Por que os polvos nos lembram tanto de nós mesmos?

Eles mudam de forma e de cor, espirram tinta e usam ventosas como orgãos gustativos. Mesmo assim, dividem semelhanças com os seres humanos.

Por Olivia Judson
fotos de David Liittschwager
Publicado 13 de jun. de 2018, 18:18 BRT, Atualizado 9 de abr. de 2024, 18:40 BRT
Uma assombrosa diversidade de espécies de polvo vive em todos os oceanos, dos trópicos aos polos. O Wunderpus photogenicus prefere as águas tépidas e rasas da região do Indo-Pacífico.
Foto de David Liittschwager no Caldwell Lab, Uc Berkeley

Você está acomodado no fundo do mar, diante da costa da ilha indonésia de Lembeh. Como a profundidade não é muita grande – uns 5 metros –, há bastante luz. A água está morna. Ao redor, o que se veem são ondulações na fina areia cinza-escuro, recoberta, em alguns trechos, por uma espécie de escuma esverdeada. Explorando com mais cuidado, dá para notar uma concha de molusco. Talvez o seu construtor esteja presente. Ou talvez tenha morrido muito tempo atrás, e a concha agora sirva de abrigo para um caranguejo-ermitão, da família dos pagurídeos. A curiosidade leva você a virar a concha de cabeça para baixo. Só então aparece uma fileira de ventosas. E um par de olhos. De repente, um polvo

Um exemplar de Amphioctopus marginatus, também conhecido como polvo-venoso ou polvo-do-coco. Este último nome comum vem do hábito que ele tem de se esconder (e, às vezes, até carregar para uso futuro) em cascas de coco abandonadas. Na verdade, porém, qualquer carapaça grande serve de abrigo – como a concha de um molusco.

Usando algumas das ventosas, o polvo agarra-se às duas metades da concha. Em seguida, como está sendo observado, ele as solta e ergue um pouco o próprio corpo. Dá a impressão de estar avaliando a situação. Você fica parado como uma estátua. Um instante depois, o polvo sai todo do interior da concha. 

O corpo dele é do tamanho do nosso dedo polegar, os tentáculos talvez três vezes maiores. Ao se mover para a areia, adquire uma tonalidade cinza-escuro, tal como a do fundo. Está indo embora? Nem pensar. Vários dos seus tentáculos serpenteiam pelo solo, o resto do corpo ainda está sobre a concha. Com um golpe único, ele vira a concha e rapidamente de volta para dentro.

Este polvo fêmea – de uma espécie ainda não descrita pelos cientistas – cuida dos seus ovos. Assim que eclodirem, ela vai morrer: na maioria das espécies de polvo, as fêmeas fazem uma única desova em sua vida. Isso significa que os filhotes têm de se virar sozinhos desde o princípio.
Foto de David Liittschwager no Caldwell Lab, Uc Berkeley

Sem querer perturbá-lo mais, você está prestes a nadar para outro lugar quando nota um ligeiro movimento. O animal expeliu um jato d’água, removendo a areia acumulada sob a borda da concha. Agora surge uma fresta ínfima entre a concha e o fundo do mar. Ali reaparecem os olhos. Você aproxima a sua máscara e, por um instante, os olhares se encontram. De todos os invertebrados – ou seja, dentre todos os animais que não têm coluna vertebral –, os polvos são os que mais se parecem conosco

Em parte, isso se deve ao modo como entretêm o nosso olhar, como se estivessem nos examinando. (Isso também os distingue de muitos vertebrados: a maioria dos peixes não devolve o nosso olhar.) E parte tem a ver com a destreza deles. Os seus oito braços ou tentáculos estão cobertos de centenas de ventosas; assim, eles podem manipular coisas, como abrir conchas, desmontar o sistema de filtragem em aquários ou desatarraxar tampas de jarras. Isso os distingue de mamíferos como os golfinhos, que, por mais inteligentes que sejam, são limitados por sua anatomia.

Por outro lado, os polvos são tão estranhos quanto qualquer ET que alguém possa imaginar. Para começar, têm três corações, que bombeiam sangue azul. Quando se sentem ameaçados, esguicham uma nuvem de tinta e disparam na direção oposta. Eles não têm osso. As únicas partes rijas em seu corpo são o bico, parecido com o dos papagaios, e uma cartilagem ao redor do cérebro. 

Por isso é fácil desaparecerem por fendas apertadas – uma habilidade que lhes permite escapar de quase todos os aquários. Não apenas as ventosas podem todas ser acionadas de modo independente como também cada uma está recoberta de sensores gustativos – imagine o seu corpo revestido de centenas de línguas. Além disso, a pele dos polvos contém células sensíveis à luz.

