O que se aprende ao atravessar o Atlântico sozinha em um veleiro?

A jovem velejadora Tamara Klink conta de sua travessia e como pretende inspirar outras pessoas.

Por Paulina Chamorro
Publicado 8 de mar. de 2022, 10:02 BRT
O que se aprende ao atravessar o Atlântico sozinha em um veleiro?

“Só se descobre que tem coragem quando a gente a usa ou já usou.” Com palavras e frases bem colocadas, a velejadora, escritora e arquiteta Tamara Klink recebeu esta repórter para uma conversa em março de 2022, meses depois de concluir sua primeira grande jornada.

Com apenas 24 anos, Tamara é a mais jovem brasileira a concluir uma travessia do Atlântico em solitário. Uma travessia que não se resume aos 17 dias do trecho final, do Cabo Verde até o Brasil, mas que começa muito antes – nos sonhos, planos, encontros e na compra do veleiro.

Na Noruega, Tamara contou com a ajuda de um professor de engenharia naval que a seguia no YouTube para adquirir – através de um site de compra e venda de veleiros usados, a preço de uma bicicleta – um pequeno barco de oito metros.

De lá, em 2020, partiu pela primeira vez no Sardinha. Atravessou o Mar do Norte e chegou a França, onde terminou seus estudos. Em agosto de 2021, zarpou para a grande travessia. Fez escalas em Lisboa, Ilhas Canárias e Cabo Verde antes de chegar em Recife em 2 de novembro de 2021. Na medida da disponibilidade da internet, tudo era postado nas redes sociais

Nesta entrevista realizada em uma terça-feira de Carnaval por videochamada, Tamara fala de medos, da invisibilidade de mulheres exploradoras, de inspiração, de reconhecimento, solidão, de responsabilidade e desafios na navegação. De erros e acertos.

Tamara Klink acaba de lançar Crescer e partir, um box com dois livros, pela editora Peirópolis. Um dos livros conta das navegações, outro traz poemas. Navegar pelas letras também tem sido um canal de conexão da velejadora e escritora com seus seguidores das redes sociais.

“Nunca tive o sentimento de coragem, o que senti foi medo o tempo todo. Para mim a coragem é algo que nunca estará no presente”, disse ela. “A coragem é um reconhecimento que a gente dá para o passado, ela está na esteira do barco, ela está no caminho que a gente já fez.”

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    Tamara Klink posa para retrato na casa de sua família, na cidade de São Paulo, em 1o de março de 2022. Atrás dela, a carta de navegação que seu pai, Amy Klink, usou em suas viagens à Antártida. 

    Foto de Gabi di Bella

    Paulina Chamorro, National Geographic: Passado alguns meses da sua chegada e conclusão da sua primeira travessia solo, como você acredita que impactou a vida das milhares de meninas e mulheres que acompanharam, dia após dia, todos os desafios e medos que você narrava, principalmente nas redes sociais?

    Tamara Klink: Quando parti, não podia imaginar que minha viagem tocaria pessoas que não fizeram parte dela diretamente. Para mim, era um gesto relativamente simples e até isolado, ou solitário – partir de um ponto para chegar a outro. Ao longo da viagem, fui me dando conta que essa travessia tocava em algo [comum a] qualquer pessoa, que é o desejo. Toda viagem começa no desejar, e é, talvez, nossa disposição em perseguir o desejo que nos dá liberdade e capacidade de assumir as responsabilidades pelas escolhas que a gente faz para ir até esse desejo.

    Hoje eu vejo com alguma clareza que esse gesto de cruzar o oceano acendeu desejos em muitas outras pessoas, porque elas se deram conta de que é possível. E se dando conta que é possível cruzar o mar com um barco que não é o melhor do mundo, um barco velho e pequeno, sem ser a pessoa mais forte do mundo, ou mais inteligente do mundo, ou mais brava do mundo, podemos ir mais longe do que a gente pensa.

    P.C.: Você, sendo a mais jovem brasileira a fazer essa travessia, acabou despertando sonhos através de seus próprios sonhos?

