Demolição de enorme barragem pode salvar salmões em risco de extinção

População de salmão-rei, que migra na primavera e é essencial para pescadores indígenas ao longo do rio Klamath, está diminuindo drasticamente. Mas dois projetos podem representar o caminho para a recuperação.

Por Alejandra Borunda
Publicado 27 de nov. de 2020, 07:00 BRT
Salmões-rei atingem a maturidade em um incubatório. Quando seus ovos amadurecerem, eles serão devolvidos à natureza. ...

Salmões-rei atingem a maturidade em um incubatório. Quando seus ovos amadurecerem, eles serão devolvidos à natureza. Os salmões-rei que migram no fim da primavera do Hemisfério Norte estão cada vez mais raros, principalmente devido a barragens e mudanças climáticas.

Foto de Corey Arnold, National Geographic

QUANDO O INTEGRANTE do povoado karuk e biólogo cultural Ron Reed era apenas uma criança no início da década 1960, ele gostava de ficar agachado sobre uma pedra arredondada, acima do nível da água corrente do rio Klamat, na Califórnia, Estados Unidos, observando sua família pescar salmões-rei que chegavam no fim da primavera. Os peixes se aglomeravam de modo tão denso na água que dava a impressão de ser possível andar sobre eles.

Sua família havia esperado o inverno inteiro por esses peixes. Eles enchiam sacos com salmões, em uma quantidade suficiente para alimentá-los várias vezes ao dia durante meses.

Há décadas, esses dias de extrema abundância ficaram só na lembrança. Nos últimos anos, Reed, que agora pesca com seus próprios filhos, conseguiu pegar apenas alguns peixes no rio. Represas, mudanças climáticas e outros problemas prejudicaram o salmão ao longo da costa oeste dos Estados Unidos, e os declínios foram particularmente graves para os peixes pescados de março a maio, que migram rio acima e, desse modo, há maior probabilidade de terem sido isolados de seu habitat pelas barragens.

Mas em 17 de novembro, o projeto para remoção de algumas das principais barragens do Klamath, que vinha sendo adiado há bastante tempo, superou um grande obstáculo: os governadores da Califórnia e de Oregon concordaram em assumir o controle das barragens da PacifiCorp, a concessionária que as opera. Os estados e a concessionária também concordaram com o financiamento do plano de US$ 450 milhões. Ainda é necessária a aprovação regulatória federal e nada está definido — mas por enquanto a remoção das barragens está prevista para começar em 2023.

E tudo isso levanta a seguinte questão: será que o salmão que migra nos meses da primavera ainda poderá ser salvo no rio Klamath?

Devido aos baixos números sem precedentes em muitos rios, povoados e grupos conservacionistas torcem para que os peixes migratórios da primavera sejam considerados uma população distinta e protegidos pela Lei de Espécies Ameaçadas de Extinção (ESA, na sigla em inglês). Eles acreditam que tal fato ajudaria a proteger os peixes por tempo suficiente até a destruição das barragens e o restabelecimento de seu habitat.

Uma nova pesquisa publicada no mês passado na revista científica Science confirma que há uma diferença genética entre os peixes de migração inicial e tardia. Apesar de ser mínima, a diferença é crucial: “No sentido biológico, não são animais diferentes”, afirma John Carlos Garza, cientista pesqueiro da NOAA e um dos autores do estudo. Essa peculiaridade pode complicar a designação de acordo com a Lei ESA.

No entanto o gene que permite a migração na primavera é mais prevalente nos peixes que nadam no Klamath e em outros rios do que os cientistas imaginavam — e, de acordo com Garza, isso aumenta a esperança de que a população de peixes que migram na primavera possa se recuperar com o fim das barragens.

“As árvores são feitas de peixes”

“Para o nosso povoado, um peixe que migra na primavera vale cinco vezes mais que um peixe que migra no outono”, conta Keith Parker, integrante e biólogo pesqueiro do povo yurok, que cresceu pescando nos rios da Bacia do Klamath. “Eles têm um gosto melhor, são mais gordurosos e têm uma cor mais viva. São uma delícia!”

Há milênios eles são uma fonte de alimentos essencial e uma parte integrante da cultura dos povos de toda a costa oeste.

“O rio é a veia, a artéria de nossa existência”, diz Charley Reed, filho de Ron e pós-graduando em estudos sobre salmão na Universidade Estadual de Humboldt. Os salmões fazem parte desse rio: são uma dádiva, algo a ser cuidado, uma manifestação da ciclicidade e da reciprocidade de um mundo em equilíbrio. “[São] um lembrete de nossas responsabilidades, seja de cultivar para sustentar nossas vidas ou de gerir e proteger o meio ambiente.”

Ron acrescenta que o cerne de sua religião “é sermos verdadeiros gestores da floresta”. E essa gestão gira intrinsecamente ao redor do salmão.

