Base científica inaugura nova era de pesquisas brasileiras na Antártida
Presença do Brasil no continente gelado vem desde 1982. Hoje, o programa da Marinha apoia 23 projetos, de estudos da emergência climática à microbiologia.
Questões meteorológicas e logísticas adiaram a chegada dos cientistas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) à Antártida, mas eles finalmente pisaram na Ilha Rei George no início de dezembro de 2019. Saíram do Rio de Janeiro em 30 de novembro e seguiram até Pelotas (RS). Algumas horas depois, viajaram para Punta Arenas, no Chile, onde aguardaram por três dias até que o tempo lhes permitisse sobrevoar a Passagem de Drake, que separa a América do Sul da Antártida, a bordo de um avião C-130 da Força Aérea Brasileira. No continente gelado, eles deram início aos estudos do projeto Fioantar, na 38ª operação da Marinha do Brasil de apoio e financiamento às pesquisas científicas na região.
Após um pouso tranquilo, o pesquisador Fernando Motta, virologista do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), despediu-se do comandante e desceu do avião. Ainda na escada da aeronave, deu-se conta do lugar onde estava e sentiu-se personagem de um livro de ficção científica. Além da estação chilena, Motta observava no horizonte montanhas e gelo que armazenam 70% da água doce do planeta e um mar plácido rico em biodiversidade.
O vento constante conferia a sensação térmica de -15ºC, embora o termômetro apontasse 0ºC. O tempo estava fechado, mas clareou enquanto os pesquisadores tomavam café e carimbavam o passaporte na estação. Porém, logo piorou novamente. A equipe já havia se organizado, mas a praia precisou ser evacuada pelo risco de nevasca. Abrigados em uma embarcação, os pesquisadores aguardavam o navio polar Almirante Maximiano, que lhes conduziria por duas semanas pelas Ilhas Shetland do Sul.
Quando o navio brasileiro se aproximou da costa, o tempo ficou ainda pior, as ondas aumentaram e a equipe teve de esperar até que uma janela meteorológica oportuna permitisse a transferência entre as embarcações. Nesse momento, Motta recordou-se de uma frase dita no treinamento pré-viagem: “Na Antártida, nem o passado é certo, o Almirante Tempo dá a ordem final”.
O Fioantar teve origem como um projeto interno da Fiocruz, da qual o IOC faz parte, para simular condições e testar padrões de coleta e de armazenamento de amostras de micro-organismos que habitam condições extremas. Sejam provenientes da Antártida, do interior da Amazônia, de áreas do Cerrado ou da Caatinga, tais espécimes possuem características distintas de conservação e estudo. O Fioantar adquiriu outra dimensão quando foi aprovado no edital de 2018 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Dessa forma, passou a integrar o Programa Antártico Brasileiro (Proantar), da Marinha. O projeto tem duração prevista de quatro anos, de 2019 a 2023.
“De uma maneira geral, a ideia é acessar amostras em ambientes extremos, por uma equipe multidisciplinar, visando identificar possíveis patógenos, novos ou antigos, que possam ser perigosos para a saúde pública no cenário atual, mas, principalmente, em uma situação de alterações climáticas”, explica Fernando Motta, do Laboratório de Vírus Respiratório e Sarampo do IOC.
“Outro ponto é identificar fungos, bactérias e vírus que podem ser de interesse para a saúde pública em algum momento”, continua Motta. “É a chance de conhecermos diferentes produtos, enzimas, princípios ativos que possam ser usados para melhorar tratamentos e para o desenvolvimento de medicações e kits de diagnósticos, por exemplo, e que poderiam ser testados clínica e laboratorialmente na Fiocruz.”
Motta tem concentrado seus estudos no influenza. Esse vírus aviário é responsável por epidemias globais de gripe. Nas constantes migrações entre continentes, as aves da Antártida podem contaminar as da América com outros tipos do vírus. “Já vimos situações dessa em outros países e gostaríamos de ter acesso a essas amostras consideradas de influenza exótica”, observa Motta. “É importante agregar esse conhecimento no combate ao influenza sazonal humano que temos naturalmente em todos os países do mundo, todos os anos.”
