Arraia de quase 4 metros é encontrada em buraco no rio Mekong
As profundezas turvas do poderoso rio do sudeste asiático parecem funcionar como refúgios para alguns dos maiores peixes de água doce da Terra, de acordo com os exploradores.
Esta arraia gigante de água doce pesando cerca de 180 kg foi capturada acidentalmente em 4 de maio por pescadores no norte do Camboja. A espécie é um dos maiores peixes de água doce do mundo e é mais comumente encontrada nas piscinas profundas do rio Mekong, no Camboja.
À medida que o rio Mekong desce para o Camboja vindo do vizinho Laos, fluindo languidamente por bancos de areia e ilhas cobertas de florestas, é difícil imaginar a explosão de vida que ocorre sob sua superfície.
Neste trecho do rio, com cerca de 160 km de extensão, até 200 bilhões de peixes são gerados todos os anos, ajudando a tornar o Mekong, com 2,7 mil km, um dos rios mais ricos em pescados do planeta. Piscinas profundas que chegam a 80 m servem como refúgios para algumas das maiores e mais ameaçadas espécies de peixes de água doce do mundo.
Essa riqueza biológica geralmente permanece escondida da visão humana. Mas na semana passada ela veio à tona, literalmente, quando os pescadores puxaram uma arraia gigante de 3,93 m de comprimento, pesando quase 180 kg, das profundezas do Mekong.
Ela foi capturada acidentalmente depois de engolir um peixe menor em um anzol com isca. Não querendo matar a arraia fêmea, os pescadores chamaram uma equipe de resgate, que conseguiu desenganchar, pesar, medir e soltar a espécie ilesa de volta ao rio.
Para Zeb Hogan, que há muito estuda os megapeixes do Mekong (que incluem o peixe-gato gigante, criticamente ameaçado, e a farpa gigante) a captura da arraia é evidência do papel ecológico e biológico descomunal que as piscinas profundas do rio Mekong, no Camboja Superior, desempenham, algo revelado ainda mais pelas recentes explorações de Hogan. A área também é o lar de raros golfinhos de Irrawaddy e tartarugas gigantes de casco mole.
“Este é o último lugar na Terra onde encontramos essas criaturas juntas”, diz Hogan, que é biólogo de peixes da Universidade de Nevada, nos Estados Unidos, e lidera o projeto de pesquisa Wonders of the Mekong, financiado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento.
Na semana anterior à captura da arraia, Hogan, que também é um explorador da National Geographic, liderou uma expedição científica à área. Na equipe internacional de pesquisadores participantes estavam outros dois da Exploradores Nat Geo: Kakani Katija, pesquisadora de águas profundas, e Kenny Broad, mergulhador de cavernas e antropólogo ambiental da Universidade de Miami, nos EUA.
Na primeira tentativa desse tipo de explorar as partes mais profundas do rio Mekong, a equipe usou luzes e câmeras ligadas por cabos longos e filmadoras com iscas. Os pesquisadores também coletaram amostras de DNA para identificar espécies raras ou não detectadas anteriormente no rio, que, apesar de importante, permanece muito pouco estudado.
Explorando os buracos
O rio Mekong, que nasce nas terras altas do Tibete e atravessa seis países a caminho do Mar da China Meridional, é reconhecido como um ponto-chave de biodiversidade global, com cerca de mil espécies de peixes encontradas em todo o seu sistema. É responsável pela maior pesca interior do mundo, proporcionando meios de subsistência para dezenas de milhões de pessoas que vivem na região.
Pescadores no norte do Camboja manuseiam uma arraia gigante de água doce para depois soltarem de volta ao rio Mekong. A enorme arraia, pesando cerca de 180 kg, foi capturada acidentalmente depois de ter engolido um peixe menor em um anzol iscado. Não é ilegal pescar arraias gigantes no Camboja, mas não é considerado um bom alimento no sudeste asiático.
