Veja fotos tiradas em visitas ilegais à Zona Morta de Chernobyl
Grupo faz viagens ilegais à cidade radioativa e abandonada que recebeu o pior desastre nuclear da história.
Cerca de 200 toneladas de material radioativo apodrecem sob uma estrutura de contenção de aço dentro de Chernobyl, local da pior catástrofe nuclear da história. Sem peso, cheiro e aparência aos olhos humanos, ele penetrou no solo e varreu toda a paisagem angustiada.
Hoje, o raio de 30 km em torno da área mais contaminada – a zona de exclusão – é um mausoléu da loucura tecnológica do homem. Sua ruína tornou-se um símbolo de ideais utópicos e fracassados da União Soviética, um aviso da capacidade da humanidade de causar estragos ecológicos e um lembrete tanto de nossa fragilidade como de nossa resiliência.
Trinta e um anos após ter sido designada como uma zona de exclusão, os vivos mais uma vez rondam seus corredores. Ao longo da última década, um número cada vez maior de stalkers (perseguidores ou bisbilhoteiro) autoproclamados entra regularmente na zona de forma ilegal. Camuflados e protegidos pela escuridão, eles navegam quilômetros de floresta irradiada, dormem em vilarejos abandonados e observam o nascer do sol sobre os telhados barrocos em estilo Brezhnev na cidade em ruínas de Pripyat.
“Você se sente como a última pessoa na Terra”, diz Eugene Knyazev, que estima que, ao longo de 50 viagens, já passou um ano de sua vida na zona de exclusão. “Você anda por vilarejos, cidades, estradas, todos vazios. É uma sensação mágica”.
O viajante pós-nuclear
O termo stalker teve origem no romance de ficção científica de 1971, Piquenique na estrada, de Arkady e Boris Strugatsky, no qual invasores alienígenas deixam artefatos perigosos em áreas conhecidas como zonas. Os stalkers infiltram essas zonas altamente regulamentadas para roubar e vender os objetos no mercado negro. A história foi, posteriormente, adaptada no filme de Andrei Tarkovsky, Stalker.
Publicado 15 anos antes do desastre de Chernobyl, o livro de Strugatskys mostrou-se profético.
Em 26 de abril de 1986, uma série de erros na usina de Chernobyl se transformou no pior desastre nuclear da história (somente Fukushima partilha de sua classificação máxima de nível 7). Uma explosão no reator número 4 lançou uma nuvem de poeira radioativa que contaminou milhões de hectares em toda a Ucrânia, Bielorrússia e Rússia, e forçou a evacuação de cerca de cem mil pessoas. Além gravidade que teve entre humanos, as consequências políticas e econômicas foram profundas e duradouras.
Inspirado nas memórias de Chernobyl – reais e imaginadas –, surgiu uma nova subcultura. Grupos organizados com nomes, símbolos e rituais começaram a entrar ilegalmente na área.
“[Stalkers] enxergam seu hobby como um escapismo em um mundo excessivamente regulamentado: uma fuga para outra realidade em que fragmentos do colapso social podem ser tocados e contemplados. Muitos desses lugares, inclusive a zona, estão cercados por um perímetro, e há implicações políticas por sua transgressão, para além da pura emoção que vem do proibido”, diz Stuart Lindsay, pesquisador de Chernobyl na Universidade de Stirling.
“Você vai a um dos maiores museus da vida soviética – você pode, literalmente, tocar a história”
Stalkers veem-se tanto como estudantes de História como documentaristas – evitando que a memória de Chernobyl caia no esquecimento enquanto se libertam da pressa incessante da cidade.
“Você vai a um dos maiores museus da vida soviética – você pode, literalmente, tocar a história”, diz Alexander Sherekh, um físico que já fez a viagem 11 vezes. “Você escapa da semana de 40 horas de trabalho, da vida em um cubículo de concreto, e entra em um mundo completamente diferente. Em vez dos problemas da sociedade e da onipresença de smartphones e das redes sociais, é uma oportunidade de estar só consigo mesmo”.
