Primeiras mortes causadas pelo coronavírus em comunidades indígenas na Amazônia
“A covid-19 possui terreno fértil para rápida disseminação entre as populações que vivem na Amazônia”, segundo presidente de grupo de direitos humanos.
Cortando o extremo oeste da região amazônica do Brasil, o rio Itaquaí chega ao remoto território indígena do Vale do Javari — uma reserva extensa que abriga as comunidades indígenas mais afastadas e isoladas do mundo. Especialistas em saúde e defensores dos direitos humanos estão preocupados com um possível extermínio de aldeias indígenas inteiras diante da exposição ao coronavírus. Eles estão pedindo que o governo tome medidas urgentes para proteger as fronteiras dos territórios onde grupos extremamente vulneráveis vivem isolados.
OFICIAIS BRASILEIROS E ativistas de direitos humanos alertam para uma calamidade iminente de saúde pública à medida que as primeiras mortes ligadas ao coronavírus são relatadas entre populações indígenas extremamente vulneráveis na região amazônica.
Profissionais da saúde no estado de Roraima informaram em 9 de abril a morte de um adolescente Yanomami infectado pela covid-19, aumentando as preocupações de que ele possa ter transmitido a doença para diversos amigos e vizinhos desde o início dos sintomas, há três semanas. O jovem havia estado diversas vezes em uma área repleta de garimpeiros e não se sabe de onde ou de quem ele contraiu a doença.
Esse caso marca a segunda morte de um indígena no Brasil. Atualmente, são pelo menos sete casos confirmados entre as aldeias do país, distribuídas por três estados. Entre os infectados estão quatro Kokamas, membros da mesma família que contraiu a doença de um médico que atua no atendimento de saúde aos indígenas e havia retornado recentemente de uma conferência no sul do Brasil. O médico não cumpriu os protocolos de isolamento.
No Pará, testes realizados após o óbito solicitados pelos investigadores confirmaram que uma mulher Borari de 87 anos morreu em decorrência da covid-19. Diversas pessoas compareceram ao funeral da mulher no fim de março, sem saber que ela havia contraído o vírus mortal e poderia transmitir a doença. A presença de centenas de pessoas na cerimônia alimentou a preocupação de que muitos outros casos possam surgir nos próximos dias, o que pode sobrecarregar sistemas de saúde da região que já são deficientes.
“Devido à grande movimentação de pessoas de um estado para outro na Amazônia, além da falta de políticas públicas, a covid-19 possui terreno fértil para a rápida disseminação entre as populações que vivem na Amazônia, podendo causar desastres em curto e médio prazo”, disse Roque Paloschi, arcebispo de Porto Velho, Rondônia, e presidente do Conselho Indigenista Missionário do grupo católico de direitos humanos.
O Ministério Público Federal do Brasil alertou em 8 de abril para o “risco de genocídio” em meio a alegações de que a Funai, órgão indigenista do Brasil, teve fraca atuação na contenção do contágio de coronavírus nas comunidades nativas. O Ministério Público Federal também reiterou o pedido de exoneração imediata de Ricardo Lopes Dias, missionário evangélico indicado em fevereiro para chefiar a Coordenação-Geral de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato da Funai.
Os habitantes de Moxihatetema, no coração do território indígena Yanomami, no estado de Roraima, sempre evitaram ao máximo o contato com pessoas de fora, inclusive com outros grupos de Yanomamis. Mas operações ilegais de mineração de ouro foram observadas a uma distância equivalente a uma caminhada de dois dias a partir da aldeia. Líderes indígenas culpam a presença de garimpeiros pela primeira morte registrada de um Yanomami infectado pela covid-19 e temem que vilarejos como Moxihatetema possam ser exterminados se os garimpeiros não forem expulsos.
Dias é pastor veterano da Missão Novas Tribos, organização fundamentalista fundada em Los Angeles em 1942 com o objetivo de evangelizar aldeias isoladas da América do Sul. Sua nomeação para esse importante cargo da Funai levantou preocupações de que ele afastaria o departamento de seu papel estratégico de proteger comunidades isoladas das forças do mundo exterior.
Ao longo de décadas de trabalho meticuloso, agentes de campo da Funai confirmaram a existência de 28 comunidades que vivem em isolamento extremo na Amazônia brasileira, podendo haver mais de 80. Desde 1987, a polícia federal impede que pessoas de fora entrem nos territórios dos grupos isolados, principalmente para proteger os indígenas de doenças transmissíveis contra as quais eles têm pouca ou nenhuma defesa imunológica.
Críticos temem que Dias faça vista grossa para missionários e grupos que visam ao lucro e invadem as fronteiras dos territórios que abrigam essas comunidades, expondo-as ao contágio e desapropriando suas terras e tradições.
Dias contestou as alegações afirmando que seu departamento continua operando 21 postos avançados que controlam o acesso às terras onde vivem os grupos isolados.
“O compromisso da Funai com a proteção dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato permanece firme”, escreveu ele em um e-mail enviado à National Geographic. “Estamos seguindo as diretrizes das autoridades de saúde competentes e tomando providências para gerenciar essa crise global de saúde da melhor maneira possível.”
