99% destas tartarugas estão nascendo fêmeas – veja por que

Uma crise toma conta do maior berçário de tartarugas-marinhas do Oceano Pacífico, graças às mudanças climáticas. Será que esse problema se tornará global?

Por Craig Welch
Publicado 9 de jan. de 2018, 18:17 BRST, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
tartaruga-verde
Mais trabalho precisa ser feito para analisar o desequilíbrio no sexo das tartarugas-verdes em outras partes do mundo, como nas Ilhas Galápagos.
Foto de Chris Newbert, Minden Pictures, National Geographic Creative

Os caubóis de tartaruga pousaram na ilha Ingram pensando em sexo e calor.

As tartarugas-verdes do Pacífico passam anos nesse campo de alimentação no norte da Austrália, engordando com gramíneas do mar antes de se dirigirem para áreas de nidificação para acasalar e colocar ovos. Os cientistas simplesmente queriam saber: quais desses répteis eram do sexo masculino e quais eram do sexo feminino?

Como é difícil identificar o sexo de uma tartaruga-marinha apenas olhando, os pesquisadores realizaram um “rodeio de tartaruga”. Eles ficavam em cima de barcos e partiam para cima das tartarugas, segurando nas carapaças dos animais como caubóis. Depois de conduzir suavemente cada tartaruga para a costa, eles recolheram amostras de DNA e de sangue e fizeram pequenas incisões para inspecionar as gônadas das tartarugas.

Como o sexo de uma tartaruga-marinha é determinado pelo calor da areia onde o ovo foi incubado, os cientistas já suspeitavam que veriam mais fêmeas que machos. Afinal, as mudanças climáticas elevaram a temperatura do ar e do mar, o que, nessas criaturas, favorece a prole feminina. A suspeita se confirmou, mas não na proporção que imaginavam. A pesquisa mostrou que o as tartarugas-marinhas fêmeas do maior e mais importante berçário de tartarugas do Oceano Pacífico superam o número de machos em, pelo menos, 116 para 1.

“Isso é extremo, extremo com letras maiúsculas, extremo usando ponto de exclamação”, disse o pesquisador de tartarugas Camryn Allen, que trabalha na Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (NOAA, na sigla em inglês), no Havaí. "Estamos falando de alguns machos em relação a centenas e centenas de fêmeas. Nós ficamos chocados. "

A pesquisa publicada na segunda-feira por Allen e seus colegas é apenas a mais recente a sugerir que o aumento das temperaturas ao redor do mundo pode transformar populações de tartarugas-marinhas em fêmeas. Mas trata-se do ponto de vista mais detalhado sobre a importância desse problema e  levanta novas questões sobre os riscos globais para as tartarugas-marinhas e outras espécies dependentes da temperatura – de jacarés e iguanas aos peixes de água doce da ordem atheriniformes, importantes em muitos riachos e estuários.

“Eu trabalho com uma das maiores populações de tartarugas do mundo e todos tendem a pensar que isso significa que as coisas estão bem”, diz o biólogo marinho Michael Jensen, principal autor do estudo e pesquisador do Centro de Ciências da Pesca do Sudoeste da NOAA em La Jolla, Califórnia. “Mas o que acontecerá em 20 anos, quando literalmente não haverá mais machos em idade adulta? Existem machos suficientes para sustentar a população?”

Era muito pior do que pensávamos

As tartarugas-verdes da Austrália Oriental – que podem atingir 500 quilos com carapaças em forma de coração de 1,20 metros ou mais de diâmetro – se acasalam principalmente em apenas dois lugares, um arquipélago perto de Brisbane ao longo da parte sul da Grande Barreira de Corais e uma ilhazinha remota com areia e grama a 1.200 quilômetros ao norte, chamada de ilha de Raine. Poucos anos depois dos filhotes saírem dos ovos em qualquer um desses lugares, eles se misturam e nadam em águas rasas de pequenos trechos do Mar de Coral, onde podem ficar por um quarto de século ou mais. Depois, voltam às duas regiões onde nasceram para se acasalar. Eles retornarão às mesmas fontes de alimentação, várias vezes por décadas.