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    Atarracado, com o corpo alongado e tentáculos reduzidos, o Octopus pallidus vive ao largo da costa sudeste da Austrália, onde passa as noites se alimentando de mariscos.
    Foto de David Liittschwager

    Agora você está de pé em uma sala pequena e sem janelas no Museu de História Natural em Londres, na Inglaterra. À sua frente, sobre uma mesa onde se amontoam pastas, está uma lajota de pedra de tonalidade clara e granulação fina. Ao lado, Jakob Vinther, um corpulento dinamarquês de cabelo loiro e barba arruivada, aponta para a lajota. “Aquela coisa ali é a glândula de tinta”, explica Vinther, um especialista de invertebrados fósseis da Universidade de Bristol, na Grã-Bretanha. “Na verdade, é pigmento – melanina preservada quimicamente.”

    A pedra está nitidamente marcada com a impressão de um polvo. Não é grande: quando vivo, o animal teria uns 25 centímetros de comprimento. Dá para reconstituir o manto − a estrutura similar a uma bolsa que abrigava guelras, corações e outros órgãos vitais. A mancha escura no meio é a glândula de tinta. Os tentáculos estão pendentes, agrupados frouxamente, cada qual marcado por fileiras de círculos. “E essas pequenas estruturas arrendondadas”, comenta Vinther, “são as ventosas.”

    Fósseis de polvos são raros: os animais de corpo mole em geral não deixam vestígios. Esse fóssil tem uns 90 milhões de anos, o que o torna um dos polvos mais antigos que se conhece. Quando ele vivia – foi encontrado na costa do Líbano –, faltavam 25 milhões de anos para que os dinossauros se extinguissem.

    Assim como os seres humanos são mamíferos, os polvos são cefalópodes. O termo é de origem grega e significa “cabeça-pé” – uma alusão à estranha anatomia do animal, na qual os tentáculos estão fixados diretamente num dos lados da cabeça, enquanto, do outro lado, sai o “tronco”, o manto em forma de bolsa.

    O sistema nervoso do polvo-comum, Octopus vulgaris, é bem maior e mais complexo que o da maioria dos invertebrados. Mas será que ele consegue pensar? Os polvos têm consciência, como sugerem alguns cientistas e filósofos? Algum dia conseguiremos saber?
    Foto de David Liittschwager no Florida Keys Marine Life

    Os cefalópodes, por sua vez, são um tipo de molusco – um grupo que inclui os caracóis e as lesmas, assim como os mariscos e as ostras. Os cefalópodes encontram-se entre os primeiros predadores a caçar nos mares primitivos. Há mais de 500 milhões de anos – bem antes de começar o desenvolvimento dos peixes –, eles evoluíram a partir de um animal dotado de carapaça. Na verdade, se você voltar no tempo até 450 milhões de anos atrás, alguns dos predadores mais ferozes nos oceanos seriam cefalópodes com carapaças. Alguns deles eram enormes: a carapaça do Endoceras giganteum, há muito extinto, pode ter tido mais de 5 metros de comprimento.

    Atualmente conhecemos mais de 750 espécies vivas de cefalópode. Além das cerca de 300 de polvo, que também incluem um cortejo de lulas e sibas (ambos têm dez tentáculos), assim como algumas poucas espécies de náutilo – animais peculiares que possuem 90 tentáculos e vivem em conchas. Os polvos modernos formam um grupo diversificado. O polvo-gigante-do-pacífico (Enteroctopus dofleini) é, como diz o nome, enorme. Cada tentáculo chega a ter 2 metros de comprimento, com o animal todo pesando mais de 100 quilos. Outros, como o Octopus wolfi, são minúsculos, pesando menos de 30 gramas. Alguns exibem um manto bem pequeno, mas tentáculos muito compridos; outros são mais bem proporcionados. A maioria arrasta-se desajeitadamente por corais ou areia, nadando apenas para transpor obstáculos ou escapar de um predador, mas há também aqueles que se deslocam nas correntes marítimas.

    Os polvos são encontrados desde os trópicos até os polos, tanto em recifes de coral como em baixios arenosos, em lagoas de maré e nas profundezas. Isso, contudo, se você conseguir avistá-los.

    De volta à ilha de Lembeh, Você está nadando sobre um recife raso. O guia – um sujeito chamado Amba – faz sinal com a mão para indicar que achou um polvo. Um grande. Onde? Você olha em volta. Nada. Apenas rochas, cobertas de corais de cores variadas. Amba insiste, repetindo o gesto: polvo, enorme! Você olha para o lugar que ele aponta. Não, nada. Opa. Espera aí. Melhor ver de novo. Aquele trecho de coral escuro e aveludado, mais adiante. Aquilo não é coral nenhum. É um polvo-diurno, o Octopus cyanea.