    T.K.: Acho que tem uma ideia extremamente predatória para as realizações das mulheres, que é a ideia da exceção, que o feito de uma mulher destrona o feito das que vieram antes e das que virão depois. E não é o que acontece com os feitos masculinos. Temos que ter muito claro que o gesto de uma mulher abre os caminhos para outras, e não o contrário. Eu não gosto da ideia do título de ser a mais jovem a fazer qualquer coisa. Espero que muitas outras pessoas, em especial mulheres mais jovens e mais velhas, maiores, mais capazes e menos capazes, possam fazer suas viagens, pelo mar ou pela terra.

    Outra ideia que você colocou, de ver menos mulheres do que homens nas navegações, tem uma origem histórica, que vem do fato de que pelo menos metade da população do planeta foi privada do direito da descoberta e da exploração.

    No caso das expedições para a Antártica, que eu conheço melhor, esse continente onde não existia população nativa alguma, as mulheres foram completamente privadas de participar das expedições pioneiras.

    Elas só começaram a ir para lá quando as fronteiras científicas foram abertas. E, com o campo científico, por mais difícil que deve ter sido ser mulher na ciência em 1930, 1940, foi quando as mulheres começaram a poder pôr os pés no continente Antártico.

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      “E eu percebi que, muitas vezes [...] é mais cômodo dizer que o mérito pela viagem feita por uma mulher é de um homem.”

      Não podemos negligenciar a importância que esses relatos antárticos e de viagem têm, inclusive da National Geographic, na formação do imaginário, do desejo das pessoas. Quando eu era criança, não via mulheres velejando solitárias, e eu me questionava se esse desejo não era ambicioso demais, ou se ele não era errado. Quando cresci, pude ter acesso a livros escritos por mulheres. Entre elas, a principal e maior ídola na navegação, minha ou de qualquer pessoa que teve acesso à história dela: Ellen MacArthur.

      As pessoas ficam impressionadas porque eu, com 24 anos, atravessei o Atlântico sozinha num barco velho. Ellen MacArthur na minha idade estava dando a volta ao mundo em solitário num barco super-rápido, batendo recorde de velocidade. Eu fico quase constrangida por estar sendo reconhecida pela minha viagem, porque existem mulheres de quem não falamos com frequência suficiente.

      Outra mulher que fez um gesto extraordinário e pouca gente conhece foi a Isabel Pimentel, uma mulher que abriu as portas para mim – ao longo da viagem me deu recomendações. Ela é uma mulher que, diferente de mim, não cresceu numa família [de navegadores], numa casa onde as paredes eram feitas de vidro de alto mar.

      Isabel Pimentel não teve a chance de poder sonhar com isso desde sempre. É uma brasileira, que, quando navegou, chegou a ter seu feito deslegitimado por outros homens, que consideraram que as condições nas quais ela fez a viagem não eram tão boas assim, que o feito não era tão incrível assim. E eu ouviria muitas vezes esse mesmo discurso: que o que eu tinha feito não era tão grandioso. Muitas pessoas, muitos velejadores, me disseram: ‘Achei que você não ia passar do Cabo Verde’ ou ‘achei que você não chegava nas Ilhas Canárias’.

      E eu percebi que, muitas vezes – sobretudo para os homens que têm dificuldade de entender que as mulheres, mesmo não tendo os mesmos braços que os deles, os mesmos hormônios ou o estereótipo de bravas e fortes e corajosas como eles acreditam ter – é mais cômodo dizer que o mérito pela viagem feita por uma mulher é de um homem.

      Ellen MacArthur ouviria de outros velejadores que ela tinha sido ajudada por um homem, que tinha um homem dizendo o que ela tinha que fazer. Eu ouviria isso em relação ao meteorologista que me aconselhou ao longo do caminho. ‘A Tamara só conseguiu passar daquela tormenta porque tinha um cara muito bom atrás dizendo o que tinha que fazer’, ou porque eu sou filha do Amyr Klink, porque 'o pai dela explicou tudo para ela', 'ensinou tudo para ela'.

      Laura Decker também receberia críticas ligadas ao fato do pai dela ter ajudado na viagem. Ninguém fala isso para um homem.