Ciência antártica
A Antártida foi aberta para fins pacíficos há seis décadas. Em 1º de dezembro de 1959 foi assinado o Tratado da Antártida, durante encontro na capital americana, Washington D.C. O texto entrou em vigor em 23 de junho de 1961, com então 12 países signatários: África do Sul, Argentina, Austrália, Bélgica, Chile, EUA, França, Japão, Noruega, Nova Zelândia, Reino Unido e União Soviética. O Brasil aderiu em 1975 e, atualmente, 54 países são signatários.
Em dezembro de 1982, militares da Marinha do Brasil embarcaram para o noroeste do continente. A operação visava o reconhecimento hidrográfico, oceanográfico e meteorológico da região – e a consolidação do Proantar, criado em janeiro do mesmo ano.
Não demorou para que, em setembro de 1983, o Brasil fosse aceito como parte consultiva do Tratado da Antártida devido às atividades científicas. No verão seguinte, em 6 de fevereiro de 1984, a Marinha inaugurou a Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF). A instalação se situa, até hoje, na Península Keller, na Baía do Almirantado. A região fica na Ilha Rei George, no arquipélago Shetland do Sul. A partir de 1986, o Brasil começou sua ocupação permanente, com presença no ano inteiro.
Em janeiro de 1995, o Governo Federal instituiu o Grupo de Avaliação Ambiental, para identificar o grau dos impactos de projetos de pesquisa científica na Antártida. O GAAm é subordinado ao Ministério das Relações Exteriores e segue as normas do Protocolo de Madri, adicionado ao Tratado da Antártida para a proteção ambiental no continente gelado. Em vigor desde 1998, o documento proíbe a exploração dos recursos minerais do continente, exceto para fins científicos, e tem validade até 2048, quando poderá ser mantido ou modificado.
Contudo, um incêndio na estação brasileira destruiu 70% das instalações na madrugada de 25 de fevereiro de 2012. Dois marinheiros, Carlos Alberto Figueiredo e Roberto dos Santos, faleceram enquanto combatiam as chamas. A tragédia resultou na 31ª Operação Antártica, “a mais complexa já realizada pelo Brasil”, segundo a Marinha, com foco na retirada dos escombros.
Na última quarta-feira, 15 de janeiro, a Marinha inaugurou a nova estação antártica. O complexo se estende por 4.500 m2 na Baía do Almirantado, na Ilha Rei George. Em um dos seis setores estão 17 laboratórios destinados às atividades científicas. O projeto custou aproximadamente US$ 100 milhões e foi realizado pela construtora chinesa Ceiec, vencedora da licitação.
Para reduzir o consumo de óleo diesel na geração de energia, a estação tem agora sistemas fotovoltaico e eólico. Já o manejo de água e esgoto se dá por uma técnica com radiação ultravioleta. Por outro lado, sob a estação inaugurada ainda restam 7 mil metros cúbicos de resíduos contaminados, conforme revelou O Globo a partir de análises do Ibama
A Marinha do Brasil contabilizou mais de 200 trabalhos científicos financiados e apoiados pelo Proantar. As pesquisas abrangem áreas como oceanografia, biologia, biologia marinha, glaciologia, geologia e meteorologia. Em 2019, 19 novos projetos tiveram início no programa. Com isso, atualmente 250 pesquisadores brasileiros trabalham em 23 estudos.
O papel do clima
“O Proantar é importante, mas precisamos ter uma estrutura na qual as pesquisas sejam compartilhadas, feitas em conjunto com pesquisadores de várias disciplinas”, acredita Ilana Wainer, professora do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo e pesquisadora das questões climáticas no continente gelado. “Estudar a Antártida é absolutamente interdisciplinar, por isso precisamos de financiamento.”