Estima-se que o salmão correspondia à metade da ingestão calórica do povo karuk antes do contato europeu. Mesmo na infância de Reed, esse peixe era onipresente. “Comíamos tanto que chegávamos a enjoar”, conta ele. Mas a perda do salmão e de outros alimentos tradicionais, como a bolota e a lampreia, mudou completamente o panorama alimentar. Atualmente a etnia karuk tem a “duvidosa honra de ter uma das mais drásticas e recentes mudanças de dieta entre qualquer povo na América do Norte”, escreveu a socióloga Kari Marie NorgaardPesquisas demonstraram uma relação entre o declínio do salmão e o aumento de diabetes e outros problemas de saúde.

Antes da chegada dos colonizadores, que fizeram modificações nos rios e, particularmente quando as barragens ainda não bloqueavam suas migrações, os peixes migratórios da primavera às vezes nadavam centenas de quilômetros rio acima, para seus locais de desova. Eles ficavam parados em lagoas e riachos por meses, lentamente perdendo seus estoques de gordura enquanto aguardavam a passagem das ondas de calor e dos fluxos de água cada vez menores, esperando pacientemente pelo momento da desova para que pudessem finalmente voltar depressa para o oceano.

Por outro lado, a migração dos salmões no outono é mais curta e mais rápida — também notável, porém mais direcionada.

Essas diferentes estratégias de migração significavam que o salmão podia viver em quase todos os bolsões de habitat ao longo de um rio, desde a foz até as regiões mais altas, da primavera até o fim do outono. Suas jornadas formaram um elo ecológico elegante, conectando o Pacífico diretamente a encostas verdejantes, a centenas de quilômetros de distância. Os predadores apanhavam os peixes da água e os arrastavam para comer, deixando para trás as carcaças, que canalizavam nutrientes marítimos vitais para uma variedade de plantas e animais.

“As árvores são feitas de peixes”, diz Parker.

Por milênios, os indígenas fizeram o manejo dos peixes que nadavam nos rios. Quando ficava muito quente no verão, eles acendiam fogueiras que lançavam densas nuvens de fumaça  para resfriar as águas e construíam açudes para ajudar alguns peixes a pular cachoeiras. Retiravam os peixes de suas grandes migrações, mas não mais do que o necessário, deixando muitos para se reproduzir.

Tudo mudou em meados do século 19. Mineradores, recém-chegados e em busca de ouro, explodiram encostas, obstruindo-as com sedimentos. As fábricas de conservas retiravam grandes quantidades de peixes da água; na década de 1880, processavam algo entre dois e 4,5 milhões de quilogramas de salmão por ano, muitos deles eram peixes migratórios da primavera. Havia barragens nas partes baixas e altas dos rios.

Indígenas utilizam redes de emalhar tradicionais para pescar no rio Klamath.

Foto de Alexandra Hootnick

Muitas populações de peixes migratórios da primavera desapareceram. Os que restaram representam apenas frações do que já foram. No rio Salmon, um afluente do rio Klamath, a contagem anual da primavera totalizou menos de 200 peixes nos últimos quatro anos, abaixo dos 1,6 mil em 2011 — e bem diferente do que Reed se lembra. Os principais culpados são as enormes represas que impedem os salmões migratórios da primavera de chegarem a seus locais de desova no alto do rio.

“Imagine: sou um peixe grande e robusto de 22,5 quilogramas. Vou nadando rio acima em direção ao meu local de desova, mas então acabo batendo na Barragem Iron Gate [no rio Klamath]”, diz Parker. “Tenho um fenótipo e um genótipo que se desenvolveram ao longo de milhares de anos que me dizem que devo nadar mais de 480 quilômetros rio acima, mas não posso porque há uma barragem no caminho.”

A partir da década de 1960, muitas barreiras naturais ao longo dos rios foram dinamitadas, às vezes com a intenção de ajudar os peixes a subirem o rio, mas muitas vezes perturbando ainda mais o habitat dos peixes migratórios da primavera. E as mudanças climáticas aumentaram a temperatura da água em muitas partes da bacia do Klamath em cerca de 0,5 grau Celsius na última década — um grande problema para animais de sangue frio.

Perder um gene agora significa perdê-lo para sempre?

Um estudo de 2017 foi o primeiro a estabelecer algo notável sobre o salmão do Pacífico: apenas uma pequena porção de seu genoma parecia controlar totalmente o momento em que um peixe deve migrar.

Era claro e simples: se os peixes tivessem duas cópias do gene “inicial”, eles apareceriam para migrar o rio no início da temporada. Se eles tivessem dois genes “tardios”, apareceriam no fim do ano. Se tivessem ambos, migrariam em algum momento nesse meio tempo.

O fato de um comportamento tão importante ser controlado por uma ínfima porção do genoma — a nova pesquisa sugere que represente cerca de 0,0000125% — foi “realmente espantoso”, afirma Nina Overgaard Therkildsen, geneticista conservacionista da Universidade Cornell.