    Este Abdopus aculeatus acabou de espirrar tinta. Isso ocorre quando os polvos se sentem ameaçados; a tinta forma uma mancha escura que distrai os predadores. Essa característica evolutiva é antiga: glândulas de tinta são reconhecíveis em fósseis de polvos de 300 milhões de anos.
    Foto de David Liittschwager no Dive Gizo, Ilhas Salomão

    Os polvos e as sibas que vivem em águas rasas e caçam durante o dia são os campeões mundiais da camuflagem. Claro que a capacidade de se disfarçar não é nada incomum entre os animais: muitos deles evoluíram de modo a adquirir a aparência de outra coisa. Aquela esponja alaranjada ali adiante, por exemplo, não é esponja, e sim um peixe-sapo, da família dos antenariídeos, à espreita de uma presa desavisada. A folha que passa sobre a areia não é folha, mas um peixe cuja evolução o levou a se parecer com uma folha. Essa pequena anêmona-do-mar é um verme marinho que evoluiu de modo a se exibir como anêmona. Para todos os lados, trechos do leito arenoso se erguem e se movem (minúsculos caranguejos com carapaças de cores idênticas às da areia) ou saem nadando (peixes achatados que se confundem com o leito marinho).

    O que distingue os polvos e as sibas (e, em menor medida, as lulas) é o fato de que conseguem se disfarçar. É como se usassem a própria pele para gerar imagens tridimensionais do que existe ao redor. E como eles fazem isso?

    A camuflagem dos polvos baseia-se em três elementos principais. Um deles é a cor. Os polvos produzem cores por meio de um sistema de pigmentos e de refletores. Os pigmentos são mantidos em milhares de bolsas na camada superficial da pele. Quando fechadas, tais bolsas se assemelham a pintas microscópicas. Para exibir o pigmento, o polvo contrai os músculos ao redor da bolsa, forçando assim a abertura e revelando a cor. Dependendo de qual grupo de bolsas é aberto ou fechado, o polvo consegue gerar padrões como faixas, listras ou manchas. Quanto às células refletoras, elas podem ser de dois tipos. O primeiro reflete de volta a luz incidente – com isso fazendo a pele parecer branca sob luz branca, vermelha sob luz vermelha e assim por diante. Já o segundo tipo funciona como uma bolha de sabão viva, que exibe cores distintas ao ser vista de ângulos diferentes. Em conjunto, as células refletoras e as bolsas de pigmentos permitem ao polvo gerar enorme variedade de cores e de padrões.

    O segundo elemento importante é a textura da pele. Graças à contração de músculos específicos, os polvos conseguem fazer com que a pele fique macia, rugosa ou pontiaguda. O efeito pode ser bem acentuado. A espécie Abdopus aculeatus cria estruturas filamentosas temporárias que dão a impressão de que o bicho não passa de uma maçaroca de alga.

    O terceiro fator de camuflagem é a postura. O modo como um polvo mantém o corpo pode torná-lo mais ou menos visível. Algumas espécies, por exemplo, ficam com o corpo todo embolado como se fosse um pedaço de coral e, usando apenas dois dos braços, rastejam lentamente através do fundo do mar.

    Como os polvos se tornaram tão magistrais nos disfarces? A resposta se deve à evolução. No decorrer de dezenas de milhões de anos, aqueles espécimes que se revelaram mais competentes nas camuflagens tinham mais probabilidade de escapar aos predadores e continuar se reproduzindo. E muitos animais – entre os quais enguias e golfinhos – são entusiásticos consumidores de polvos. O fato de não terem ossos permite que os predadores comam o animal inteiro. Como diz Mark Norman, especialista em cefalópodes vivos do Museu Victoria, em Melbourne, na Austrália, “esses animais são pura carne – como se fossem filés-mignons vivos”.

    Agora está na hora de tratarmos de outro tema: o do sistema nervoso do polvo. Um caracol comum tem apenas 10 mil neurônios; uma lagosta, por volta de 100 mil. As abelhas e as baratas possuem 1 milhão de células nervosas. Portanto, os 500 milhões de neurônios do polvo comum, o Octopus vulgaris, colocam a espécie em um patamar completamente distinto. Em termos de quantidade de neurônios, o polvo é mais bem dotado que o camundongo (80 milhões), e quase empata com o gato (cerca de 700 milhões). Todavia, enquanto nos vertebrados a maioria dos neurônios se concentra na cabeça, nos polvos dois terços deles estão nos tentáculos. Além disso, o funcionamento do sistema nervoso consome muita energia, e ele só evolui e cresce quando os benefícios superam os custos. Então, o que acontece com os polvos?