      P.C.: Quando essa viagem, essa travessia, tanto interna quanto externamente, de fato começou?

      T.K.: Eu comecei a desejar as travessias através dos relatos do meu pai e da minha mãe. Por eles eu tive o privilégio de ouvir e saber que o mar existia, que o mar era possível, que viagens de barco eram realizáveis. Esse desejo foi reforçado por livros de outros tempos e outros autores.

      Mas acho que o primeiro passo para ela acontecer foi no dia em que ouvi o ‘não’ do meu pai. O dia que eu fui até meu pai com um caderno com desenhos, textos, mapas e contas, mostrando um projeto de viagem que eu queria construir e ele me disse que, se eu quisesse navegar em solitário, que eu contasse para ele meus planos depois que eu já os tivesse feito. Naquele momento, isso me deixou muito insegura, apreensiva e até desamparada, mas eu sei que isso que me libertou.

      Foi uma grande libertação porque cada passo que eu daria seria um passo próprio. De certa forma, estava livre para fazer minhas próprias escolhas, meus primeiros caminhos, para saber quantos dos passos que eu dei eram meus, e quantos passos eram dos outros.

      Tamara Klink no quintal de sua casa, em São Paulo, em 1o de março de 2021. ...

      Tamara Klink no quintal de sua casa, em São Paulo, em 1o de março de 2021. "Num site de compra e venda de usados achamos o Sardinha. O antigo proprietário topou vendê-lo pelo preço de uma bicicleta, e é assim que eu faço minha primeira grande escola."

      Foto de Gabi di Bella

      P.C.: Como foi a primeira etapa da travessia [da Noruega para França]? Quais os desafios e onde você encontrou coragem para passar por um mar complicado, num barco que você estava conhecendo enquanto navegava?

      T.K.: Não foi da maneira que eu tinha sonhado, mas foi de uma maneira muito mais incrível até, que aconteceu a compra do barco.

      O mundo inteiro tinha muitas incertezas sobre o que ia acontecer, a gente tinha acabado de passar pela primeira onda da pandemia na França. Eu tinha ficado fechada numa casa com meu namorado, depois fiquei sem casa, meu estágio foi cancelado, a viagem que eu tinha planejado fazer para ver a minha avó no Brasil também foi cancelada. De repente, muitos dos planos que eu tinha caíram por água abaixo. Foi quando me lembrei desse convite de um seguidor do canal do YouTube para ir até a Noruega.

      Fui para lá de barco com dois desconhecidos. Chegando lá, esse seguidor me disse que gostaria de me ajudar a comprar meu primeiro barco. Num site de compra e venda de usados achamos o Sardinha. O antigo proprietário topou vendê-lo pelo preço de uma bicicleta, e é assim que eu faço minha primeira grande escola.

      Por um lado, eu já tinha sonhado tantas vezes em estar no comando do meu próprio barco que eu tinha a estranha sensação de já ter vivido isso antes. Por outro, eu nunca tinha vivido isso.

      Na primeira noite de navegação, eu ainda não estava acostumada a dormir em períodos curtos, de cinco, dez, 20 ou 30 minutos. Eu estava muito cansada e passei por baixo de uma ponte, bati numa pedra, e fui salva por uma mistura de reflexo e de sorte. Pude continuar a viagem sem grandes problemas, mas muito mais atenta. Essa experiência me alertou para a iminência permanente do perigo de estar no mar.

      Nossa viagem pode acabar antes do que a gente pensa. Os barcos têm essa condição primeira e incontornável que é o fato de afundarem – os barcos afundam.

      Nunca tive o sentimento de coragem, o que senti foi medo o tempo todo.

      Para mim a coragem é algo que nunca está no presente. Ela é um reconhecimento que a gente dá para o passado, ela está na esteira do barco, no caminho que a gente já fez. O que está no nosso presente é sempre o medo. A coragem é aquilo que a gente deixa. Só se descobre que tem coragem quando a usa ou já usou.