Jensen queria saber se as mudanças climáticas já tinham alterado a proporção de filhotes machos e fêmeas. Usando testes genéticos, ele descobriu que poderia rastrear tartarugas de todas as idades de uma área de alimentação até locais de acasalamento específicos. Ainda assim, seus dados demográficos não teriam um detalhe importante: o sexo. Só depois que uma tartaruga amadurece é possível dizer o seu sexo olhando de fora. (Machos adultos têm caudas ligeiramente mais longas.) Até então, as tartarugas podem ter décadas de idade. Assim, os cientistas costumam utilizar a laparoscopia, colocando um tubo fino em cada animal para ver seus órgãos. Mas isso é invasivo, e não tão prático, se você pretende examinar centenas de criaturas. Jensen ficou sem ação.

Em uma conferência de tartarugas no México, ele encontrou Allen, um ex-pesquisador de coalas. Allen usou níveis de testosterona para rastrear gravidezes nos marsupiais. Depois, desenvolveu um método para identificar o sexo de espécies marinhas com base em níveis hormonais. Tudo que ela precisava era um pouco de sangue do animal.

A dupla juntou-se a outros cientistas, incluindo o especialista australiano em tartarugas Ian Bell. Eles colheram sangue de tartarugas na Grande Barreira de Corais e realizaram alguns exames de laparoscopia para confirmar a precisão dos métodos de Allen. Depois, cruzaram os dados demográficos com os dados de temperatura nas praias de acasalamento para examinar tartarugas de diferentes idades. O resultado foi surpreendente.

"Nós imediatamente dissemos, 'Caramba!'", disse Allen. "Era muito pior do que pensávamos."

Parece que a Ilha de Raine tem produzido tartarugas fêmeas quase que exclusivamente há, pelo menos, 20 anos. Isso não é pouco. A ilha de Raine – com 32 hectares além dos recifes de corais no litoral – hospeda um dos maiores berçários de tartarugas na Terra, onde mais de 200 mil indivíduos chegam para formar ninhos. Durante a alta temporada, 18.000 tartarugas podem se instalar de uma só vez. E essas são apenas as fêmeas.

Como os cientistas também conseguiram determinar as idades aproximadas das tartarugas amostradas, eles também fizeram outra descoberta. No trecho norte da Grande Barreira de Corais, onde o aumento do calor levou a um significativo branqueamento dos corais nos últimos anos, a proporção de fêmeas em relação a machos cresceu muito mais ao longo do tempo. As tartarugas que surgiram em torno dos anos 1970 e 1980 também eram principalmente fêmeas, mas apenas em uma proporção de 6 para 1.

“É um trabalho inovador”, diz Brendan Godley, especialista em tartarugas-marinhas e professor de ciência de conservação na Universidade de Exeter. Ele não estava envolvido no estudo. O escopo – abrange todo o comprimento da Grande Barreira de Corais – e a abordagem multidisciplinar tornam a pesquisa altamente valiosa, diz ele.

Igualmente importante é o que Jensen e Allen encontraram no sul. Lá, as tartarugas perto de Brisbane – onde as temperaturas não aumentaram significativamente e os corais permanecem saudáveis – estão bem melhores. As tartarugas fêmeas superam os machos por apenas 2 para 1.

“Isso, combinado com alguns modelos computacionais, mostra que as praias mais frias no sul ainda estão produzindo machos, mas que no norte, mais quente, existe quase que exclusivamente a incubação de fêmeas”, diz Godley. “Essas descobertas indicam claramente que as mudanças climáticas estão mudando muitos aspectos da biologia na vida selvagem.”

Temperaturas elevadas fazem todas tartarugas-verdes nascerem fêmeas
As temperaturas mais altas na costa da Austrália parecem afetar as populações de tartarugas-verdes ao transformar quase todos os filhotes fêmeas. 

Mas o quão generalizado é esse fenômeno, e quais as consequências?

As temperaturas estão mudando incrivelmente rápido

Por enquanto, ninguém sabe.

Como as tartarugas-marinhas macho costumam se acasalar com mais de uma fêmea, e os machos geralmente se acasalam com mais frequência, uma ligeira inclinação feminina pode ser benéfica. Uma observação recente de 75 berçários de tartarugas-marinhas em todo o mundo mostrou que a proporção de fêmeas para machos era de aproximadamente 3 para 1. Na verdade, sabe-se que algumas populações de tartarugas já produzíam menos machos do que fêmeas há mais de um século. A questão, no entanto, é: quanto disso mudou e quanto é demais?