    De acordo com Peter Godfrey-Smith, biólogo especialista em polvos, vários fatores podem ter contribuído para que o polvo desenvolvesse um sistema nervoso tão complexo. O primeiro é o seu corpo, que evoluiu adquirindo uma complexidade incomum – o sistema nervoso acompanha essa evolução. Desprovido de esqueleto, um polvo pode estender qualquer tentáculo em qualquer direção a qualquer momento. Isso assegura a ele uma enorme gama de movimentos possíveis; além do mais, cada tentáculo pode fazer algo diferente no mesmo instante. 

    A visão de um polvo dedicado à caça é, portanto, algo impressionante. Ele pode estar com todos os tentáculos estendidos sobre a areia, cada qual explorando buracos. Se um dos tentáculos surpreende um camarão, outros dois ficam prontos para agarrar a presa. Os polvos também dispõem de todas aquelas ventosas que podem se mover com autonomia, e isso sem falar dos órgãos e mecanismos para controlar a cor e a textura da pele. Ao mesmo tempo, o animal desenvolveu a capacidade de captar e processar uma grande quantidade de informação sensorial: dados gustativos e táteis obtidos pelas ventosas, a gravidade captada por estruturas conhecidas como “estatocistos”, assim como todas as informações coletadas por olhos sofisticados.

    Além de tudo isso, muitos polvos precisam circular por cima, à volta e pelo meio dos recifes. Sem dispor de proteção corporal, necessitam manter-se em permanente alerta para eventuais predadores e, quando não basta a camuflagem, têm de estar prontos para buscar abrigo. Por fim, os polvos são caçadores velozes, que apresam e devoram uma grande variedade de animais. Corpos sem ossos, ambientes complexos, dietas variadas, atenção para com os predadores – todos são fatores que podem estimular a evolução da inteligência.

    Porém, mesmo não havendo dúvida de que os polvos contam com um sistema nervoso complexo, são de fato inteligentes? Os sinais de inteligência em aves e mamíferos, tais como a capacidade de usar ferramentas, com frequência não se aplicam aos polvos, pois o corpo todo deles funciona como uma ferramenta. Eles não precisam de ferramenta para explorar uma fenda – basta introduzir ali um dos tentáculos – ou para abrir uma ostra.

    Os polvos são mestres da camuflagem, rapidamente mudando de aparência de modo a se confundir com o ambiente. As pintas da espécie Callistoctopus alpheus são manchas repletas de pigmentos. Quando todas ficam abertas, o animal adquire uma cor avermelhada com pintas brancas.
    Foto de David Liittschwager no Queensland Sustainable Sealife, Austrália

    Feita essa ressalva, experimentos mostraram que os polvos comuns conseguem se sair bem em tarefas que exigem aprendizado e memória – dois atributos que associamos à inteligência. Na verdade, uma região do cérebro do polvo, o lóbulo vertical, está dedicada a tais tarefas. As espécies apresentam algumas diferenças no que tange à organização do cérebro e, como poucas foram estudadas, ninguém sabe se todas são igualmente talentosas. Segundo Roy Caldwell, da Universidade da Califórnia em Berkeley, “algumas espécies com que lidei no laboratório pareciam burras como uma porta”. Por exemplo? “O Octopus bocki, um polvo minúsculo... Ele não consegue fazer muita coisa.”

    Mas talvez o fato de serem inteligentes importa menos que a constatação de que são todos absolutamente assombrosos. E fascinantes.

    Vamos fazer um derradeiro mergulho. Final da tarde em Lembeh. Sob a superfície, você observa a desova de um par de peixinhos. Uma enguia está enrodilhada em um buraco. Um caranguejo-ermitão passa desajeitado. E ali, sobre uma rocha, dá para notar um pequeno polvo Abdopus aculeatus.

    Assim que o seu olhar o encontra, ele começa a se mover, levitando como um iogue de oito braços. Ao descer pela encosta rochosa, um dos tentáculos topa com um orifício minúsculo e, uma parte do corpo após a outra, todo o animal escorre por ali. Desaparece. Mas não de todo. A ponta de um tentáculo assoma para fora do orifício, tateia em volta, agarra umas pedrinhas e as usa para fechar a entrada. Pronto. Agora, é só desfrutar a noite tranquila.

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