O segredo da produtividade do Mekong é uma enchente sazonal, que eleva o rio em até 12 metros e dispersa os peixes juvenis nas planícies aluviais da região, onde pescados se alimentam e crescem. Muitas espécies do Mekong são altamente migratórias e sobem o rio para desovar, geralmente viajando longas distâncias para lugares como as piscinas profundas do Alto Camboja.
Os pesquisadores sabem há muito tempo que esta área, com seus canais trançados e ilhas cobertas por florestas sazonalmente inundadas, é um refúgio na estação seca para muitas espécies importantes do Mekong, incluindo várias megafaunas. Mas por ser uma área remota, ela é difícil de estudar. É especialmente desafiador descobrir o que acontece no fundo do rio.
Katija, que lidera o Laboratório de Bioinspiração no Instituto de Pesquisa Aquário de Monterey Bay, nos EUA, vê muitas semelhanças entre as piscinas profundas do Mekong e o ambiente do mar profundo que sua equipe normalmente explora: águas profundas, pouca luz ambiente e correntes ao longo do fundo. “O que torna o trabalho no rio Mekong desafiador, principalmente do ponto de vista da imagem, é a alta turbidez, ou baixa visibilidade, mesmo nas regiões mais profundas”, explica.
Isso ficou claro durante vários dias de exploração no Mekong, quando Katija e sua equipe implantaram um veículo operado remotamente ao longo do fundo do rio. De um barco, eles assistiram as imagens em uma tela de computador enquanto o veículo se movia por sedimentos e lodo espessos, o que reduzia a visibilidade para apenas 30 cm.
Mas o vídeo de 76 metros abaixo da superfície ainda capturou vários peixes, incluindo bagres migratórios conhecidos localmente como trey chhwiet . Esta espécie já formou a base de uma pesca comunal do outro lado da fronteira no Laos que não existe mais porque o caminho migratório do peixe foi bloqueado em 2020, pela nova barragem de Don Sahong, perto da fronteira Laos-Camboja.
A observação dos trey chhwiet foi de particular interesse para Hogan, que estudou de perto a pesca comunal há mais de 20 anos e tentou estabelecer para onde o peixe se moveu desde que a barragem foi construída.
Broad, que tem longa experiência em mergulhar em buracos azuis profundos em lugares como as Bahamas, comparou o mergulho no Mekong a “nadar em uma banheira de café com leite”. “Adicione correntes fortes, profundidades acima de 80 metros e [vários] detritos, e você terá um ambiente extremamente desafiador para explorar”, destaca.
Gigantes das profundezas
Por vários anos, os cientistas do Wonders of the Mekong conduziram pesquisas de mercado e na comunidade para coletar informações sobre a biodiversidade aquática na área das piscinas profundas. Em colaboração com a Administração de Pesca do Camboja, o projeto também estabeleceu uma rede de pescadores que relatam capturas de peixes gigantes e ameaçados de extinção.
Um chefe de comuna local no norte do Camboja explica a um menino sobre a necessidade de proteger a arraia gigante de água doce, que está listada como ameaçada de extinção na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da IUCN.
Quando os pescadores da remota ilha de Koh Preah, a jusante de Stung Treng, fisgaram uma arraia gigante, em 4 de maio, eles contataram os membros do projeto, que viajaram de Phnom Penh, um trajeto de seis horas durante a noite, sob chuva forte, para chegar até a ilha.
Embora a arraia gigante de água doce (Urogymnus polylepis) esteja listada como ameaçada de extinção na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da IUCN, não é ilegal pescá-la no Camboja, embora não seja considerada comestível no sudeste asiático. Em vez disso, diz Hogan, muitos pescadores agora a reconhecem como uma espécie que merece ser protegida.
No local da captura, um grande grupo de aldeões se reuniu em torno da arraia, que foi mantida molhada enquanto era rapidamente movida para fora da água em uma lona para que pudesse ser medida e pesada. Usando várias balanças de 100 kg, os pesquisadores confirmaram seu peso (180 kg) e comprimento (3,93 m).