Wainer sempre se concentrou na interação oceano-atmosfera, componentes importantes no sistema climático. No âmbito do oceano, interessou-se pela Antártida a partir dos estudos em gelo e massas d’água. A partir de 2013, passou a pesquisar os fenômenos climáticos no setor austral do Atlântico Sul. Desde então, analisa modelos matemáticos para compreender como os processos na Antártida influenciam na mudança do clima e seus reflexos, por exemplo, na América do Sul.
“Quando falamos em mudança climática, pensamos na sociedade, no aumento do nível do mar, em seca e inundações, como as que acontecem no Sudeste brasileiro”, observa Wainer. “São sinais de que há movimentação da circulação atmosférica por diversos motivos. E a Antártida é importante porque há todo um equilíbrio entre a distribuição de temperatura e pressão.”
Esse sistema, continua a cientista, está relacionado à circulação dos ventos. Se sofre um desequilíbrio, ocorre um impacto na distribuição de umidade que, por sua vez, reflete-se no regime de chuvas. Com esse desequilíbrio na temperatura, na pressão, na formação dos ventos e na circulação atmosférica, regiões áridas ficam ainda mais secas, e onde há mais chuvas as pancadas se intensificam, como ocorre no Sudeste brasileiro, exemplifica Wainer.
Além disso, os oceanos armazenam ao menos 90% do carbono antropogênico – ou seja, produzido a partir de atividades humanas – a 800 metros da superfície, continua a cientista. “Nessa profundidade, existe a massa d’água intermediária antártica. Tentei entender em um dos estudos quais são as mudanças nessa água intermediária e se vai afetar o papel do armazenamento de carbono”, observa. “O que acontece é que essas massas d’água ficam menos densas. Com isso, chegam mais perto da superfície e podem proporcionar um escape maior, a volta desse CO2 à atmosfera.”
Atualmente, Wainer estuda um fenômeno recente que resultou na menor extensão do gelo marinho em praticamente todas regiões do Oceano Austral. “Estamos tentando entender se isso é um evento extremo, se está associado com a mudança climática”, aponta a oceanógrafa. “De 2014 a 2017, teve uma diminuição na extensão do gelo marinho que não observávamos no Ártico em décadas. A velocidade foi muito grande. De 2017 a 2019, houve uma recuperação, o gelo marinho voltou a aumentar.”
Para Wainer, o desafio atual da ciência climática é entender o que é variabilidade natural e o que é forçada por questões externas, como a emissão de CO2 antropogênica. “O trabalho agora do cientista do clima é muito em cima de tentar extrair o sinal do ruído, essas incertezas da variabilidade natural do sistema”, ela observa. “E aí está a importância do Programa Antártico Brasileiro, que todo ano manda o pessoal nos navios para podermos fazer observações de temperatura, salinidade, das variáveis físicas.”
Nesta semana, desembarcaram na Antártida seis estudantes de mestrado de engenharia e de genética da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de geoquímica da Universidade Norte Fluminense, de biologia molecular e microbiologia da Universidade de Brasília. No projeto da Rede Nacional em Biotecnologia Marinha, o grupo estudará as mudanças globais e locais por meio da análise de seis espécies de esponjas que habitam a Antártida. O esforço busca contribuir para um melhor entendimento da situação ambiental da região.
A equipe é formada por 15 pesquisadores de áreas como taxonomia, biodiversidade, ecologia, biogeoquímica, produtos naturais, aquacultura. A primeira expedição da equipe na Antártida ocorre até março. As coletas são feitas em mergulhos por militares da Marinha. Depois, as informações de DNA são analisadas nos laboratórios das universidades.
“As esponjas são animais, porém servem de habitat para micróbios”, explica Fabiano Thompson, oceanógrafo, doutor em Bioquímica e professor da UFRJ que coordena o projeto. “O conjunto formado pela esponja mais micróbios representa um holobionte, que responde às mudanças locais e globais. Por exemplo, se houver poluição na Antártida, consigo determinar a partir da análise do DNA desse holobionte.”