A pesquisa — tanto a de alguns anos atrás quanto a de agora — também mostra que essa adaptação aconteceu apenas uma vez, muitos milhares de anos atrás.

“O fato de ser uma característica que só evoluiu uma vez e se disseminou de forma tão ampla tem implicações importantes para a conservação”, esclarece Therkildsen. “Significa que a própria variante talvez não evolua tão prontamente se a perdermos.”

As comunidades investiram na sobrevivência dos peixes migratórios da primavera com base no fato de que havia uma clara, embora pequena, diferença genética entre os peixes que migram na primavera e no outono. Em 2017, o povoado karuk e uma organização sem fins lucrativos local fizeram uma petição para que fosse cogitada a proteção do salmão-rei migratório da primavera na Bacia do Klamath de acordo com a Lei de Espécies Ameaçadas de Extinção — de modo independente e separado dos peixes migratórios do outono.

Respostas nas profundezas do genoma de um peixe

Em colaboração com o povo yurok, que habitualmente pesca, para seu próprio sustento, os salmões migratórios da primavera próximo à foz do rio Klamath, Garza e a equipe da NOAA coletaram centenas de peixes durante todas as épocas da temporada e sequenciaram seus genomas. Eles também examinaram as características que há muito são consideradas distinções entre os peixes da primavera e do outono, como seu teor de gordura — uma característica que Reed, Parker e outros pescadores indígenas já haviam percebido há bastante tempo.

Mais uma vez, os dados eram bem claros: uma ínfima região gênica previa 85% da variação no momento de migração.

Mas os pesquisadores constataram que os peixes migratórios da primavera e do outono eram essencialmente os mesmos em outros aspectos cruciais, como teor de gordura e maturidade. Eles apenas pareciam diferentes porque os peixes da primavera eram pescados no início da temporada, quando ainda não haviam esgotado seus estoques de gordura.

O estudo da NOAA foi detalhado o bastante para responder a outra pergunta: se o gene que implica a migração na primavera está presente no restante da população de salmão de modo suficiente para perdurar, mesmo se a quantidade de peixes migratórios da primavera diminuir ainda mais.

Com certeza, os pesquisadores encontraram um número surpreendentemente alto de peixes com uma cópia do gene de migração inicial e uma cópia do gene de migração tardia. Segundo eles, esses “heterozigotos” poderiam servir como uma espécie de depósito vivo para o gene inicial essencial, facilitando bastante a reintrodução dos peixes migratórios da primavera em locais dos quais desapareceram.

“Isso quer dizer que seria tão simples quanto introduzir” os peixes com o gene de migração inicial de volta aos rios se o habitat apropriado for restaurado, explica Garza. E, segundo ele, se a população natural não tiver o gene de migração na primavera de modo suficiente, um simples programa de reprodução em incubatório poderia aumentar sua prevalência.

A remoção planejada das barragens do rio Klamath levanta essa possibilidade tentadora.

De qualquer forma, os peixes migratórios da primavera precisam de ajuda

Entretanto outros cientistas estão céticos.

“Todos nós reconhecemos que os peixes migratórios da primavera e do outono se cruzam até certo ponto e geram esses heterozigotos”, esclarece Shawn Narum, geneticista de peixes da Comissão Interétnica de Peixes do Rio Colúmbia. “A questão é: eles podem ser uma fonte de recuperação?”

“Em populações que não têm mais o fenótipo de migração na primavera, não são encontrados muitos heterozigotos. Portanto, não existe muita possibilidade de ressurgimento”, afirma Tasha Thompson, geneticista da Universidade Estadual do Michigan que estuda as populações de salmão em todo o Ocidente. “Serão necessários esforços surpreendentes.”

Essa nova ciência provavelmente será considerada enquanto as agências que supervisionam a classificação dos animais como ameaçados de extinção decidem se o salmão migratório da primavera merece proteção especial. A decisão está atrasada, mas espera-se que ocorra em alguns meses.

As proteções seriam úteis, mas talvez seja mais importante recuperar o habitat dos peixes migratórios da primavera, o que pode se tornar realidade com a remoção da barragem, pois reabrirá para esses peixes grandes áreas nas partes superiores dos rios.

Até que isso aconteça, Parker, o biólogo yurok, continuará preocupado.

“O rio ainda é como se fosse nosso supermercado”, diz Parker. “Vamos ao rio buscar essas espécies fundamentais para a nossa cultura, com as quais convivemos há milhares de anos e que nos permitem manter nosso modo de vida. Apenas nos últimos 100 anos acabamos com a migração de salmão.”

Sem os peixes migratórios da primavera, Reed teme um futuro sombrio para sua família e seu povoado.

“Vamos entrar em extinção”, diz ele. “Esse é o impacto final da ausência do salmão migratório da primavera.”

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