Xenofobia, perda de renda e saúde precária: os desafios dos refugiados em São Paulo durante a pandemia

No Dia Mundial do Refugiado, homens e mulheres forçados a deixar seus países relatam as dificuldades de recomeçar em um Brasil assolado pelo novo coronavírus.

Por Sarita Reed
fotos de Isadora Fonseca
Publicado 20 de jun. de 2020, 08:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
O sírio Omar Suleibi desembarcou em São Paulo em 2014, enquanto uma guerra civil atormentava seu ...

O sírio Omar Suleibi desembarcou em São Paulo em 2014, enquanto uma guerra civil atormentava seu país. Com os negócios parados por conta da pandemia, ele tem produzido marmitas para ajudar pessoas em situação de rua.

Foto de Isadora Fonseca

O sírio Omar Suleibi chegou à cidade de São Paulo, em outubro de 2014, trazendo a esposa, Kenanh, e a filha pequena. Sem conhecer ninguém no Brasil nem falar português, a família desembarcou no Aeroporto Internacional de Guarulhos com algumas poucas malas, mas muitos sonhos de uma vida melhor. À época, a Síria estava imersa em uma guerra civil cujo fim não se delineava no horizonte.

Aos poucos, Suleibi e Kenanh foram construindo uma rotina na capital paulista. Na Síria, ele trabalhava como supervisor de vendas de medicamentos. No Brasil, passou a se dedicar à produção de comida árabe. Costumava ter um fluxo sustentável de encomendas e eventos, trabalhando em casa com a ajuda da esposa. Então, veio a pandemia da covid-19 e o negócio desestabilizou. “A gente perdeu muito”, conta Suleibi. “O número de pedidos despencou e todos os eventos, feiras e festas foram cancelados.”

“A ideia era que nós trabalhássemos e os moradores de rua comessem. A gente tem que cuidar do outro”

por Omar Suleibi
Refugiado sírio

A crise causada pelo novo coronavírus marca um período de dupla vulnerabilidade para as pessoas em situação de refúgio, cuja causa é lembrada neste sábado (20/6), Dia Mundial do Refugiado. Pessoas forçadas a deixar seus países em virtude de violações dos direitos humanos, conflitos armados ou violência generalizada encontram agora, diante da pandemia, diversas outras adversidades no Brasil, como contam homens e mulheres ouvidos pela National Geographic Brasil.

“A pandemia afetou diretamente essas pessoas no sentido de que, muitas vezes, é difícil para elas praticarem o distanciamento social e terem acesso aos insumos básicos”, explica Luiz Fernando Godinho, oficial de informação pública do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). “E, claro, com o aprofundamento da crise, temos notado muitas questões de xenofobia e discriminação em relação aos refugiados”.

O relatório anual do Acnur, Tendências Globais, lançado esta semana, mostra que o número de pessoas em situação de deslocamento forçado no mundo quase dobrou na última década: eram 41 milhões de pessoas em 2010, e agora são 79,5 milhões, maior número já registrado pela agência.

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    A camaronesa Constance Salawe em um salão de beleza: agora, ela dá aulas de francês por videochamada. “Estou com medo do amanhã", diz.

    Foto de Isadora Fonseca

    Segundo o Ministério de Justiça e Segurança Pública, cerca de 43 mil refugiados reconhecidos vivem hoje no Brasil, e mais de 100 mil pessoas aguardam resposta quanto ao pedido de refúgio. A população refugiada no Brasil também cresceu significativamente na última década – apenas em 2020, 17,7 mil pessoas obtiveram o status de refúgio devido à adoção de processo mais célere de análise de pedidos pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare).

    “A maior parte do refugiados e solicitantes de refúgio no Brasil moram em São Paulo”, observa Cleyton Soares Abreu, coordenador do Centro de Referência para Refugiados da CASP, que atendeu pessoas de 109 nacionalidades em 2019.

