Milhares de pinguins estão morrendo nas praias brasileiras - muitos com lixo no estômago
Uma máscara facial encontrada no estômago de um pinguim-de-magalhães no litoral de São Paulo acende novo alerta sobre a poluição do oceano.
Pinguim-de-magalhães encontrado morto durante patrulhamento de rotina na praia da Aparecida, em Santos (SP). Todo ano, milhares de pinguins são recolhidos sem vida nas praias brasileiras e levados para necropsia, onde é comum encontrar estômagos repletos de lixo.
Gabriel Sintoni Nabi, zootecnista do instituto Gremar, analisa o corpo de um pinguim-de-magalhães a fim de entender como ele pode ter morrido, na praia da Aparecida, em Santos (SP).
Pinguins-de-magalhães são fofos. E as imagens de vários deles soltos de gaiolas e caminhando lentamente rumo ao mar – às vezes até escoltados – em praias do litoral do Paraná e Santa Catarina, quase dão diabetes de tão doces.
No entanto, visto que milhares de pinguins chegam todos os anos por aqui, a realidade é mais triste: a maior parte aparece morto ou morre pouco depois de serem resgatados. Levados para necropsia, muitos são encontrados com a barriga cheia de lixo – pedaços de cordas de nylon, canudos e até o que devia nos proteger do novo coronavírus.
Em 9 de setembro, dois dias depois do feriado da Independência, o Instituto Argonatua encontrou uma máscara facial no estômago de um pinguim recolhido já morto na praia de Juquehy, município de São Sebastião, em São Paulo. “Nós já vínhamos alertando para o aparecimento de máscaras, e esse caso é a prova inequívoca de que esse tipo de resíduo causa mal e mortalidade também na fauna marinha”, disse o oceanógrafo Hugo Gallo Neto, diretor-presidente do instituto, em nota.
Este pinguim foi recolhido sem vida na praia de Juquehy, em São Sebastião (SP), depois de um feriado da independência que levou multidões ao litoral. Levado para necropsia, pesquisadores constataram a presença de uma máscara facial no estômago da ave.
O Argonauta monitora as praias do litoral norte do estado para avaliar a saúde da fauna marinha. Neste ano, nas necropsias feitas em mais de 500 pinguins-de-magalhães encontrados por ali, foi notada a presença de lixo no estômago de vários deles. Ainda que seja impossível correlacionar a morte dos animais a isso, o fato deixa claro o impacto do lixo na vida marinha.
“Fazer esse monitoramento é extremamente importante primeiro porque demonstra a importância dessa região para a biodiversidade costeira, já que temos ocorrências de diversas espécies ameaçadas e vulneráveis”, disse Hugo em entrevista à reportagem. “Segundo, porque mostra quais são as principais ameaças a esses grupos de animais, principalmente a pesca incidental e poluição, que inclui lixo e outros poluentes.”
Um total de 576 pinguins foram resgatados nos municípios monitorados pelo Argonauta – Ubatuba, Caraguatatuba, Ilhabela, São Sebastião – entre 9 de junho e 31 de agosto. A maioria deles, 419, já estava morto e apenas um sobreviveu ao tratamento e pode ser devolvido à natureza.
Pedaços de madeira, cordas e canudos, encontrados durante a necropsia no estômago de um pinguim-de-magalhães resgatado sem vida pelo Gremar.
Pinguim-de-magalhaes recém resgatado passa por baterias de exames no instituto Gremar, no Guarujá (SP).
Rosaneh Farah, bióloga responsável do Instituto Gremar, em Guarujá (SP), também encontrou muito lixo nos corpos dos pinguins que foram para a necropsia. Segundo ela, quando debilitados, os pinguins não conseguem mergulhar para caçar e acabam flutuando na superfície e comendo o que aparece na frente. “Resíduos que bóiam, como o plástico, pedaços de canudo, pedaços de cordas e elásticos, plásticos variados. Ele está com fome e vai tentando se alimentar com o que encontrar pelo caminho”, disse ela em entrevista por Whatsapp.
Entre 20 de junho e 3 de setembro, o Gremar encontrou 406 pinguins nos municípios de Bertioga, Guarujá, Santos e São Vicente. Desses, 124 entraram vivos para reabilitação e 282 foram recolhidos já mortos.
Espécie quase ameaçada
O pinguim-de-magalhães pode chegar até 6 kg e 70 cm, se reproduz e passa a maior parte da vida nas Ilhas Malvinas e na Patagônia, na ponta de baixo da América do Sul. As visitas ao Brasil fazem parte do comportamento desses pinguins. Durante a época não reprodutiva, entre abril e setembro, eles pegam carona em correntes marítimas que sobem em direção ao Norte para se alimentar de peixes, lulas, polvos e crustáceos. Sambaquis, sítios arqueológicos encontrados no litoral, mostram que a espécie já aparecia por essas bandas dez mil anos atrás.
Mas, em 2020, a presença deles surpreendeu pelo volume e pela fragilidade dos indivíduos encontrados. Considerada ‘Quase ameaçada’ na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), a população dos pinguins-de-magalhães está em queda. No entanto, relatos das regiões pinguineiras dão conta de uma quantidade acima da média de ovos e nascimentos no último ano, além de uma nova colônia na Argentina.
