Queimadas e desmatamento estão transformando Amazônia em fonte de carbono, diz estudo
Floresta amazônica queima no Maranhão. Graças a queimadas e desmatamento descontrolado, região leste do bioma já emite mais carbono do que absorve.
A Amazônia desempenha um papel crucial para o planeta, absorvendo e concentrando carbono que poderia estar na atmosfera. Mas essa capacidade está sendo reduzida, em decorrência do desmatamento descontrolado e das mudanças climáticas, sobretudo no leste da Amazônia. O bioma está se transformando em emissor de carbono, em vez de um sumidouro. Pesquisadores brasileiros constataram que a intensificação da estação seca e o crescente desmatamento promovem um distúrbio no ecossistema, a ponto de aumentar a incidência de queimadas e das emissões de gases de efeito estufa.
As descobertas foram feitas por um grupo de pesquisadores do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), do Instituto de Pesquisa de Energéticas e Nucleares, além de instituições internacionais, como a Administração Atmosférica e Oceânica Nacional (NOOA, na sigla em inglês), dos Estados Unidos. O estudo foi publicado na última quarta-feira (14), na revista Nature, e divulgado pela Agência Bori.
“Na prática, estamos fazendo a Amazônia perder a condição de remover carbono da atmosfera. Isso gera uma série de efeitos feedback”, diz Luciana Gatti, principal autora do estudo e coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa, do Inpe, em entrevista à reportagem. “No primeiro momento, o desmatamento está lançando carbono para a atmosfera. Por outro lado, deixa o clima superestressado, o que aumenta a mortalidade das árvores e resulta em emissões muito maiores do que remoções. Então, estamos acelerando as mudanças climáticas, porque jogamos carbono na atmosfera e ainda reduzimos chuva e aumentamos a temperatura – o que ajuda a jogar mais CO2 na atmosfera. É um ciclo negativo.”
(Você pode se interessar por: Incêndios florestais estão cada vez mais intensos — até mesmo para animais adaptados ao fogo)
A Amazônia como emissora de gases do Efeito Estufa
O balanço dos gases de Efeito Estufa, principalmente o fluxo de carbono, é um indicador do estado de saúde de um ecossistema, observam os pesquisadores no artigo. Eles coletaram amostras de ar em altitudes de 150 metros a 4,5 quilômetros acima do nível do mar, em 590 medições feitas em sobrevoos de 2010 a 2018. Nelas, analisaram a concentrações de dióxido de carbono (CO2) e monóxido de carbono (CO). O trabalho aconteceu em quatro regiões do bioma, capazes de representar o cenário da Panamazônia.
Na parte nordeste, houve um desmatamento proporcional de 31% da área ao longo de 40 anos. Na estação seca (agosto, setembro e outubro), os cientistas identificaram uma queda de 34% da precipitação e uma elevação de 1,9ºC na temperatura. No sudeste do bioma, com 26% da cobertura vegetal suprimida, choveu 24% menos na estação seca e a temperatura média subiu 2,5ºC. As duas regiões já se transformaram em emissoras de carbono, já que o volume absorvido é inferior aos gases emitidos pelas queimadas.
“Uma árvore da floresta tropical úmida está adaptada para ter abundância de água e temperaturas amenas. Mas o que acontece em agosto, setembro e outubro? O solo está extremamente seco, passa vários meses recebendo muito pouca chuva e temperaturas altíssimas”, diz Gatti. “Essa é a única região da Amazônia onde a floresta virou fonte de emissão, porque está morrendo mais árvores do que a floresta que continua em pé consegue remover.”
As emissões na estação seca seguem neutras no oeste da Amazônia e tem compensado o balanço de carbono no bioma, mas a região já sente os efeitos em cascata vivenciados no leste. No noroeste, apenas 7% da região foi desmatada, mas houve queda em 19% na precipitação e aumento de 1,7ºC na temperatura média. No sudoeste, com 13% da vegetação suprimida, ocorreu uma redução de 20% nas chuvas e alta de 1,7ºC.
Gatti estuda o fluxo de carbono e as condições do nordeste da Amazônia desde 2000. A região abrange 10% do bioma, com cerca de 700 mil km2, dos quais 37% já foi desmatado. “Observamos que esse local apresenta o maior fluxo de gás carbônico para a atmosfera. Em 40 anos, a precipitação anual diminuiu 9%. O pico da estação chuvosa diminuiu 11% e o pico da estação seca, que é de agosto a outubro, perdeu 34% de chuva”, analisa Gatti. “Ao mesmo tempo, a temperatura aumentou nesse período em quase 2ºC. É um impacto muito grande, principalmente na estação seca, quando ocorrem as queimadas.”
“ “Os pecuaristas e agricultores ainda não entenderam que destruir a Amazônia é um tiro no pé, porque nós estamos plantando seca. Se mais área para plantar significa desmatar, terá menos chuvas e temperaturas mais altas, reduzindo a produtividade.””