Espaço cibernético vs. realidade
O videogame ucraniano S.T.A.L.K.E.R., um jogo em primeira pessoa passado na Zona Morta, foi lançado em 2007 e tem influenciado o movimento.
“Nós nunca encorajamos os jogadores a visitarem o lugar ilegalmente – é preciso diferenciar entre o mundo virtual do jogo e o real”, diz Oleg Yavorsky, um dos criadores do jogo. “Obviamente, o desejo de ver com os próprios olhos é bastante forte”.
Os críticos tanto do jogo como do movimento stalker argumentam tratar-se de um capricho juvenil – a redução da tragédia real a um entretenimento pós-apocalíptico de ficção científica. A realidade tem mais matizes.
“Muitos dos sobreviventes originais sentiam que eram vistos como animais ou aberrações de circo pelas pessoas de fora – sobretudo pela mídia ocidental”, diz Lindsay. “A segunda geração de sobreviventes – que é mais numerosa e amplamente estabelecida que a de liquidatários iniciais – está agora passando por suas próprias questões de saúde relacionadas a Chernobyl. Na minha opinião, as pessoas mais velhas se contentam em permitir que os mais jovens se aproximem da zona usando as ferramentas de seu tempo”.
A maioria dos stalkers concorda que tem uma conexão significativa com o lugar – o que alguns consideram exploração eles veem como homenagem.
“S.T.A.L.K.E.R. [foi destinado a] advertir a humanidade sobre os perigos de se brincar com forças desconhecidas da natureza”, diz Yavorsky. “Ao mesmo tempo, o jogo deveria gerar interesse da audiência jovem pela história. Esperamos que a lição do acidente de Chernobyl seja lembrada, assim como a ação das pessoas que pagaram com suas vidas para nos salvar das consequências nucleares”.
“Sem dosímetro, sem radiação”
Três décadas após a cidade ter sido abandonada às pressas, a vegetação exuberante tomou conta das ruínas e a vida selvagem circula livremente. Embora os baixos níveis de radiação de fundo tornem relativamente segura a visitação dos turistas nas rotas sancionadas, os stalkers são conhecidos pela negligência de padrões de segurança – ingerem água não filtrada, comem frutas e manuseiam objetos contaminados.
Na verdade, “sem dosímetro, sem radiação” é um provérbio dos stalkers.
Cientistas como Vadim Chumak, chefe do Departamento de Dosimetria e Higiene de Radiação no Centro Nacional de Pesquisa em Medicina de Radiação, desafiam essa noção. “Os stalkers pertencem à mesma categoria de seres humanos que os praticantes de base jumping e os que nadam com tubarões – esse tipo de personagem é viciado em adrenalina e atraído por qualquer tipo de risco e perigo”, ele diz. “Como a radiação não tem cheiro ou gosto, evolutivamente nós não possuímos sensores biológicos inatos para sua detecção. Como resultado, a sensação de risco associada à radiação ionizante é naturalmente tendenciosa. Se o praticante de base jumping se espatifa no chão, é algo bem definitivo. Se o câncer se desenvolver 15 anos após a exposição, é menos óbvio”, ele diz.
“Mesmo que a radiação seja razoavelmente baixa, estruturas instáveis, animais selvagens e poços, rios e lagos ocultos podem representar uma ameaça ainda maior”, diz Chumak.
Apesar do desprezo pela própria saúde, os stalkers reconhecem a ameaça de contaminação dentro de suas comunidades. “A coisa mais absurda na zona é um homem e sua sede de lucro”, diz Knyazev. “As pessoas colocam à venda a floresta, o metal contaminado dos cemitérios de tecnologia radioativa, e os vendem como matérias-primas. Isso ameaça com novos cânceres aqueles que terão contato com esses materiais. Afinal, com a floresta você pode fazer berços e com o ferro, brinquedos”.
Desde 2017, existem 448 reatores nucleares em operação em todo o mundo e quase 60 em construção.
Pierpaolo Mittica é fotógrafo colaborador do Parallelozero e está baseado em Veneza, Itália. Siga-o no Instagram @pierpaolomittica.