As tartarugas-marinhas existem há 100 milhões de anos e as temperaturas aumentaram e caíram durante esse período. Além disso, após décadas de declínio por causa de caça, poluição, doenças, desenvolvimento urbano, perda de habitat e captura acidental em pesca comercial, muitas populações em todo o mundo recentemente mostraram sinais de melhora.

“Mas agora as temperaturas estão mudando incrivelmente rápido”, diz Jensen. “A evolução exige muitas gerações para que os animais se adaptem. Mas esses animais vivem por 50 anos ou mais, e as coisas estão mudando dramaticamente dentro do ciclo de uma vida.”

Na ilha de Raine, por exemplo, o aumento do nível do mar inundou locais de nidificação, afogando os ovos. A erosão da praia cria pequenos penhascos, e fazem com que tartarugas adultas caiam de costas e morram, incapazes de se virar. As autoridades australianas estão gastando milhões de dólares na restauração da ilha para melhorar a vida das tartarugas.

Mesmo assim, cientistas preveêm há pelo menos 35 anos que o equilíbrio entre machos e fêmeas das sete espécies de tartarugas marinhas – tartaruga-verde, tartaruga-comum, tartaruga-de-couro, tartaruga-de-pente, tartaruga-marinha-australiana, tartaruga-olivácea e tartaruga-de-kemp – estaria extremamente vulnerável às mudanças climáticas. Os répteis são tão sensíveis à temperatura que um aumento de apenas alguns graus Celsius poderia, em muitos lugares, acabar com a produção de filhotes machos. Se as temperaturas subirem demais, as coisas realmente pioram – os ovos literalmente cozinham em seus ninhos.

Antes da pesquisa mais recente, no entanto, a maioria dos estudos sugeriu que a feminização excessiva não representaria uma ameaça até o final do século 21, e pouco trabalho havia sido feito para examinar o que já está acontecendo. Em pesquisa realizada há dois anos em uma pequena porção de tartarugas-verdes em San Diego, Allen descobriu que 65% eram do sexo feminino. Entre os jovens, esse número subiu para 78%. Enquanto isso, algumas tartarugas-de-couro na Costa Rica e tartarugas-comuns da Flórida e alguns outros lugares, como a África Ocidental, mostraram um aumento na tendência de fêmeas. Mas nenhum desses trabalhos examina as populações na mesma escala do trabalho de Jensen e Allen.

Mesmo assim, determinar quando o número de machos pode cair demais é difícil. A resposta pode mudar de acordo com a espécie e a localização. Além disso, o próprio fator que determina o sexo – a temperatura – também pode ser impactado por condições locais. No arquipélago de Chagos, no oeste do Oceano Índico, grandes tempestades que esfriam as areias, sombras de árvores costeiras e praias estreitas que forçam as tartarugas-de-pente a se aninharem perto da água, ajudam a manter uma proporção saudável de filhotes machos. No Caribe, os cientistas alertam que as tartarugas-marinhas correm risco por causa do desmatamento, pois isso reduz a sombra que mantém as praias boas o suficiente para produzir machos.

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    A parte assustadora

    Tudo isso torna a pesquisa da Grande Barreira de Corais muito mais convincente, diz Nicolas Pilcher, cientista de tartarugas-marinhas, que não fez parte do estudo. Lá, a maioria das praias não oferece sombra, por isso a relação entre clima e os índices de sexo é mais clara. Além disso, é provável que o número de tartarugas afetadas esteja nas centenas de milhares. Nenhum estudo mostrou uma razão tão desproporcional em um lugar tão importante, em parte porque até agora ninguém sabia como fazê-lo.

    “É um lugar único por dois motivos. Primeiro, porque a população da ilha de Raine é tão grande que o impacto potencial da perda será enorme. Segundo, porque os autores puderam comparar com dados do passo e mostraram que, antigamente, houve uma distribuição mais uniforme dos sexos”, diz Pilcher.

    O que preocupa Allen é o que sua pesquisa sugere sobre milhares de tartarugas-marinhas em todo o mundo que ainda não foram estudadas dessa forma – praticamente todas. Ela e Jensen planejam continuar aplicando as técnicas em novos locais de nidificação e já coletaram amostras em Guam, Havaí e Saipan.

    “A parte norte da Grande Barreira de Corais abriga uma das maiores populações geneticamente distintas de tartarugas-marinhas do mundo”, afirma Allen. "O que me assusta, porém, é pensar em aplicar esse problema às populações onde os números já são extremamente baixos.”

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