    Apesar de comporem um grupo bastante heterogêneo, grande parte dos refugiados e solicitantes de refúgio trabalham como autônomos ou como informais no setor de serviços e comércio – um dos mais afetados pela pandemia. “Sem fonte de renda fixa e, muitas vezes, sem um círculo familiar e de amizades que possa lhes dar amparo, muitos refugiados estão em uma situação trágica”, comenta Marcelo Haydu, diretor executivo do Instituto de Reintegração do Refugiado (Adus).

    Aulas online e doações de amigos

    Antes da pandemia, a camaronesa Constance Salawe saía todos os dias de casa para dar aulas de francês, recrutar novos alunos e fazer trabalho voluntário. A mudança na rotina causou um baque nas finanças de casa. Ela continua dando aulas, mas apenas por videochamada. Já os negócios do marido, o comerciante nigeriano Benedict, estão completamente parados. “Suspendi todos os projetos que tinha”, conta ela, que espera poder trazer o filho de 17 anos para o Brasil assim que possível. “Estou com medo do amanhã.”

    Grávida, a produtora cultural colombiana Daniela Solano e o filho são observados pelo marido Gonzalo Velazquez, ...

    Grávida, a produtora cultural colombiana Daniela Solano e o filho são observados pelo marido Gonzalo Velazquez, em casa. A pandemia fez com que a família perdesse muito de sua renda. “Temos nos virado com doações de amigos, roupinhas, cestas básicas", comenta ela.

    Foto de Isadora Fonseca

    “Sem fonte de renda fixa e, muitas vezes, sem um círculo familiar e de amizades que possa lhes dar amparo, muitos refugiados estão em uma situação trágica”

    por Marcelo Haydu
    Diretor executivo do Instituto de Reintegração do Refugiado

    Produtora cultural, professora e fundadora do projeto Visto Permanente, a colombiana Daniela Solano vive situação parecida. Ela e o marido, o argentino Gonzalo Velazquez, são autônomos e perderam parte substancial da renda familiar, e bem no momento em que ela estava prestes a dar à luz o segundo filho do casal. “A gente tem se virado com doações de amigos, de roupinhas. Recebemos umas cestas básicas também. Mas a pandemia gera muita incerteza e impacta nossa vida financeira e emocional”, comenta Solano.

    A burocracia, que já dificultava a vida de refugiados e solicitantes antes da pandemia, agora é obstáculo para obter o auxílio emergencial do governo. “Muitos migrantes não têm documento brasileiro, registro migratório ou documento provisório que caracteriza os solicitantes de refúgio, então não estão conseguindo sacar o dinheiro com o passaporte ou com a cédula de identidade do país de origem”, explica João Chaves, defensor público federal e coordenador da área de migrações e refúgio da DPU-SP. “Isso leva à necessidade de que a Defensoria Pública e outros órgãos pressionem os bancos para que aceitem esses documentos”.

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    Em meio à crise causada pelo coronavírus, Suleibi e a esposa conseguiram a naturalização brasileira. Após a pandemia, eles pretendem abrir um pequeno restaurante de comida árabe em São Paulo.

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    “A pandemia afetou diretamente essas pessoas no sentido de que, muitas vezes, é difícil para elas praticarem o distanciamento social e terem acesso aos insumos básicos”

    por Luiz Fernando Godinho
    Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

    Diferentemente de países como Holanda, Alemanha e Canadá, onde os governos têm papel ativo na implementação de políticas de integração local de pessoas em condição de refúgio, no Brasil essas funções ficam a cargo sobretudo de ONGs locais, igrejas e organismos internacionais como o Acnur e a Organização Internacional para as Migrações (OIM). “Os refugiados que vivem no Brasil podem contar muito pouco com o governo”, diz Haydu.