Por maior que fosse a arraia, Hogan e outros realizaram extensas entrevistas com pescadores que trabalham na região que dizem ter capturado arraias com quase o dobro desse tamanho. Tais relatos são muito difíceis de verificar, mas há razões para acreditar que a arraia gigante é a maior espécie de peixe de água doce do mundo. Outros leviatãs locais, como o bagre gigante do Mekong e a farpa gigante, podem atingir 272 kg e até 3 metros de comprimento.
Normalmente, a arraia gigante de água doce possui um ferrão venenoso e serrilhado de até 38 cm de comprimento, embora esse indivíduo pareça não ter um ferrão quando foi capturado. Hogan diz que não é incomum que os ferrões das raias se soltem por várias razões.
Foi a primeira vez que muitos dos aldeões viram um peixe tão grande. Enquanto os tratadores se preparavam para devolver a arraia ao rio, um chefe da comuna local, Long Tha, agachou-se ao lado de um menino e observou o animal. “Esta é uma arraia gigante,” explicou Tha à criança. “Quando você crescer, você deve protegê-la”, complementou.
De acordo com Chea Seila, gerente do programa Maravilhas do Mekong, que trabalha há muito tempo com as comunidades pesqueiras locais, as atitudes entre os pescadores em relação à conservação de peixes gigantes mudaram ao longo do tempo.
“No começo, eles tinham medo de serem presos, ainda que apenas denunciassem a captura da megafauna. Mas nós os apreciamos por fazer isso e os vemos como modelos na conservação de peixes ameaçados de extinção”, destaca Seila.
“Acredito que esta não é a última vez que vamos liberar espécies gigantes e ameaçadas de volta a seus habitats”, acrescenta.
Uma infinidade de ameaças
A pesquisa nesta parte do Mekong ganhou destaque nos últimos anos, pois o sistema enfrenta uma pressão crescente de várias direções. Enquanto filmavam o habitat do rio profundo, os cientistas viram evidências generalizadas de poluição plástica, mesmo em áreas de conservação, bem como “redes fantasmas”, que foram abandonadas pelos pescadores, mas ainda podem capturar peixes.
O rio está particularmente ameaçado pelas mudanças climáticas. Nos últimos anos, as condições de seca, impulsionadas pelo fenômeno climático El Niño, que ocorre naturalmente, mas exacerbadas pelo clima mais quente, fizeram com que os níveis sazonais da água no Mekong caíssem para níveis historicamente baixos. A situação é agravada pelos operadores de barragens que regulam o fluxo de água para suas próprias necessidades.
E embora muitas reservas de conservação administradas pela comunidade, onde a pesca não é permitida, tenham sido estabelecidas ao longo do rio, a intensa pressão da pesca continua sendo uma grande preocupação na área, onde pequenos acampamentos de pescadores estão próximos às margens do rio. Métodos de pesca ilegal, como a elétrica, também são comuns, dizem os observadores.
Agora, de acordo com um relatório do jornal Phnom Penh Post, o governo cambojano concordou, em princípio, com a construção de uma enorme barragem hidrelétrica de 1,4 mil megawatts no Mekong, ao norte de Stung Treng, onde as piscinas profundas são encontradas e dentro de uma área designada como uma zona húmida de importância internacional. Anteriormente, pensava-se que o governo cambojano se absteria de construir barragens no tronco principal do Mekong até pelo menos 2030.
Durante suas visitas à área, os pesquisadores viram equipamentos técnicos estacionados ao redor do canteiro de obras proposto, evidência de que um estudo geológico inicial está em andamento. Para Hogan, que viu a vizinha barragem Don Sahong, no Laos, acabar com a pesca local, a barragem proposta no Camboja causaria estragos na sensível ecologia do rio.
“Isso significará a perda de pesca, de biodiversidade e de meios de subsistência. Isso irá alterar esta área para sempre”, alerta.
A National Geographic Society, comprometida em iluminar e proteger as maravilhas do nosso mundo, financiou o trabalho do explorador Zeb Hogan. Saiba mais sobre o apoio da Society aos exploradores que destacam e protegem espécies ameaçadas. Hogan e Stefan Lovgren são co-autores do próximo livro Chasing Giants: In Search of the World's Largest Freshwater Fish.