Como a pesca pode ajudar a recuperar populações de pirarucu na Amazônia

Em dez anos, projeto de manejo sustentável aumentou a renda dos ribeirinhos, renovou a biodiversidade do meio ambiente e decuplicou a população de pirarucus em um trecho do Médio Rio Juruá.

As escamas do pirarucu podem ter até um polegar de tamanho e são leves, mas altamente resistentes a objetos pontiagudos, como dentes de piranhas. O manejo do pirarucu na na comunidade de São Raimundo, município de Carauari, no Amazonas, fez a população da espécie crescer de 4 mil, em 2011, para 46 mil, em 2021.

Conservação Internacional/ Flavio Forner
Por Jill Langlois
fotos de Flavio Forner
Publicado 27 de jul. de 2022, 12:06 BRT

Nas margens do rio Juruá, a comunidade São Raimundo faz planos para comprar um sistema de energia solar.

A comunidade fica dentro da Reserva Extrativista (Resex) do Médio Juruá e tem 164 pessoas, todas da mesma família. A luz vem de um gerador a diesel, que só fornece energia elétrica das 18h30 às 21h30. A 10 reais o litro, o combustível está ficando caro demais até para manter as luzes acesas três horas por dia.

Com a luz do sol, terão energia elétrica 24 horas por dia, uma melhora significativa na qualidade de vida. A comunidade, localizada no município de Carauari, região Sudoeste do Amazonas, também ficará ainda mais sustentável.

“A nossa base é a preservação”, disse Quilvilene Figueiredo da Cunha, que mora em São Raimundo desde que nasceu, em entrevista à reportagem. “Somos uma família que sempre se importou em preservar.”

Mas poucos anos atrás esse sonho era inalcançável. Juntar dinheiro suficiente para investir em um sistema de energia solar era impossível. Cunha e o resto da sua família trabalhavam com extração de látex de seringa, com cuja renda mal dava para sobreviver.

Tudo mudou há pouco mais de uma década, quando a Associação dos Produtores Rurais de Carauari (Asproc) perguntou se a comunidade ribeirinha queria ser uma das primeiras do município a participar de um novo projeto de manejo do pirarucu.

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      Pescadores preparam as redes para pesca de pirarucu em um braço do rio Juruá, no Amazonas.

      Conservação Internacional/ Flavio Forner

      Pescador captura um pirarucu no rio Juruá.

      Conservação Internacional/ Flavio Forner

      O peixe – um dos maiores de água doce do mundo, podendo pesar até 200 quilos – tinha potencial para prosperar nos lagos da Resex do Médio Juruá e do resto de Carauari, mas, com o aumento de invasões de pescadores ilegais e grileiros, a população caiu significativamente. 

      Recuperação da biodiversidade

      Foram os integrantes da Asproc que trouxeram a ideia do manejo de pirarucu para a assembleia anual da associação. Fazia muito tempo que os moradores tentavam monitorar os lagos de Carauari, mas sem sucesso. Mesmo na comunidade São Raimundo, que fica dentro de uma área protegida, era difícil. Todos que percorreram os lagos eram voluntários e eventualmente tinham que deixar seus postos para trabalhar, a maioria com a extração de produtos florestais, como borracha, açaí, sementes de nozes e farinha.

      Os pescadores ilegais deixavam poucos peixes nos lagos – eles não respeitavam as cotas impostas pelo Ibama e vendiam o pirarucu por valores altíssimos em mercados do Brasil, Colômbia e Peru. Quase não sobrava pirarucu para os moradores pescarem e comerem, muito menos vender. A biodiversidade do município amazônico estava sendo dizimada.

      Quando a Asproc ficou sabendo do problema, ela começou a procurar soluções.

      “É fundamental que as famílias continuem a existir na floresta e continuem protegendo a floresta,” diz Manuel Cosme Siqueira, diretor-tesoureiro da Asproc, uma organização que ele reitera: “Pertence ao povo”.

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        Espécie típica da Amazônia, o pirarucu pode ultrapassar 200 quilos de peso.

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        Durante a temporada de pesca, que dura cerca de dois meses, os comunitários se dividem entre quem sai nos barcos e quem fica nas bases. No Médio Juruá, cada uma das 16 comunidades tem de três a oito dias para pescar.

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        À esquerda: No alto:

        Alguns trabalhadores ficam nas bases, à espera dos barcos, que chegam depois de capturarem dois ou três peixes. O pirarucu é então medido e pesado antes de ser limpo e guardado em gelo para envio ao frigorífico da associação na cidade.

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        O manejo sustentável exige que todos os pirarucus sejam medidos, pesados, tenham o sexo aferido e recebam uma etiqueta única com código de barras para conferência. Todo esse esforço visa evitar a pesca ilegal.

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        Com mais de 30 anos de experiência em ajudar comunidades extrativistas a conservar o meio ambiente e, ao mesmo tempo, gerar renda, a associação decidiu usar seu conhecimento para auxiliar os moradores de Carauari com o manejo do pirarucu.