    Neste momento de crise, as organizações têm prestado assistência por meio de doações de cestas básicas, serviços de orientação e encaminhamento profissional, entre outros. No começo da pandemia, Omar Suleibi foi procurado por uma ONG, que o contratou para que produzisse 200 marmitas para moradores de rua. “A ideia era que nós trabalhássemos e os moradores de rua comessem”, conta. Ele gostou da ideia e acabou dando continuidade ao projeto por conta própria. Com o auxílio de amigos e clientes, Suleibi e a esposa preparam as marmitas e as distribuem. “A gente tem que cuidar do outro”, diz.

    Integração local

    O Brasil possui relativamente poucos refugiados. Hoje, eles representam 0,07% da população, proporção significativamente menor que a de países como Turquia (4,4%) e Alemanha (1,3%). A pouca representatividade se reflete em desconhecimento sobre a condição de refúgio por parte da população em geral.

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    Para o defensor público João Chaves, as leis de migração e de refúgio são bastante protetivas, porém, frequentemente elas não são postas em prática devido à grande desinformação sobre esses direitos. “O migrante tem dificuldade, por exemplo, de ser contratado, porque o empregador acha que tem que ter uma autorização da Polícia Federal ou do Ministério do Trabalho, o que não é verdade”, descreve Chaves. Abrir conta em banco, alugar imóveis e acessar a saúde pública são outras situações que frequentemente os submetem a aborrecimentos e entraves.

    O preconceito é outra barreira. “Você chega com o estigma do refúgio. Você fala que é refugiado e as pessoas acham que você fez alguma coisa errada no seu país e que por isso você está fugindo”, explica Daniela Solano, que veio para o Brasil em 2002 com os pais e as irmãs devido a ameaças à família por parte de um grupo paramilitar colombiano. Os pais dela, à época, trabalhavam com direitos humanos em uma região conflituosa. “Isso dificulta você se adaptar e ter o sentimento de pertencimento em outro lugar” conclui. Hoje, ela sente-se parte do Brasil e vê com apreensão o avanço de discursos xenófobos no atual contexto político.

    “A maioria dos brasileiros sabe receber. Mas algumas pessoas, quando percebem que você não é brasileira, mudam (de comportamento) e as perguntas se tornam muito desconfortáveis”, relata Constance Salawe, que veio da Nigéria para o Brasil em 2016 por conta de perseguição religiosa ao marido. “Sinto-me adaptada, mas de vez em quando tenho muitas saudades da minha família e de meu país”, diz ela. “Algumas vezes quero voltar para lá, especialmente nos dias em que sofro preconceito.”

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    Avenida Paulista, em São Paulo, esvaziada durante a pandemia. Em 2020, 17,7 mil pessoas obtiveram o status de refúgio no Brasil, a maioria  da Venezuela. Contudo, o Centro de Referência para Refugiados da cidade de São Paulo atendeu pessoas de 109 nacionalidades em 2019.

    Foto de Isadora Fonseca

    Estudos estatísticos comprovam o crescimento econômico trazido por refugiados em diferentes regiões do mundo. Roraima é ume exemplo: conforme relatório recente da FGV em parceria com a UFRR e o OBMigra, o estado melhorou sua situação socioeconômica com a chegada dos venezuelanos. Entre 2016 e 2017, o PIB da região cresceu 2,3%, enquanto a média de crescimento dos demais estados foi de 1,4%. “A gente só sai ganhando com a vinda deles”, diz Cleyton Abreu, da CASP. “Onde o refugiado/solicitante de refúgio chega, ele chega para vencer, para buscar oportunidade, e acaba desenvolvendo uma rede muito positiva de desenvolvimento no local onde ele vive”.

    Em meio à pandemia da covid-19, Suleibi recebeu uma notícia alentadora: ele e Kenanh conseguiram a naturalização brasileira. Os dois agora planejam abrir um pequeno restaurante de comida árabe em São Paulo, assim que conseguirem se recuperar das perdas financeiras ocasionadas pela crise. “Estou pensando que o restaurante vai ficar para a minha filha no futuro. Este ano acho que não vai dar, mas talvez no próximo a gente consiga”.

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