      P.C.: No trecho final da viagem, que durou 17 dias de Cabo Verde até Recife, teve esse período quase sem comunicação. O que você poderia contar desses dias solitária, conhecendo você, conhecendo o seu barco, conhecendo o Oceano Atlântico de uma maneira como você estava vivendo pela primeira vez?

      T.K.: Por ser de uma geração que é o tempo todo exposta à novidade, estimulada a fazer muitas coisas ao mesmo tempo, a prestar atenção em informações de naturezas distintas em intervalos curtos de tempo, percebi o quanto eu estava desacostumada a viver o presente e observar o entorno sem reagir.

      Passava muitos dias com a sensação de não existir. Esse sentimento de inexistência era muito presente, eu não via rostos de outras pessoas nem o meu próprio. Não ouvia vozes de outras pessoas, nem a minha. Em determinado momento, não tinha mais vontade de falar, não tinha mais vontade de escrever. Escrevia mais por me forçar ao hábito do que por vontade. Acho que eu ficava muito mais atenta aos pequenos sinais do entorno. Observava mais os peixes voadores, entendia melhor como eles se comportavam, observava mais as nuvens, entendia melhor o que elas queriam dizer. Era muito evidente a minha finitude, a minha pequenez diante do contexto onde eu estava.

      Ao mesmo tempo, contraditoriamente, observava a minha capacidade de vencer aquele oceano, respeitando o tempo e as forças dos habitantes dele. Isso ilustra um pouco a vida humana na terra, tão pequena e tão insignificante, mas tão capaz de se deslocar e de transformar o lugar por onde passa.

      “Os barcos têm essa condição primeira e incontornável que é o fato de afundarem – os barcos afundam.”

      P.C.: Você conclui essa travessia agora com dois títulos a mais, velejadora e escritora. Qual a importância de navegar pelas letras para ler o mar? Como é essa conexão entre o prazer de ler e de escrever e a experiência de navegar?

      T.K.: Eu sinto que o texto é, por um lado, um instrumento de autoconhecimento e de autoconfiança que para mim foi fundamental, necessário para que eu pudesse tomar a decisão de partir. Por outro lado, como velejadora, é quase um legado obrigatório que eu devo deixar. Quando navegamos, estamos usando recursos da natureza que são muito caros a toda a Terra, a todas as pessoas, a todos os lugares. Estamos usando materiais que muitas vezes são poluidores – fibras de vidro, de carbono, resinas, tintas. E estamos nesses ciclos da natureza para fazer algo que ninguém vê, que não vai deixar rastros; nossos caminhos desaparecem depois da nossa passagem. Os traços que a gente deixa são as cartas que gente faz.

      Acho que é necessário deixar algo para outras pessoas como um agradecimento por ter tido esse privilégio. O que [posso fazer] é deixar essas sementes de desejo de outras viagens, de outros deslocamentos, internos ou externos.

      P.C.: Fiz uma pesquisa no Google para ver a curiosidade das pessoas sobre você. A pergunta mais comum era ‘Onde está Tamara Klink?’ Então, essa é minha última pergunta: onde você está hoje, Tamara Klink?

      T.K.: Hoje eu estou em São Paulo, mas acredito que não vai durar muito tempo. Sinto muita falta de estar perto do mar. Outra coisa importante que nós velejadores deixamos, e somos obrigados a deixar, é essa consciência do impacto que geramos no planeta, que é algo muito marcante, muito forte.

      Como velejadora, encontro consequências visíveis da passagem humana na Terra. Eu percebo a frequência, a presença, ou a ausência de algumas populações de animais em alguns lugares. Tendo ido para a Antártica já algumas vezes, por mais que eu não seja cientista, consigo perceber a presença ou ausência de gelo em algumas baías. Também consigo observar esse problema do plástico, que é muito forte e muito estético.

      Então, a experiência de se deslocar sobre o mar é muito difícil, traumática.

      Esta chance que estou tendo agora de estar sendo ouvida – talvez por causa da viagem, talvez pelo feito impressionar, talvez por ter livros lidos – é uma chance de ser porta-voz de seres vivos que não falam, e de seres humanos que não são ouvidos.

       

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