Já o sudeste da Amazônia compreende cerca de 2 milhões de km2, dos quais 28% da cobertura vegetal já foram suprimidos. Os pesquisadores não identificaram alteração na precipitação total anual, mas houve queda de 24% das chuvas na estação seca. E o mais preocupante: em quatro décadas, a temperatura se elevou em 2,5ºC na estação seca e em 1,5ºC na média anual. Com a crise climática impulsionada por atividades antrópicas, a tendência é que a temperatura se eleve mais nas regiões dos polos e da Linha do Equador. A Amazônia deveria estar abaixo da média global de 1,1ºC, mas a supressão da cobertura vegetal tem estimulado a elevação da temperatura na região.
“Os prejuízos na temperatura e na precipitação são proporcionais ao desmatamento”, afirma Gatti. “As áreas menos desmatadas apresentam uma menor redução de precipitação, mas ainda assim apresentam. Se na primeira porção da Amazônia, no leste, tem regiões 30%, 40% desmatadas, com isso, leva menos chuva para o oeste. Então, já vemos 80% de perda de chuva, inclusive nas regiões menos desmatadas. E, pelo aumento da temperatura, todo esse ambiente está mais inflamável.”
Impacto continental
A floresta amazônica recebe do Atlântico em média 2,2 mil mm de chuva por ano. As massas de ar vindas do oceano entram pelo nordeste da Amazônia e seguem em direção ao noroeste, onde são barradas pelos Andes e redirecionadas para o Centro-Oeste, Sul e Sudeste do Brasil, além de outros países sul-americanos. Conforme os rios voadores desaguam ao longo da Amazônia, a evapotranspiração das árvores devolve entre 20% e 50% da água.
No artigo, os pesquisadores explicam que a remoção das florestas leva ao aumento da temperatura e reduz a evapotranspiração. Com isso, ocorre a redução da precipitação. “O desmatamento regional e a extração seletiva levam à degradação das florestas adjacentes, o que aumenta a vulnerabilidade ao fogo, promovendo mais degradação”, acrescentam. “Esses efeitos são piorados pelos aumentos da temperatura causados pela redução na cobertura florestal e são sobrepostos ao contexto do aquecimento global.”
“Isso explica o cenário catastrófico que está acontecendo no Brasil inteiro, com incêndios descontrolados. As massas de ar entram na Amazônia e são distribuídas para o resto do Brasil e da América do Sul. Então, esse cenário é propagado para o resto do país”, conclui Gatti.
“O desmatamento representa duas vezes a emissão de carbono. Uma direta, quando desmatam e aproveitam só os troncos maiores para vender madeira, a maior parte ilegal; esperam o resto secar por dois, três meses, e tocam fogo. Só que aí a vegetação toda está superseca, e esse fogo queima inclusive a região ao redor, que não está desmatada. Com isso, temos cada vez mais incêndios incontroláveis em reservas, em áreas não desmatadas, em áreas protegidas.”
A emissão de gases de efeito estufa no Brasil aumentou em 9,6% em 2019, em relação à 2018, conforme o último relatório do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), realizado pelo Observatório do Clima. Dos 2,18 bilhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente lançados na atmosfera pelo país, 44% provém de mudanças de uso da terra e 28% da agropecuária, seguidas pelo setor energético (19%), processos industriais (5%) e gestão de resíduos (4%).
Há uma forte pressão para a expansão da pecuária na Amazônia, onde está 36% do rebanho bovino brasileiro, espalhado em 39% das áreas desmatadas no bioma, observa Gatti. “O Observatório do Clima calcula quanto cada município jogou de CO2 na atmosfera. As três cidades maiores emissoras de CO2 no Brasil estão nessa região nordeste da Amazônia, a primeira delas é São Félix do Xingu. A quarta é São Paulo.”
Gatti ressalta que abrir mais áreas para a agropecuária não se traduz em aumento de produtividade, uma vez que o agronegócio no Brasil só é rico devido às chuvas abundantes proporcionadas pela floresta amazônica. “Os pecuaristas e agricultores ainda não entenderam que destruir a Amazônia é um tiro no pé, porque nós estamos plantando seca”, afirma a pesquisadora. “Se mais área para plantar significa desmatar, terá menos chuvas e temperaturas mais altas, reduzindo a produtividade.”
Um dos reflexos da destruição da floresta é a redução de chuvas no inverno. Hoje, o Brasil vive a pior estiagem em 91 anos. "Alguns gatos pingados estão fazendo fortunas às custas de um prejuízo generalizado para o Brasil, para a América Latina e para o mundo inteiro. E os primeiros prejudicados somos nós. Já vemos aumentos absurdos na conta de luz, nos alimentos, em todos os produtos que dependem de energia elétrica. E qual é a grande estratégia nacional? Jogar mais gases de efeito estufa na atmosfera, com termelétricas. A sociedade inteira está perdendo", critica a cientista.
