poluição hídrica da USCS e que desempenhou as análises microbiológicas e de metais.

    A SOS Mata Atlântica coletou amostras em 22 pontos ao longo de 305 km do rio Paraopebas para medir o Índice de qualidade da água (IQA).
    Foto de Victor Moriyama

    Planos de recuperação

    Por meio da assessoria de comunicação, a Vale afirma que “estabeleceu um plano de monitoramento da qualidade de água, sedimentos e organismos aquáticos a partir de coletas diárias de amostras em 48 pontos nas bacias dos rios Paraopeba e São Francisco, cujos resultados parciais vêm sendo compartilhados diretamente com os órgãos competentes”.

    A empresa também informa que realiza obras em três trechos. No trecho 1, a até 10 km do rompimento da Barragem 1, será construído um dique de enrocamento para a retenção dos rejeitos mais grossos e pesados. Segundo a Vale, “no momento, está em andamento o transporte e estocagem das rochas que serão usadas na construção da estrutura”.

    Além disso, a empresa pretende instalar mais barreiras hidráulicas e diques de pequeno porte, assim como estudar a implantação de uma estação de tratamento de água para reduzir a turbidez da água do córrego Ferro-Carvão. “O objetivo é devolver a água clarificada para o curso do rio Paraopeba”, diz a empresa, por meio de nota.

    As obras nesse trecho também incluem a remoção de rejeitos da avenida Alberto Flores, a instalação de uma barreira metálica para impedir que a lama cubra novamente a via e a construção de uma ponte metálica de 50 metros para restabelecer o acesso das comunidades de Parque da Cachoeira e Córrego do Feijão à área central de Brumadinho.

    Já no segundo trecho, na faixa entre 10 km e 30 km, até o município de Juatuba, a empresa diz que mobiliza e instala “equipamentos para dragagem do material mais grosso, como areia e pedras”, para limpar e desassorear a calha do rio Paraopeba. “O material será recolhido por duas dragas e acondicionado para destinação adequada fora da Área de Preservação Permanente do rio.”

    No terceiro trecho, na faixa de 170 km do rio entre Juatuba e a Usina de Retiro Baixo, a Vale instalou cinco barreiras antiturbidez – três em Pará de Minas e duas na altura dos municípios de Betim e Juatuba. “Monitoramentos específicos para esse fim demonstram, até o momento, que a eficiência das barreiras instaladas implica em uma redução de 10% a 15% da turbidez da água do rio.”

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