O caso do adolescente Yanomami infectado pelo vírus tocou num ponto sensível entre líderes e ativistas das comunidades tribais. Cerca de 22 mil Yanomami vivem em comunidades longínquas na selva montanhosa e acidentada na fronteira com a Venezuela. Muitas de suas aldeias têm pouco ou nenhum contato com o exterior, mas sua extensa reserva vem sendo invadida ilegalmente por milhares de garimpeiros, o que representa uma grave ameaça para a aldeia. Os líderes Yanomami estão há semanas pedindo aos oficiais que expulsem os mineradores. O jovem vivia uma comunidade ribeirinha invadida por uma série de acampamentos de mineração.
Os Kayapós, que vivem na bacia do rio Xingu, na região central da Amazônia, lutam para preservar suas tradições culturais diante da exposição às influências do mundo moderno. Nos últimos dias, os líderes Kayapós negociaram a expulsão de garimpeiros de seu território durante a crise do coronavírus. Em outros lugares, as patrulhas de vigilância dos Kayapós derrubaram árvores para bloquear as estradas que dão acesso à sua reserva.
“Vocês precisam trabalhar para evitar que a epidemia entre em nossas casas por meio dos caminhos abertos pelos invasores não indígenas”, alertou a Associação Hutukara Yanomami em uma carta aberta em 19 de março às autoridades federais de saúde e assuntos indígenas.
Os ativistas estão particularmente preocupados com o destino do assentamento de Moxihatetema, onde dezenas de habitantes evitam incessantemente o contato com pessoas de fora, inclusive com outras comunidades Yanomami. Os garimpeiros encontraram ouro há alguns anos, a apenas 29 quilômetros da aldeia, e ainda antes da ameaça da Covid-19, líderes Yanomami já temiam que a comunidade pudesse ser exterminada pelo contágio introduzido pelos mineradores.
Imagens de satélite mostram que o surto de coronavírus praticamente não reduziu as operações de mineração no território Yanomami, mas Dias diz que em breve seu departamento instalará mais dois postos avançados para controlar o fluxo de mineradores. Mesmo assim, o governo do presidente Jair Bolsonaro está fazendo pressão para legalizar a mineração em terras indígenas em toda a Amazônia.
“O único plano de contingência”
Sobre as comunidades indígenas remotas, especialistas afirmam que agora, mais do que nunca, mantê-las isoladas de pessoas de fora é a melhor forma de protegê-las. “Na minha opinião, o único plano de contingência que garantiria a sobrevivência desses grupos é a expulsão dos invasores dessas áreas e a proteção de todas as terras onde há indícios da presença de pessoas isoladas,” disse Douglas Rodrigues, especialista em saúde de povos indígenas da Universidade Federal de São Paulo. Rodrigues trabalha em comunidades nativas da Amazônia há 40 anos. “Isso é um dever do governo brasileiro”, afirma ele.
Rodrigues observou que conter um contágio em uma aldeia indígena tradicional com suas habitações comunitárias é praticamente impossível. “Famílias inteiras moram juntas nas casas, com muitas pessoas, onde objetos e alimentos são amplamente compartilhados”, explicou ele.
Na ausência de uma ação governamental sólida, algumas comunidades estão se organizando para impedir a disseminação da pandemia. Ao longo do rio Xingu, na região central da Amazônia, os Kayapó chegaram a um acordo com os mineradores para que eles interrompam as operações e se retirem de seu território. Ao longo do rio Tapajós, no estado do Pará, os Muduruku colocaram cartazes proibindo a entrada de visitantes não autorizados. As patrulhas de vigilância redobraram seus esforços de proteção do Território Indígena Raposa Serra do Sol em Roraima, inclusive os membros da patrulha estão mantendo o distanciamento social entre si.
Mas alguns relatos de outros lugares sugerem que mineradores, madeireiros e grileiros ilegais podem estar utilizando a crise da saúde como cobertura para intensificar incursões em territórios indígenas. Nos últimos dias, o barulho de motosserras e máquinas ecoaram nas florestas da aldeia Karipuna, no estado de Rondônia. A Associação do Povo Indígena Karipuna disse que os membros da comunidade assistiram, desamparados e à distância, forasteiros em ações de desflorestamento dentro dos limites de seu território.
Em 31 de março, Zezico Rodrigues, líder do povo Guajajara, foi encontrado morto a tiros fora de sua aldeia, no território indígena de Arariboia, no Maranhão. Os investigadores ainda não apresentaram um suspeito, mas os Guajajara travaram uma batalha contra madeireiros ilegais que já matou cinco de seus membros desde novembro do ano passado.
Os apoiadores de Bolsonaro podem estar vendo um lado positivo na crise da saúde — uma oportunidade inesperada de afastar os grupos isolados e se apossar de seus recursos?
“Eu acredito se tratar de uma possibilidade, considerando o fracasso do governo em implementar medidas de proteção para os povos indígenas em tempo hábil”, disse Sydney Possuelo, veterano aposentado da Funai e principal articulador da antiga política do Brasil de manter pessoas de fora longe das comunidades isoladas do Brasil — uma política que ainda está em vigor, apesar da intenção declarada de Bolsonaro de integrar os grupos à sociedade nacional e explorar as riquezas de suas terras.