Como reverter o cenário
Se preservada e mantido o equilíbrio do ecossistema, a Amazônia consegue absorver carbono, mas as emissões das queimadas tornam esse balanço neutro. Sem queimadas, há de fato uma remoção do carbono, diz Gatti. “Hoje, sem mudar a natureza, estaríamos removendo 0,13 bilhão de toneladas de carbono da atmosfera por ano.”
“O destino da Amazônia é central para a solução das crises climática e de biodiversidade. Os ecossistemas amazônicos são um dos elementos mais críticos do ciclo global do carbono e do sistema climático”
Segundo Gatti, a remoção de carbono da atmosfera no oeste da Amazônia – que tem, em média, 11% desmatados – ainda compensa as emissões do leste. No entanto, a cientista ressalta que os resultados não refletem o período de 2018 a 2021, anos de sucessivos recordes de desmatamento e queimadas na Amazônia, o que intensifica o cenário das emissões. “A situação hoje é muito pior. Estamos acelerando o desmatamento e a redução da chuva.”
“Se pararmos de queimar e desmatar, a Amazônia vai remover mais CO2 da atmosfera do que lançar. Ao recuperar áreas da Amazônia, vamos aumentar o volume de chuvas, o que vai amenizar a temperatura e, com o tempo, esse cenário vai se reverter. Em termos nacionais, vamos ter ganho na agricultura, no custo de vida. Vamos ganhar muito mais do que perder”, analisa Gatti. “Estaria fazendo coisas positivas que iriam levar a outras coisas positivas. Mais mata estaria se recuperando, maior quantidade de vapor d’água iria para a atmosfera, amenizando o aumento de temperatura e fazendo com que mais floresta se regenerasse. Então, estaríamos fazendo feedbacks positivos.”
A cientista acredita em duas medidas prioritárias para reverter o cenário e garantir que a Amazônia atue como sumidouro de carbono. A primeira é estabelecer um acordo nacional para não realizar queimadas de julho a novembro, considerando que elas são as principais fontes de emissão. Fora desse período, a vegetação não estaria tão seca, o que permitiria um controle maior do fogo.
O segundo ponto consiste na moratória do desmatamento. “Existem regiões na Amazônia que estão mais de 40% desmatadas, propriedades com mais de 80%. Então, poderia ter um acordo nacional. Não estou falando de desmatamento legal ou ilegal, mas de desmatamento zero. E fazer projetos de recuperação nas áreas que estão acima de 30% desmatadas, principalmente no estado do Pará, que é a primeira porção da Amazônia que leva a chuva, e do Mato Grosso e Rondônia. Quando chega em 30% [da área desmatada] se atravessa o limite e a floresta começa a jogar CO2 na atmosfera, em vez de absorver. Temos que recuperar todas essas áreas e paralisar o desmatamento.”
Em comunicado divulgado pela Agência Bori, Sir David King, presidente do Grupo Consultivo para a Crise Climática (CGAG), diz que o estudo liderado por Gatti “é um artigo de pesquisa criticamente importante [...], que descreve como a floresta amazônica passou a ser uma fonte líquida de emissões de CO2, em vez de um grande sumidouro de CO2. É o estudo mais completo e extenso já realizado.”
“Essas descobertas são resultado direto de uma crescente classe média em todo o mundo que pressiona a produção de carne bovina e soja, bem como da mudança catastrófica na direção das políticas do atual governo brasileiro”, avalia King. “Trata-se de uma acusação devastadora de sua trajetória atual, já que o país passou de um dos mais progressistas em termos de gestão de emissões para um dos piores. Devemos continuar a pressionar quem está no poder a reconsiderar, a garantir um futuro melhor não apenas para o povo do Brasil, mas para a saúde do planeta.”
No mesmo comunicado, a professora da Universidade de Brasília Mercedes Bustamante, representante do CGAC, destaca que “o destino da Amazônia é central para a solução das crises climática e de biodiversidade. Os ecossistemas amazônicos são um dos elementos mais críticos do ciclo global do carbono e do sistema climático. Atualmente, 18% da Amazônia já foi desmatada, e 17% está em processo de degradação. As perturbações também colocam a biodiversidade em risco, afetando o funcionamento e a produtividade dos ecossistemas.”
“Os impactos simultâneos das mudanças climáticas, eventos extremos, mudanças no uso do solo, stress hídrico e mortalidade de árvores conduzem a feedbacks positivos que reduzem a resiliência da floresta e impulsionam a inversão de sumidouro para fonte de carbono em partes da região. A estação seca está começando na região, e dados do Inpe mostraram que a Amazônia tinha 2.308 focos de queimadas em junho, o maior número desde 2007 para este mês”, avalia Bustamante. “Parar o desmatamento e as queimadas associadas e investir na restauração de ecossistemas degradados na região são pontos críticos para travar a espiral de degradação.”