        Em 2007, a Asproc começou a conversar com duas comunidades do município sobre a possibilidade de montar um plano de manejo e de capacitar seus moradores em cada umas das cinco etapas do processo. Uma delas foi São Raimundo. A comunidade inteira participou e se empolgou.

        Os testes foram tão bem-sucedidos que outras comunidades ficaram ansiosas para participar. Em 2011, o projeto foi lançado oficialmente.

        “Agora todo mundo se preocupa, todo mundo quer preservar, todo mundo quer cuidar [dos lagos]”, diz Cunha.

        Passo a passo

        O primeiro, e talvez mais importante passo, é a proteção do território onde vive o pirarucu, um esforço que representa cerca de 40% do custo do manejo – o que inclui barcos, combustível e salários dos monitores, entre outras coisas. Cada comunidade tem suas particularidades, mas em geral elas fazem rondas estratégicas, alternando os grupos de fiscais que monitoram seus lagos e arredores.

        Em São Raimundo, quatro pessoas monitoram os lagos por vez, cada uma de um núcleo familiar diferente.

        “O número de invasores nos lagos diminuiu justamente porque eles sabiam da intensificação da vigilância,” diz Cunha. “É um trabalho intenso, porque, se a comunidade fraquejar nesse rodízio, vai ter gente lá mexendo no lago, roubando como antes.”

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          O pirarucu consegue enxergar as redes durante o dia. A captura, portanto, costuma acontecer durante a noite.

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          Depois do monitoramento territorial vem a contagem. Os contadores certificados, como Cunha, que realiza o trabalho há quatro anos, são responsáveis pelos números da população de pirarucu enviados ao Ibama, que servem de base para as cotas de pesca nos lagos. Até 30% da população de pirarucu adulto (medindo mais do que 1,5 metros e pesando acima de 40 quilos) de cada lago pode ser pescada. Os juvenis, de 1 a 1,5 metros, também são contabilizados.

          Quando o projeto de manejo de pirarucu começou, em 2011, foram contados 4 mil pirarucus. Em 2021, saltou para 46 mil – um aumento de 1.050%. Os números são uma prova de quão bem o programa está funcionando.

          De acordo com Siqueira, embora as comunidades tenham o apoio técnico da Asproc e de outros parceiros, cada uma é independente, e são os próprios moradores que organizam e dirigem cada temporada do manejo. “Funciona tão bem porque tem todos os entes responsáveis envolvidos nesse processo,” diz.

          Em seguida, tem o planejamento macro da pesca, quando as 16 comunidades que agora fazem parte do projeto se juntam para decidir sobre quem vai pescar em quais datas (este ano, a temporada de pesca está prevista para começar em 28 de agosto e terminar em 28 de outubro) e outros aspectos organizacionais. Também tem o planejamento micro, quando cada comunidade decide quem vai fazer qual tarefa durante a temporada.

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            Duzentos e cinquenta famílias dividem a renda obtida com a venda do pirarucu – estimada em cerca de 1 milhão de reais por temporada.

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            Trabalhador corta um pirarucu no frigorífico da associação na zona urbana de Carauari, no Amazonas. O couro é vendido para confecção de bolsas e calçados.

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            Quando tudo está pronto, cada comunidade tem de três até oito dias para pescar.

            “Nesses dias, envolve todos”, diz Adevaldo Dias, presidente do Memorial Chico Mendes, entidade que apoia comunidades agroextrativistas em todo o Brasil. “Homens, mulheres, jovens, até as crianças vão para o lago para ficarem protegidas pela família, porque a família toda precisa se deslocar da comunidade.”

            Enquanto uns pescam, outros ficam nas bases coordenando os barcos que chegam, normalmente com dois ou três peixes. Todos os pirarucus são medidos, pesados e catalogados antes de serem limpos e enviados para um frigorífico da Asproc na zona urbana do município. Lá são cortados, porcionados, embalados e congelados para serem vendidos.

            “Eu não conheço uma estratégia de proteção tão eficiente quanto essa do manejo do pirarucu”, diz Dias, que afirma que o manejo gira em torno de 1 milhão de reais em renda por temporada, dinheiro dividido entre 250 famílias.

            O manejo de pirarucu está funcionando tão bem em Carauari que a Asproc recebe pedidos de ajuda – particularmente na área de comercialização – de outros municípios que querem implementar projetos semelhantes.

            Para Cunha, os benefícios são óbvios. “O manejo do pirarucu é a única cadeia que dá valor ao trabalho das mulheres”, diz ele. “Na minha comunidade, o valor no final da pesca é dividido em quantidades igualitárias entre os homens e as mulheres.”

            Além disso, trouxe seus lagos de volta à vida. Não só as populações dos pirarucus aumentaram, mas as de outras espécies também, como tambaquis, pirapitingas e tracajás.

            “Quando se protege o ambiente para o manejo do pirarucu,” diz Cunha, “protege-se o pirarucu e toda a biodiversidade que tem dentro daquele ambiente.”

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