Thompson observa ainda que as esponjas podem conter uma série de micro-organismos que produzem novas substâncias terapêuticas, ou enzimas, de interesse biotecnológico. “É importante fazer um levantamento desses micro-organismos e dos genes, porque podem ter alguma aplicação no futuro como, por exemplo, na produção de microbianos e enzimas adaptadas ao frio.”
Em busca de vírus, fungos e bactérias
Após terem o projeto aprovado pelo Proantar, os pesquisadores da Fiocruz realizaram um treinamento pré-antártico. Na base de fuzileiros navais da Restinga do Marambaia, no Rio de Janeiro, aprenderam questões técnicas de segurança e acampamento e tiveram suas condições físicas avaliadas.
Na Antártida, o planejamento inicial era de três semanas de pesquisa em campo e envolvia coletas de amostras em nove pontos do arquipélago das Ilhas Shetland do Sul. Com os contratempos e a chegada apenas em 8 de dezembro, a equipe precisou replanejar e reduziu a logística para cinco localidades.
Na manhã seguinte à chegada no continente, já instalados no navio polar Maximiano, os pesquisadores navegaram até o pontal Rip, na Ilha Nelson, a sudoeste da Rei George. O navio atracou um pouco distante da costa e a travessia até a praia foi por meio de botes, conduzidos por militares da Marinha. Os pesquisadores da Fiocruz passaram o dia na ilha. Em 18 pontos, fizeram aproximadamente 60 coletas de fezes e regurgito de aves e mamíferos, para pesquisas de vírus entéricos e respiratórios; de água e camadas de solo, a fim de estudar fungos e bactérias; e líquens em substratos rochosos, arenosos ou de resíduos animais.
Na madrugada de 10 de dezembro, enquanto o Maximiano seguia para Decepção, ilha onde ocorreriam as novas coletas, a tripulação foi informada de que um avião da Força Aérea do Chile, que cruzava a Passagem de Drake com 38 pessoas a bordo, perdera o contato na tarde anterior. Teria combustível para até meia-noite, mas não pousara em lugar algum. Como o navio brasileiro era o mais próximo da suposta área de queda, a Marinha suspendeu as pesquisas científicas para iniciar a operação de busca e resgate.
Os pesquisadores, então, se dirigiram aos três laboratórios do navio. Retiraram os equipamentos da bancada e guardaram as amostras catalogadas. Afinal, entrariam no notoriamente violento Drake, uma área de 800 km2 que marca o encontro dos oceanos Atlântico e Pacífico. Os pesquisadores, então, passaram a auxiliar no processo de buscas, por meio da procura por destroços. Trem de pouso, mochila, partes do avião foram recolhidos e encaminhados à Marinha chilena.
Nesta última semana, outra equipe da Fioantar chegou à Antártida, integrando o quinto grupo de cientistas contemplados pelo projeto da Marinha. Os pesquisadores continuarão as coletas, o processamento e o armazenamento das amostras. Em abril, um navio da Marinha trará ao Rio de Janeiro os objetos coletados. Enfim, o material poderá ser analisado nos laboratórios da Fiocruz.
Para o próximo verão, o plano da fundação é eliminar o tempo entre a coleta e a análise. Em novembro de 2019, o coordenador do Fioantar, Wim Degrave, e a bióloga Luciana Trilles passaram pouco mais de um mês no continente para receber os equipamentos e instalar um laboratório na nova Estação Antártica Comandante Ferraz. O laboratório poderá ser utilizado não apenas para o projeto da Fiocruz, mas por todos os outros pesquisadores brasileiros. Isso resultará, por exemplo, no processamento antecipado das amostras, etapa “fundamental para a conservação dos espécimes obtidos”, avalia Motta.