Os pinguins-de-magalhães são separados em diferentes gaiolas dependendo do estado de saúde. Os pesquisadores esperam reunir um grupo de pinguins saudáveis antes de devolvê-los à natureza.
Pinguim encontrado quase morto recebe soro nas veias enquanto tem sua saúde avaliada por veterinários do Gremar.
Apesar de não existir nenhuma estudo que comprove a correlação entre o maior número de indivíduos ao sul e a quantidade de aves resgatadas por aqui, todos os pinguins encontrados eram jovens, na sua primeira expedição de pescaria. Além disso, estavam esqueléticos – mesmo entre os vivos, havia alguns que apenas boiavam na corrente sequer capazes de nadar. Exames clínicos mostraram que certos indivíduos praticamente não tinham mais sangue.
“Eram todos filhotes e chegaram muito fracos, com fome, doentes e exauridos. Foi o ano em que tivemos a menor taxa de sobrevivência entre os pinguins encontrados”, conta Hugo Gallo. Ele aponta outra possível causa para a chegada dos pinguins: o clima. “Coincidiu um pouco com esse fenômeno meteorológico do ciclone bomba [ocorrido em junho]. Parece que eles já estavam mal, e aí veio um mar tão ruim, mas tão ruim, que eles perderam o resto de energia.”
Desde 2015, quando foi criado o Programa de Monitoramento de Praias da Bacia de Santos (PMP-BS), uma parte do trabalho no Argonouta é dedicada a avaliar possíveis impactos ambientais da exploração do pré-sal na região. Para permitir que a Petrobras explore petróleo e gás natural, o Ibama exigiu que fosse criado um programa para monitorar possíveis impactos ambientais em tetrápodes marinhos, grupo que inclui aves, tartarugas e mamíferos, além de atendimento a animais encontrados vivos e necropsia nos mortos.
O programa abarca uma área que vai de Laguna, em Santa Catarina, até Saquarema, no Rio de Janeiro, e trabalha com uma variedade de instituições que se responsabilizam por 15 trechos diferentes. O Gremar é responsável pelo trecho 9, que engloba cidades da Baixada Santista. Já o Instituto Argonauta é responsável pelo trecho 10, que inclui os municípios do litoral norte de São Paulo.
A bióloga Rosane Farah, à esquerda, e o veterinário Victor alimentam um pinguim-de-magalhães com uma mistura de sardinha e soro na sala de descontaminação e estabilização do Gremar.
A bióloga Camila analisa lâminas contendo enzimas e fezes dos pinguins-de-magalhães. Ela busca entender se os animais sofriam de alguma patologia.
Por conta do PMP, o Argonauta monitora quase diariamente a pé centenas de praia de fácil acesso e semanalmente outras remotas, onde o trabalho é feito embarcado.
“Entre pinguins mortos e vivos, só eu encontrei 40”, diz Manoel Albaladejo, biólogo do Argonauta que trabalha na equipe embarcada na lancha Stenella. “Mas teve gente de pegar, em um só dia na praia, 100 animais”, conta ele. Em 27 de junho, por exemplo, foram encontrados 194 pinguins mortos.
Golfinho come pinguim
A reportagem acompanhou uma saída da equipe em julho, quando os números de pinguins resgatados até então apontavam para um recorde no ano. O Stenella deu uma volta inteira em Ilhabela, mas, dessa vez, nenhum pinguim foi encontrado.
No mês anterior, em junho, durante um dos monitoramentos embarcados, Manoel notou um comportamento estranho em um pequeno grupo de golfinhos-de-dentes-rugosos.
Gabriel Sintoni Nabi e Renata Cristina Cosme, funcionários do instituto Gremar, caminham pela praia de Gonzaguinha, em São Vicente (SP), em busca de animais marinhos. Equipes de diferentes institutos fazem o monitoramento de quase todo o trecho de litoral que vai de Lagoinha, em Santa Catarina, até Saquarema, no Rio de Janeiro.
“Eles estavam nadando em volta de uma rede de pesca, eram cinco ou seis que se revezavam em se aproximar. Eu achei estranho e fiquei preocupado com eles se enroscaram na rede”, diz. Para evitar que isso ocorresse, o biólogo se aproximou do local e puxou a rede – havia um pinguim-de-magalhães recém-morto preso ao instrumento. “Eu retirei o pinguim e rapidamente os golfinhos perderam o interesse.” Segundo Hugo Gallo, comportamento semelhante nunca havia sido registrado.
Quando resgatados com vida, as aves são enviadas para serem tratadas em um dos 14 centros e unidades de reabilitação ou estabilização de animais marinhos localizados na faixa de litoral monitorada pelo PMP-BS. Segundo a assessoria de imprensa da Petrobrás, os veterinários instalam um chip em cada pinguim antes de soltá-los. A tecnologia serve para acompanhar os animais caso eles voltem a aparecer em outras regiões.
O programa conta com apoio das comunidades locais e pede que banhistas liguem para o instituto responsável pelo trecho caso avistem animais marinhos, vivos ou mortos, nas praias – não só pinguins, mas baleias, golfinhos, tartarugas-marinhas, outras aves e lobos ou leões-marinhos.
Se as imagens de soltura dos pinguins são animadoras, é importante alertar para as imagens mais tristes que revelam o impacto do lixo na vida marinha.
*Contribuiu Felipe Beltrame.